sexta-feira, 27 de agosto de 2010

PUNCTUM DIABOLICUM: A NOVA LEI DE DROGAS

SUMÁRIO: 1. Introdução 2. Conceito de droga ilícita 3. Drogas: um problema extra-penal? 4. O bem jurídico tutelado 5. A demonização do usuário e a sentença como exorcismo 6. Guerra às drogas: violência contra a sociedade 7. Propostas 8. Conclusão

RESUMO: Com a nova lei de drogas, reabre-se a discussão em torno do polêmico assunto. A criminalização do uso tem como objeto jurídico a saúde pública, mas não há preocupação em demonstrar se o grau de lesão é aceitável ou mesmo existente em condutas como o simples porte de substância. O grave problema social apresentado pelo uso de drogas seria em decorrência de sua ilegalidade aleatória e ausência de políticas públicas. Conclui apresentando propostas para minimizar o problema.

PALAVRAS-CHAVE: Drogas. Criminalização. Bem jurídico. Política repressiva. Violência.


1. INTRODUÇÃO
A nova lei de drogas[1] (Lei 11.343/06) mudou o cenário político-repressivo da legislação penal ao despenalizar[2] o uso de drogas, cujo ato passa a ser considerado contravenção penal[3]. Em si, trata-se de medida salutar que coaduna com as modernas políticas européias. Entretanto, a novatio legis in mellius em quase nada resolverá o problema que aniquila a sociedade. Esse mal, que temos aprendido a conviver e, principalmente, racionalizar, não diz conta à Justiça penal, mas, sim, à Justiça social.


2. CONCEITO DE DROGA ILÍCITA
A droga, para nós, juristas, é subdivida em lícita e ilícita[4]. Sendo que a única diferença é que as drogas ilícitas são ilícitas, com duas agravantes: o cérebro humano não consegue distingui-las e a lei não faz distinção entre as próprias drogas ilícitas, de forma que o usuário de heroína é punido nos moldes do usuário de cloreto de etila[5].

Para a escolha das substâncias ilícitas, os legisladores apóiam-se nas agências internacionais do sistema penal, como a ONU[6] e a OMS. Entretanto, em rápida pesquisa pelos sítios desses órgãos, observa-se que os conceitos de drogas não indicam o porquê, v.g., a nicotina é lícita e o tetrahidrocanabiol é ilícito.

A par do conceito de droga ilícita inexistir no âmbito científico, o que nos resta claro é que há uma demonização[7] conceitual das drogas pelas agências políticas. É uma política bem próxima da pretendida pela inquisição medieval quando se matavam bruxas para “purificar” a sociedade. Hoje, pretensamente, pune-se para salvar, a todos nós, de uma vida de escolhas contrárias ao sistema de produção. Este tipo de espaço foi analisado por Foucault[8] quando estudou a objetivação do sujeito. O discurso conservador é o mesmo para fenômenos diferentes, como o uso de drogas, a obesidade ou o crime violento.
Constata-se, assim, um preconceito ao empregar o substantivo droga, narcótico, entorpecente, tóxico. Ou mesmo discutir o assunto. Nunca ouvimos alguém dizer que o álcool é um narcótico ou que a cerveja é um entorpecente, apesar de sê-los. Isso porque as adjetivações desses termos induzem a uma concepção de algo intrinsecamente ruim, naturalmente viciante, demonicamente fatal. Essas denominações, portanto, para as substâncias aceitas socialmente, soam desproporcionais ou exageradas.

Mas, as drogas, em si, tanto as lícitas quanto as ilícitas, não são boas ou ruins. Apenas são da natureza (Hipócrates). Bom ou ruim é o que se faz delas. Quem fuma quem? De forma que não existem drogas que produzem dependência, mas, sim, indivíduos dependentes de drogas. A dicção é uma espécie de escravização que segue o princípio do prazer (Freud). A morfina, desse modo, pode ser um remédio ou um veneno... Nada mais correto etiologicamente: a palavra droga, tanto em grego, como no inglês, significa substância nociva à saúde ou veneno.

Os venenos (propriamente ditos) são vendidos livremente. O álcool, seguramente uma droga pesada porque leva à dependência física, encontra pouquíssimas barreiras e, ainda, menores fiscalizações... Mas, nicotina, álcool, chumbo, arsênico, tudo, é tóxico, alguns até mais letais do que a cannabis lineu sativa. Mas, isso é-nos totalmente irrelevante. Amanhã ou depois apreciaremos um bom vinho sem nos preocuparmos se é droga. A pecha pejorativa (gíria) não alcança alguns entorpecentes lícitos, pois pessoas bebem e não têm maiores problemas, a não ser, às vezes, uma ressaca ocasional. Esquecem-se de que o álcool se relaciona com a cirrose hepática e diversas outras doenças, a nicotina se relaciona com o câncer. Não queremos, com isso, pedir a criminalização dessas drogas, apenas ressaltar que ambas substâncias viciam fisicamente. Mesmo porque não se pode “criminalizar substâncias” porque essas substâncias não são rés, é seu uso que é criminalizado. De qualquer forma, a lista de malefícios das substâncias lícitas é enorme. Mesmo assim, não são consideradas drogas ilícitas no sentido popular ou legal.


3. DROGAS: UM PROBLEMA EXTRA-PENAL?

O que se conclui é que a droga não é a nicotina ou a raiz ayahuasca. É evidente que existem pessoas viciadas em heroína, como existem pessoas viciadas em cafeína, cocaína. Há preconceito e informações absolutamente distorcidas próprias do nosso fundamentalismo judaico-cristão (Boaventura), já que no mundo muçulmano há países que permitem o uso do cânhamo, mas proíbem o álcool[9]. Os nossos vizinhos argentinos permitem a utilização do cloreto de etila (lança-perfume)... Tratar-se-ia, então, a definição de droga ilícita, de uma questão extra-penal (moral ou cultural)? Se a resposta for positiva, é evidente que a sobrevivência da moral judaico-cristã não deve se condizer com a política de repressão penal.

Ao contrário, se é a saúde pública o bem a ser tutelado (ou o perigo social, como queiram) também deveríamos criminalizar a expedição do monóxido de carbono[10] resultante do transporte? Afinal de contas, aumenta de maneira significativa o risco de problemas pulmonares. Também deveríamos criminalizar o abuso de comida gordurosa? E as drogas lícitas? Acaso não afetam a saúde pública?

Pontuado desse modo, o supermercado colocaria em maior risco de perigo a sociedade do que o usuário de maconha eventual[11].

A disseminação do álcool ou nicotina afeta não apenas ao usuário, como também a toda a sociedade, todavia, há tolerância com essas substâncias em evidente opção política.

Inexoravelmente só resta o argumento extra-penal preservado pelo desrespeito à individualidade. Não se pune porque se afetou a saúde coletiva, pune-se porque se desobedeceu (mala quia prohibita).


4. O BEM JURÍDICO TUTELADO

A política de punição ao usuário com fundamento no bem jurídico saúde coletiva é, assim, de difícil, senão impossível, resolução pela criminalização primária. Há inúmeros outros fatores em nossa sociedade de risco que não necessitam de criminalização. De forma a só se conceber o uso de drogas como crime se aceito como disfunção social (Jakobs). Nesse funcionalismo radical, esquece-se, como aponta Hassemer[12], que violência, risco e ameaça constituem hoje fenômenos centrais da percepção social. Por outro lado, na sociedade convivem vários agrupamentos normativos e o Direito penal nunca é igual a nenhum deles, senão compartilha valores da parte politicamente mais influente (Baratta). Lesado deve ser o bem jurídico e não o direito.

A sociedade de risco existiu ontem e existirá hoje e amanhã. Na verdade, nunca, em tempo algum, mesmo antes do homo habilis, se pôde falar em sociedade de segurança. Ademais, o direito penal não se presta a extirpar riscos eventuais da sociedade porque esses riscos são condições existenciais da mesma.

A novatio legis, desse modo, nasce velha porque é meramente proibitiva e visa controlar a sociedade criminalizando comportamento instituído por instância extra-penal porque não lesa bem jurídico. Paulo Queiroz[13] ensina-nos:

Conseqüentemente, somente podem ser erigidos à categoria de criminosos fatos lesivos de bem jurídico alheio, e não atos que representem uma ´má disposição´ de direito próprio. Nesse sentido, aliás, é o ´núcleo´ do Direito penal brasileiro, visto que não se pune o suicídio tentado, a automutilação, o dano à coisa própria etc., mesmo porque semelhante intervenção seria de todo inútil, isto é, desprovida de capacidade inovadora. E é também por isso que soam claramente inconstitucionais disposições como a do art. 16 da Lei 6.368/76 (porte ilegal de entorpecentes) ou a contravenção de mendicância (LCP, art. 60). Também por isso são condenáveis os chamados crimes de perigo abstrato, de mera conduta etc., por consagrarem uma ficção, relativamente ao resultado.

A incriminação do uso de drogas, cuja danosidade social é de difícil comprovação, viola o princípio da lesividade[14] e da intervenção mínima e não importa em garantias de uma sociedade utopicamente mais segura. O que há é uma presunção de que a simples realização gramatical do preceito penal coloca em risco o bem jurídico[15]. Não se perquiri se houve, efetivamente, na conduta de, v.g., portar maconha uma lesão à saúde coletiva, há uma presunção iure et de iure que sim, uma periculosidade ex ante, generalista, sem chances a uma discussão sobre a imputação objetiva, ou antes, a prova da causalidade.


5. A DEMONIZAÇÃO DO USUÁRIO E A SENTENÇA COMO EXORCISMO [16]

O maior benefício da lei é começar a trilhar o caminho contra a idéia de que o usuário de drogas ilícitas seja inferior ao usuário de drogas lícitas. Tanto o maconheiro ou o fumante quanto o alcoólatra merecem apóio e tratamento médico e não uma resposta penal. O usuário de drogas é sua própria vítima a partir que se torna toxicômano (doença) e passa a não poder escolher entre usar ou não a droga.

Todavia, o maconheiro não é uma entidade demoníaca, não vende sua alma ao Diabo, não é um inimigo público ou um malandro a merecer resposta do direito penal do inimigo[17], mas, apenas, um usuário afetado por um vício maléfico a si próprio que precisa ser debelado com informação e ajuda profissional.

O usuário de drogas (lícitas ou não) não pode ser considerado criminoso. A tipificação dessa conduta vai contra os ditames do moderno direito penal. O bem jurídico tutelado (a saúde coletiva) rivaliza com a esfera privada da pessoa, no direito a ter suas intimidades preservadas, cujo âmbito, deveria ser vedado, ao Estado, intrometer-se.

Se podemos suicidar-nos, tomando veneno, ou cortarmos os dedos e o Estado não nos pune, não se percebe, analogamente, por que não podemos intoxicar-nos com determinadas substâncias?

A concepção de Cesare Lombroso de criminoso ainda ressoa em alto tom, pois ainda hoje muitos acreditam que o usuário de droga se inseriria no terceiro grupo de criminosos. Ao lado do ser atávico e do epiléptico, existiria o afetado pela “loucura moral”, cujo senso ético é suprimido. Até hoje divindades[18] são capazes de perceber esse punctum diabolicum[19]. O positivismo tem como base a evolução natural das espécies e como ápice o nazismo que se equivocou com a política social pública comprometendo de maneira mortal a liberdade dos diferentes.

Aplica-se, assim, o direito penal do autor, pois esse é um ser inferior moralmente e poderá praticar crimes mais graves. O desvio de usar drogas é um pecado jurídico que as agências morais não aceitam. O crime do maconheiro ou viciado em heroína é ter um defeito moral, tal como o adúltero ou o homossexual. Há uma seleção criminalizante, orientada por empresa extra-penal e estereotipada, perseguidora de grupos vulneráveis, no caso, em sua maioria, os pobres e os jovens.

Por outra vertente, em última análise seguindo o pensamento lombrosiano, o drogado que fez uso de substância também disseminou o seu modo de ser, pensar e agir colocando igualmente em risco a sociedade. Há em seu comportamento uma periculosidade inerente. Chegará, pois o dia em que se punirá o uso pretérito de drogas, pois a saúde pública nada mais é do que o conjunto das saúdes individuais. Como a questão se posta relevante, também poder-se-ia abrir margem às pesquisas a fim de se saber se o indivíduo usou drogas nos últimos 30, 60, 90 ou 120 dias como o fez Nixon exigindo o exame de todos os funcionários públicos norte-americanos... A discussão parece levar-nos a Saramago, quando em seu premiado livro “Ensaio sobre a Cegueira”[20] nos ensina que somos diferentes, mas essa diferença não pode ser vista como um obstáculo para compreender o outro.


6. GUERRA ÀS DROGAS: VIOLÊNCIA CONTRA A SOCIEDADE

Além do mais, a criminalização de drogas provoca ônus financeiro de grande proporção não só pelo enorme aparato policial, mas pelas vítimas mortas pelo tráfico, pelo encarecimento das substâncias e procura tardia das pessoas ao tratamento médico especializado em decorrência do medo de serem descobertas como usuárias. O aflito se vê mais aflito com a política repressiva, pois, se punido, sua situação se agrava ainda mais perante a família, a sociedade e o trabalho. Nem se argumente que não há mais pena de prisão, pois é cediço que o sistema penal não reabilita ninguém, pior, condena perpetuamente.

A criminalização não fez obstar a crescente utilização das substâncias, provando-se ineficaz a prevenção geral. A história é testemunha, pois se engana quem pensa que foi Eliot Ness quem venceu Alcapone. Quem venceu o mafioso de Chicago foi a lei. Precisamente a lei que revogou a Lei Seca e legalizou o álcool. É preciso ter consciência de que a legalização do álcool deu certa.

Certamente, aqui no Brasil, pela falta de políticas sociais, o problema do álcool ainda é grave. Todavia, a retirada do usuário de álcool da agenda policial diminuiu a violência dos traficantes de álcool, diminuiu também o seu preço para os usuários (e problemas decorrentes) e evitou um colapso maior do nosso já falido sistema prisional. É o que expõe Maria Lúcia Karam[21]:


Ao tornar ilegais determinados bens e serviços, como ocorre também em relação ao jogo, o sistema penal funciona como o real criador da criminalidade e da violência. Ao contrário do que se costuma propagar, não são as drogas em si que geram criminalidade e violência, mas é o próprio fato da ilegalidade que produz e insere no mercado empresas criminosas – mais ou menos organizadas – simultaneamente trazendo, além da corrupção, a violência como outro dos subprodutos necessários das atividades econômicas assim desenvolvidas, com isso provocando conseqüências muito mais graves do que eventuais malefícios causados pela natureza daquelas mercadorias tornadas ilegais.

Os cartéis colombianos existem por causa da cocaína, assim como a máfia nigeriana. A máfia russa dedica-se ao comércio de heroína nos Bálcãs. Essas organizações criminosas podem chegar a movimentar um trilhão de dólares/ano[22]. Teme-se que muitas economias mundiais quebrariam com a legalização das drogas, já que o crime organizado encontra facilidades econômicas na lavagem de dinheiro por meio de coação, corrupção ou conveniências.

É claro, como a luz solar, que não é a droga o maior problema. É a sua definição e sua criminalização que faz surgir e fortalece os Alcapones Tupiniquins, chefes de conhecidas organizações criminosas que sobrevivem à custa da ilegalidade e conseqüente valorização dos seus produtos ilícitos. Assim como é de conclusão matemática que a ilegalidade da maconha é a responsável pelo número vertiginoso de homicídios e escravos na região do conhecido polígono nordestino.

A criminalização primária da droga é a mãe da maioria dos crimes violentos nas favelas. Observa-se que os moradores desses aglomerados não são criminosos. São pessoas desprovidas de condição financeira. A guerra entre os traficantes e entre esses e a polícia é que gera essa calamidade social. A ilegalidade das drogas conjugada com a ausência de políticas racionais produz e insere no mercado verdadeiras empresas ilegais. Essas são as mais visíveis conseqüências da inútil guerra contra as drogas.


7. PROPOSTAS

Como penalista, não poderíamos apontar críticas sem apresentar propostas concretas, eis que é o móvel do jurista a busca pela paz social. Seguem algumas idéias:


a) Fim da dicotomia droga lícita / ilícita;

b) Intervenção do Estado na relação consumo / oferta de drogas;

c) Retirada da repressão penal para o uso privado de drogas;

d) Punição administrativa para o tráfico ilegal e o uso público de drogas;

e) Prevenção primária quanto aos sujeitos (família, escola, sociedade, trabalho);

f) Prevenção secundária aos usuários (efeitos das drogas);

g) Prevenção terciária aos usuários (reintegração).


8. CONCLUSÃO

Fernando Pessoa[23] já afirmava no início do século passado, ao criticar a Lei Seca dos EUA, que
se o Estado nos indica o que havemos de beber, porque não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? Por que não prescrever onde havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de dar-nos ou não dar-nos? Todas essas coisas têm importância para a nossa saúde física e moral (...) As leis [radicais] nascem mortas; e, como no caso dos monstros, o melhor é que assim aconteça, pois, se vivem, vivem a vida inútil e daninha da Lei Seca do Estados Unidos.

A par de reconhecermos que, cientificamente, a criminalização do uso de drogas está morta, talvez, o que nos falte ainda é reconhecer que a terapia pretendida é pior do que a doença a ser debelada. O problema das drogas não se resolve com repressão ou polícia ou exército, mas, tão somente, com educação e saúde. A política repressiva, há quase um século, mostra-se falha. Nunca funcionou. Não vai funcionar.


NOTAS DO TEXTO


[1] Sobre a nomenclatura droga, ver também Leal, João José. Política criminal e a lei Nº 11.343/2006: Nova lei de drogas, novo conceito de substância causadora de dependência. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1177, 21 set. 2006. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2006.

[2] “A despenalização é o ato de "degradar" a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no qual entraria toda a possível aplicação das alternativas às penas privativas de liberdade (prisão de fim de semana, multa, prestação de serviços à comunidade, multa reparatória, semidetenção, sistemas de controle da conduta em liberdade, prisão domiciliar, inabilitações etc.).” Zaffaroni, Eugenio Raúl e Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral.. SP: RT, 1997, p. 359.
[3] Em conclusão, ensina-nos Rodrigo Iennaco: “4.1. Não houve abolitio criminis em relação à conduta prevista no art. 16, da Lei n. 6.368/76, tendo em vista conduta mais abrangente tipificada no art. 28, da lei n. 11.343/06 (Nova Lei de Tóxicos). 4.2. Diante da previsão de pena de multa no art. 28, §6º, II, c/c art. 29, a natureza jurídica do art. 28, da Lei n. 11.343/06, é de contravenção penal.” Iennaco, Rodrigo. Abrandamento jurídico-penal da “posse de droga ilícita para consumo pessoal” na Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006: primeiras impressões quanto à não-ocorrência de abolitio criminis. Disponível na internet www.ibccrim.org.br, 14.09.2006.
[4] No parágrafo único do art. 1º, após reiterar os termos programáticos previstos na ementa preambular, a nova lei estabelece textualmente: “Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União.”
[5] No Reino Unido, as drogas são classificadas em três categorias conhecidas como classe A, B e C, onde há a variação das penas (Medicines Act 1968 atualizada pela Misuse of Drugs Act 1971): “Class A Drugs Heroin, methadone, cocaine, Ecstasy, LSD, amphetamines (if prepared for injection) (…) maximum of seven years in prison (…). Class B Drugs Amphetamines (speed) and barbiturates (…). Maximum penalties for possession are five years in prison (…). Class C Drugs Cannabis, anabolic Steroids and benzodiazepines (tranquillisers such as Valium, Temazepam) (…) two year prison”.
[6] A década de 1.990 foi declarada pelas Nações Unidas como a década de combate ao uso e abuso de drogas.

[7] Expressão usada por Ribeiro, Maurides de Melo in Artigo do Boletim IBCCRIM nº 151 - Junho / 2005, Afinal, o que é DROGA?, p. 9.
[8] Foucault, Michael. Sujeito e poder. In: Dreyfus, H; Rabinow, P. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.

[9] O tráfico e uso de álcool é punido pela lei islâmica há mais de 1.600 anos. Ver Terance D. Miethe, Hong Lu. Punishment: a comparative historical perspective. Cambridge: The University of Cambridge, p. 167.
[10] Giuseppe Cascini, in Stupefacenti e repressione penale (Diritto Penale Mínimo, Roma: Donzelli editore, 2002, p. 54).

[11] Ver José Silva Júnior, Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial, (Alberto Silva Franco, org.), 7ª. ed., vol. 2, p. 3242.

[12] Crítica al derecho penal de hoy, Bogotá: UEC, 1998, p. 47.

[13] Queiroz, Paulo. Direito penal e liberdade, Boletim IBCCRIM no. 90, maio/2000, p. 5.

[14] Nesse sentido: Queiroz, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. SP: Saraiva, p. 47, nota 103.

[15] Machado, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal, SP: IBCCRIM, 2005, p. 123.

[16] Ver Batista, Nilo. Punidos e Mal Pagos: violência, justiça. Segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 65.

[17] No seu sentido mais policial possível. Ver Derecho penal del enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003.

[18] “Este direito penal supõe que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais. Tal inferioridade é para uns de natureza moral e, por conseguinte, trata-se de uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico; para outros, de natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado perigoso. Os primeiros assumem, expressa ou tacitamente, a função de divindade pessoal e, os segundos, a de divindade impessoal e mecânica.” Zaffaroni, E. Raúl, Batista, Nilo et all. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2ª. edição, p. 131.

[19] “De resto, não existe qualquer prova de que a maconha seja inofensiva e antes, ao contrário, provoca alto teor de dependência, tanto que o viciado ou ‘maconheiro’ é perceptível à distância, não só pelo odor que exala como pelo aspecto pálido e esverdeado que tem.” (TJSP – Ap. 206.305-3 – j. 09/09/1996, JTJ 184/302).
[20] Ensaio sobre a Cegueira, 2ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1995.

[21] Artigo do Boletim IBCCRIM nº 45 - Agosto Esp. / 1996, Drogas: A irracionalidade da criminalização.
[22] Rosa, Fábio Bittencourt da. Legitimação do ato de criminalizar, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 80.

[23] Obras em Prosas, Lisboa: Nova Aguilar, p. 636.

O uso do Crack e o Direito Penal: Uma explícita anomia?

O que leva uma pessoa a experimentar o crack? Quais os fatores cognitivos? Até que ponto há autonomia para a escolha do uso da substância[1]? O direito penal influencia de alguma forma esta escolha?
Aristóteles pontuava que uma pessoa se torna viciada porque escolhe o hábito da bebida e, por isso, é responsável pelo seu vir-a-ser: "...dos nossos habitus, só somos senhores do princípio"[2] . Quando se escolhe esse caminho, em determinado ponto, não é mais possível voltar .
É pertinente o acerto conclusivo de Aristóteles: o usuário de crack só é senhor da escolha no princípio, no seu primeiro ato, na primeira tragada, depois se torna fantoche de seu vício fazendo das armas do direito penal um mais absoluto niilismo.
Tal proposição é reforçada ao se perceber que não se apontam novas investidas de combate. E assim é porque se posta uma série de dificuldades para se coletar dados primários sobre a natureza e a extensão do uso da droga, o que limita a identificação das tendências no comportamento do consumidor. Não sabemos nem se o consumo do crack é o início ou o fim de um processo psico-sócio-cultural. Aqui, no Brasil, esses dados parecem ser escondidos o que torna inviável essa digressão em busca de outros caminhos que não a simples repressão penal.
Urge, pois lançar investigações sobre as causas motivacionais e cognitivas do uso da droga a exemplo mesmo do que fez, no início dos anos 1960, Howard Becker[4] . O direito penal terá que se reinventar para combater o uso do crack, quiçá, ao final, se compreenda mesmo “à deriva” neste teatro de guerra.
O crack tornou-se uma epidemia, apesar da lei. As autoridades governamentais apresentam políticas públicas ineficazes e insuficientes para tratar do grave problema. O direito penal é completamente inútil para coibir o tráfico e o abuso da droga pelo viciado. Se se pode falar em anomia jurídico-penal, este é o melhor exemplo.

Notas

[1] As mesmas perguntas foram feitas por Claudia Stierle (Entscheidung zu Crack?: Eine handlungstheoretische Erklärung des Crackkonsums. Hamburg : Kovač, 2006) e o texto é desenvolvido, em parte, pelas ideias da jurista alemã.
[2]Aristóteles, Ética a Nicômano. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Rosá. Col. Os pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973, III, 5 – 1114b, 30-35)
[3]Aristóteles. Ética a Nicômaco. Trad. de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Rosá. Col. Os pensadores. São Paulo: Editora Abril Cultural, 1973, L. III, 5; 1114a, 15-25.
[4]Outsiders: Studies in the Sociology of Deviance. New York: The Free Press, 1973.

A Súmula Vinculante nº 14 e o abuso de autoridade

“A defesa não quer o panegírico da culpa, ou do culpado. Sua função consiste em ser, ao lado do acusado, inocente ou criminoso, a voz dos seus direitos legais.” (Rui, Obras Completas, vol. XXXVIII, t. II, p. 10)

O nosso processo penal, de 1941, de origem ditatorial-fascista, sempre protegeu a idéia de que segredo e Justiça eram corolários de um processo mais eficiente, subelencando as garantias processuais.
O CPP exige, hodierna e anacronicamente, o “sigilo necessário à elucidação do fato ou exigido pelo interesse da sociedade" (art. 20, CPP) - inclusive contra o imputado - em conceito de todo similar ao “deutsche Volksgeist” nazista, ápice do niilismo moral[1].
A doutrina ainda define o inquérito como mera peça informativa de natureza administrativa, sigilosa e inquisitiva. Isso sem levar em consideração que, até bem pouco tempo atrás, vivíamos sob as agruras de uma política repressora cheia de “segredos” e desmandos para o imputado, concebido como mero “objeto”.
Não se pode passar ao alvedrio do outrora desprestigiado Estatuto da Advocacia (Lei n° 8.906/94). Há 15 anos tenta assegurar, aos advogados, o acesso aos autos de flagrante e de inquérito (art. 7º, inciso XIV)[2], exceto quando há “segredo de justiça” (§1º., 1), exceção essa estabelecida ao largo de qualquer probidade administrativa.
A jurisprudência, titubeante, apoiada na mais fina doutrina de “manuais” e em precedentes de escol[3], só começou mesmo a ter luzes[4] sobre a discussão no HC 82534-8-PR, STF, Min. Sepúlveda Pertence, isso nos idos de 2004...
Todavia, apesar da Constituição, apesar da Lei, apesar do Supremo, a prática da advocacia criminal, não raras vezes, se depara, ainda, com o total desconhecimento por parte de autoridades do art. 5º. LV, CF ao não interpretarem extensivamente o inquérito policial como “processo administrativo”[5] ou os imputados como “acusados em geral”[6]:
LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;
A interpretação mais usual é restringir o art. 5º., LV, CF até que se poste amorfo no art. 20 do CPP...
Procurando efetivar a prerrogativa profissional de acesso aos autos, elementar ao exercício da defesa de qualquer cidadão, o Conselho Federal da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), em setembro do ano passado, propôs, e foi aprovada, no dia 02 de fevereiro de 2009, a tão aguardada súmula vinculante n° 14 do Supremo Tribunal Federal, do teor seguinte:
“É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos elementos de prova que, já documentados em procedimento investigatório realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito ao exercício do direito de defesa.”
Uma evolução notável para a cidadania num alargado direito à informação (Nemo inauditus damnari potest)[7], apesar de dois votos contrários: dos ministros Joaquim Barbosa e Ellen Gracie.
É claro que não se pode falar em contraditório pleno no inquérito porque não há relação processual e nem é processo. Também não há direito absoluto dos advogados de acesso aos inquéritos e às atividades policiais. Há restrições como, por exemplo, o acesso prévio às diligências. Desse modo, o inquérito continua correndo em segredo, mas parcial, nunca total. De modo que, se os autos são do interesse do cliente do advogado e há provas já documentadas, a autoridade não pode mais alegar sigilo do inquérito ao advogado, absolutamente. E diga mais, as diligências não precisam nem estar disponíveis nos autos, tal como fez o art. 8° da lei de interceptações telefônicas ( Lei n° 9.296/96), basta estarem documentadas.
Essa súmula tem a declarada intenção de paralisar as violações dos direitos constitucionais dos cidadãos, por parte de pessoas que detêm certa parcela de autoridade. No mesmo sentido já pensavam Milton Campos e Bilac Pinto intelectuais da lei 4.898/65 (a lei de abuso de autoridade), onde em seu art. 3º., alínea “j” passou, em 1979, a dispor ser crime de abuso de autoridade qualquer ato atentatório:
“j) aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. (Incluído pela Lei nº 6.657,de 05/06/79)”
Que encontra ressonância constitucional no art. 5º., XIII, CF:
“XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”
De se ver que a alínea “j” se trata de norma penal em branco, a configuração do abuso de autoridade contra os advogados depende, pois de seu estatuto, no caso a lei 8.906/94. Esse estatuto, no seu art. 7º dispõe os direitos do advogado, dentre os quais se destacam:
“XIV - examinar em qualquer repartição policial, mesmo sem procuração, autos de flagrante e de inquérito, findos ou em andamento, ainda que conclusos à autoridade, podendo copiar peças e tomar apontamentos;
XV - ter vista dos processos judiciais ou administrativos de qualquer natureza, em cartório ou na repartição competente, ou retirá-los pelos prazos legais;
§ 1º Não se aplica o disposto nos incisos XV e XVI:
1) aos processos sob regime de segredo de justiça;”
A obstrução ao direito de defesa, mesmo sob a alcunha do kafkiano “segredo de justiça”, em tese, pode configurar o delito previsto na alínea "j" do artigo 3º da Lei 4.898/65, o qual estatui constituir crime de abuso de autoridade qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional. Sem sombra de dúvidas, o acesso aos autos cerceia o exercício profissional do advogado e esse exercício, jamais, se submete a nenhum tipo de segredo, do que se depreende da súmula vinculante no. 14.
A História está cheia de exemplos de perseguições e injustiças sob o manto cego da vindita. Em nome da Justiça, já se mataram inimigos particulares. Sem o acesso aos autos, não há defesa; sem defesa, não há Justiça; sem Justiça, não há Estado Democrático de Direito.
Por evidente, se compreende que o segredo a que alinha o § 1° do art. 7°, do Estatuto da Advocacia, já citado, possa constituir-se em prática arbitrária ou ilegal frente à súmula vinculante n. 14 que não impôs condições ou limitações ao livre exercício do profissional do direito. O sigilo, jamais, repita-se, se sobrepujará ao direito do advogado de ter acesso aos autos, mesmo porque pautado por princípio constitucional.
A idéia de segurança no Estado Democrático de Direito não exclui a liberdade individual, senão complementa-a (Canotilho). A proibição por segredo, dessa forma, é simbólica porque visa fundar um conflito só existente na vencida ideologia da defesa social e que tem por conseqüência última o esvaziamento do sistema processual em favor do autoritarismo estatal. No Estado de Direito, democrático, não é possível contrapor dois pilares: a busca da Justiça e a defesa do indivíduo. Colocar o processo penal nesse patamar é desvincular a finalidade do Estado dos direitos fundamentais e isso é conceitualmente paradoxal (John Rawls).
Desta maneira, a proibição ou vedação por ato verbal ou escrito da retirada de autos por parte da autoridade judiciária ou administrativa constitui gravame indevido e abusivo passível de correção via mandado de segurança. Desrespeitado o princípio, tratar-se-á de cerceamento profissional e configurado estará o abuso de autoridade.
Do complexo de direitos do indiciado é corolário primeiro e prerrogativa universal de ter, o advogado, acesso aos autos respectivos. A tal direito não se exclui o inquérito ou o processo que corre em sigilo. O preceito legal é irrestrito resolvendo-se, em favor da defesa, eventual conflito com os interesses do sigilo das investigações.
Magistratura, Ministério Público ou qualquer autoridade precisa de prerrogativas ou garantias para exercer o múnus desenvolvendo com eficiência suas atividades.
O exercício da advocacia também está assegurado por garantias, sem as quais não sobreviveria.
Deste modo, configurado está o direito líquido e certo que têm os advogados de terem acesso e copiarem os autos quantas vezes forem necessárias: segredo e Justiça só andaram de mãos dadas sob o jugo inquisitorial, o vitupério do “Führerprinzip” ou o manto cego do abuso de poder.
NOTAS E REFERÊNCIAS
[1] Como se observa, a discussão prova o acerto de Hannah Arendt quando afirma que a democracia liberal não afasta por completo os vestígios de uma ideologia de terror que torna o homem supérfluo (Origens do Totalitarismo, RJ: Companhia das Letras, 1989). [2] Ver O sigilo no inquérito policial e o exame dos autos por advogado, Revista da OAB, n. 66, janeiro-junho, 1998, Luiz Flávio Borges D'urso.
[3] RT 780/730; 811/553.
[4] Raríssimas exceções. Justiça seja feita, por exemplo, ao Des. Prado de Toledo: RSE no. 184.211-3, TJSP, em 1995.
[5] Em 1971, o Jurista Pontes de Miranda (Comentários à Constituição de 1967 – com a Emenda n. 1, de 1969, 2ª. Ed., SP: RT, 1971, t. V, p. 257-258) já afastava “qualquer possibilidade de expedientes inquisitoriais, com características de opressão e consequentes parcialidades ou arbitrariedades. Seja judicial, seja judicialiforme, ou perante o juiz, ou perante a polícia, ou perante as autoridades administrativas, a instrução criminal tem de ser, por força da Constituição, contraditória.”
[6] Lauria e Tucci. Devido Processo Legal e Tutela Jurisdicional,SP:RT, 1993, p. 25; Lopes Júnior, Aury. Direito Processual Penal, RJ: Lumen Juris, 2008, p. 303.
[7] A tendência garantística não é só entre nós. O jurista argentino Julio Maier, presidente do Tribunal Superior de Justiça de Buenos Aires, no seu La censura Del juicio penal, Doctrina penal, Buenos Aires, 1984, p. 237, expõe que o “derecho de defensa debe ejercerse plenamente durante todo el desarrollo del proceso penal, dividido en tres fases: a) la instrucción o procedimiento preliminar, b) el procedimiento intermedio y c) el juicio plenario o procedimiento principal. Es decir que ´la garantía constitucional alcanza al sumario de prevención policial, a la instrucción preparatoria, a la información fiscal previa a la citación directa y al juicio plenario´.”

A comunicabilidade da renúncia tácita nas ações penais de iniciativa privada

Resumo: O texto analisa doutrina e jurisprudência a respeito das ações penais de iniciativa privada no que se relaciona com o princípio da indivisibilidade. Esse princípio veda a possibilidade do querelante escolher quais (ou qual) querelados irá processar. O desrespeito ao princípio importa em extinção da punibilidade pela renúncia tácita, causa comunicável a todos os demais querelados.

Causa de extinção muito comum na propositura da ação de iniciativa privada pelos crimes de calúnia, injúria e difamação (arts. 139, ss., CP) é o desrespeito aos princípios reitores desta modalidade de ação.
Segundo a melhor orientação doutrinária e jurisprudencial, os princípios que regem a ação penal de iniciativa privada são: o da oportunidade, o da conveniência, e da disponibilidade, o da intranscendência e o da indivisibilidade.
Aqui nos apegamos ao princípio da indivisibilidade.
É comum nesses crimes o concursus delinquentium. Isso indica o concurso de mais de uma pessoa na prática dos supostos crimes contra a honra.
Nesse caso, em havendo concurso (seja ele co-autoria ou mesmo participação) é impossível que o querelante possa escolher somente um dos pretensos ofensores renunciado aos demais. Se assim o fizer, surge a figura da renúncia tácita (art. 104, § único, CP) que aproveita aos demais autores ou partícipes do crime não elencados na exordial[1] , como forma de extinção da punibilidade, exceto quando a identidade for desconhecida.
O fundamento é de que a ação penal de iniciativa privada é indivisível, por regra expressa no art. 48 do CPP[2] , devendo, a ação, ser proposta em face de todos os autores do fato delitógeno. O querelante tem a prerrogativa de propor ou não a ação. Pode ou não exercer o chamado jus persequendi in iudicio, escolhendo se quer ou não processar os ofensores. Todavia, não pode fracionar a ação penal. Não se aceita, pois a escolha apenas de um ou alguns dos que colaboraram na prática do ilícito penal. Ou se processa a todos, obrigatoriamente, abrangendo os autores, co-autores e partícipes do fato criminoso, ou não se processa ninguém.
De forma que, não sendo a peça acusatória aditada no prazo decadencial, ocorre a extinção da punibilidade de todos os agentes pela renúncia tácita, incluídos ou não na peça pórtica, já que esta causa de extinção da punibilidade é comunicável. Tudo por força do artigo 49 do CPP c/c art. 107, V, CP. É esse o entendimento uníssono do STJ[3] e da Suprema Corte[4] . A doutrina também é absolutamente pacífica nesse sentido[5] .
Por fim, saliente-se que o reconhecimento da renúncia tácita, como causa extintiva da punibilidade, é questão, sobejamente, de ordem pública, quer dizer, de conhecimento de ofício. Não se admite, portanto, o argumento de supressão de instância para seu reconhecimento que deve se realizar de ofício e a qualquer tempo[6] nos termos do art. 61 do CPP. Mesmo porque, uma vez extinta a punibilidade, por qualquer motivo, é explícita a falta justa causa, encontrando, uma vez mais guarita no art. 648, I e VII, CPP, que considera ilegal a coação quando extinta a punibilidade.
Não existe, pois a obrigação de, processualmente, primeiro pleitear ao juiz de primeira instância, se for o caso, o reconhecimento da renúncia tácita, para, somente depois, se indeferida a pretensão, impetrar habeas corpus perante o Tribunal. Desde que entenda estar sendo ilegalmente constrangido por qualquer procedimento penal, o advogado pode escolher, livremente, a seu exclusivo alvedrio, entre pedir ao juiz a declaração da extinção da punibilidade, ou, desde logo, impetrar à Turma ou Tribunal uma ordem de trancamento da ação ou da execução presidida pelo magistrado[7] .

Notas

[1]A disposição se encontra expressa no Código Penal Italiano, art. 124, última parte: “La rinuncia si estende di diritto a tutti coloro che hanno commesso il reato.”
[2]Havendo, pois, clara e explícita ação de co-responsáveis, registra expressamente o artigo 48, CPP, o princípio da indivisibilidade da ação privada: "A queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará o processo de todos e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade".
[3]“Penal e processual penal. Habeas corpus. Delitos contra a honra previstos como difamação e injúria na lei 5.250/67. Ação penal privada. Princípio da indivisibilidade. Renúncia. Extinção da punibilidade. I - Quando, na matéria jornalística, a declaração atribuída ao querelado é indissociável de fatos publicados em outra reportagem, cuja remissão faz-se obrigatória para a compreensão de supostas críticas desonrosas atribuídas ao querelante, a hipótese é de co-autoria de conduta delitiva (Precedente do Excelso Pretório). II - Considerando que o processamento e julgamento dos crimes contra a honra ora deduzidos reclamam a propositura de ação penal privada, vige, entre os supostos co-autores, o princípio da indivisibilidade, de forma que a renúncia em favor de um deles, obrigatoriamente, a teor do art. 49 do CPP e 104 do CP, estendem-se aos demais, gerando, quanto a estes, da mesma forma, a extinção da punibilidade nos termos do art. 107, V, do CP. Ordem concedida.(STJ, HC nº 19088/SP, Min. Felix Fischer, Quinta Turma, Data do julgamento: 25/03/03, DJ de 22/04/2003).”
“Penal e processual. Ação penal privada. Princípio da indivisibilidade. Violação. Renúncia tácita. Extensão a todos os querelados. Extinção da punibilidade. 1 - Se há notícia da participação de outro agente nos fatos narrados como delituosos, a proposição de queixa-crime contra um só, acarreta a renúncia tácita do direito de ação, que se estende a todos (art. 49, do CPP), e, conseqüentemente, a extinção da punibilidade, nos termos do art. 107, V, do CP. Precedentes desta Corte.2 - Ordem concedida.(STJ, HC nº 12203/PE; Min. Fernando Gonçalves; Sexta Turma; Data do julgamento 18/05/00; DJ de 12/06/00).”
“HC - Queixa-crime - calunia e injuria - renuncia tácita - Documento: IT35389 - Inteiro Teor do Acórdão - Perempção.- Se o querelante tem notícia de ofensas proferidas por todos os querelados e deixa de incluir um deles na queixa-crime, fere o princípio da indivisibilidade da ação penal, de que trata o art. 48, do CPP.- A ocorrência de tal renúncia em relação ao co-partícipe, aproveita ao paciente, nos termos do art. 104, do CP, e 49, do CPP.- Trancamento da ação penal que se impõe."(RHC 5.194/RJ, 5º Turma, Rel. Min. Cid Flaquer Scartezzini, DJU de 05/08/96)."
“Penal e processual. Ação penal privada. Princípio da indivisibilidade. Violação. Renúncia tácita. Extensão a todos os querelados. Extinção da punibilidade.1 - Se há notícia da participação de outro agente nos fatos narrados como delituosos, a proposição de queixa-crime contra um só, acarreta a renúncia tácita do direito de ação, que se estende a todos (art. 49, do CPP), e, conseqüentemente, a extinção da punibilidade, nos termos do art. 107, V, do CP. Precedentes desta Corte.2 - Ordem concedida."(HC 12.203/PE, 6ª Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, DJU de 12/06/2000).”
[4]“Ação penal privada e princípio da indivisibilidade - Por ofensa ao princípio da indivisibilidade da ação penal privada (CPP, art. 49), a Turma deferiu habeas corpus para trancar ação penal e declarar extinta a punibilidade de jornalista processado pela suposta prática de delito contra a honra, consistente na veiculação, em jornal, de matéria considerada, pelo querelante, difamatória e ofensiva a sua reputação. Considerou-se que, em razão de a queixa-crime ter sido oferecida apenas contra o paciente, teria havido renúncia tácita quanto aos outros jornalistas que, subscritores da referida matéria, foram igualmente responsáveis por sua elaboração. Ressaltou-se, ainda, que transcorrera in albis, sem que se tivesse aditado a inicial, o prazo previsto na Lei de Imprensa (Lei 5.250/67, art. 41, § 1º). HC 88165/RJ, rel. Min. Celso de Mello, 18.4.2006. (HC-88165).”
“Ação penal privada - crimes contra honra - veiculação das alegadas ofensas morais mediante documento assinado por 19 (dezenove) pessoas - oferecimento de queixa-crime, no entanto, somente contra 02 (dois) dos signatários - violação ao princípio da indivisibilidade da ação penal privada - conseqüente renúncia tácita ao direito de querela - extinção da punibilidade - Tratando-se de ação penal privada, o oferecimento de queixa-crime somente contra um ou alguns dos supostos autores ou partícipes da prática delituosa, com exclusão dos demais envolvidos, configura clara hipótese de violação ao princípio da indivisibilidade (CPP, art. 48), implicando, por isso mesmo, renúncia tácita ao direito de querela (CPP, art. 49), cuja eficácia extintiva da punibilidade estende-se a todos quantos alegadamente hajam intervindo no cometimento da infração penal (CP, art. 107, V, c/c o art. 104). Doutrina. Precedentes. (STF - Inq-AgR 2139 - RS - TP - Rel. Min. Celso de Mello - DJU 29.06.2007).”
“Ação penal privada - crimes contra a honra - veiculação das alegadas ofensas morais em coluna jornalística (coluna "Boechat") - coluna jornalística cujo titular ("Boechat") tem, no processo de pesquisa, redação e finalização das matérias nela veiculadas, a ativa colaboração de dois (2) outros jornalistas - obra jornalística coletiva - oferecimento da queixa-crime somente contra o titular da coluna jornalística, com exclusão dos colaboradores que nesta se acham nominalmente identificados - ofensa ao princípio da indivisibilidade da ação penal privada (CPP, art. 48) - renúncia tácita ao direito de querela (CPP, art. 49) - extinção da punibilidade (CP, art. 107, v, c/c o art. 104) - habeas corpus deferido - Tratando-se de ação penal privada, o oferecimento de queixa-crime somente contra um ou alguns dos supostos autores ou partícipes da prática delituosa, com exclusão dos demais envolvidos, configura hipótese de violação ao princípio da indivisibilidade (CPP, art. 48), implicando, por isso mesmo, renúncia tácita ao direito de querela (CPP, art. 49), cuja eficácia extintiva da punibilidade estende-se a todos quantos alegadamente hajam intervindo no suposto cometimento da infração penal (CP, art. 107, V, c/c o art. 104). Doutrina. Precedentes. (STF - HC 88165 - RJ - 2ª T. - Rel. Min. Celso de Mello - DJU 29.06.2007).”
[5]CAPEZ, Fernando. Curso de Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 1997, pp. 120 e 121. GAMA MALCHER, José Lisboa da. Manual de Processo Penal, 2ª ed., Rio de Janeiro, Freitas Bastos, pp. 288 e 289. GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal, 2ª ed., São Paulo, Saraiva, 1993, pp. 112 a 114. MIRABETE, Julio Fabbrini. Código de Processo Penal Interpretado, 8ª ed., São Paulo, Atlas, 2001, pp. 210 e 211. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal, 11ª ed., São Paulo, Atlas, 2001, pp. 134 e 135. NORONHA, E. Magalhães. Curso de Direito Processual Penal, 22ª ed., São Paulo, Saraiva, 1994, pp. 31 a 41. SILVA FRANCO, Alberto e Outros. Código de Processo Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, São Paulo, RT, vol. 1, p. 1174. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal, 17ª ed., São Paulo, Saraiva, 1995, vol. I, pp. 383 a 385.
[6]STJ, 6.ª Turma, Resp 132343/MT, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, v.u., j. 25.08.2004; in DJU de 13.09.2004, p. 297; STJ, 5.ª Turma, HC 41228/SP, Rel.ª Min.ª Laurita Vaz, v.u., j. 28.06.2005.
[7]Ver HC – Rel. Adrinao Marrey – RT 413/92 e Franco, Alberto Silva ET all. Código de Processo Penal e sua Interpretação..., São Paulo: RT, 2001, p. 1129.