sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Artigo: Foucault e o Direito Penal: Vigiar e Punir







Introdução



Michel Foucault (1926-25/06/1984) diz que, para Nietzsche, o filósofo é aquele que faz o diagnóstico do pensamento. Há duas formas de assim proceder: procurar abrir novos caminhos, como o fez Heidegger, ou ser um arqueólogo (estudar o espaço, condições e modo de constituição de um determinado pensamento). Foucault não se diz nem um e nem outro. Todavia, se aproxima muito do arqueólogo porque preocupado com as condições de aparecimento e desenvolvimento do pensamento, apesar de Foucault nunca ter assumido explicitamente essa postura.



Foucault critica o pensamento paradigmático sobre esse próprio pensamento. Quer desestabilizar o que parece já estar claro. Faz provocações, rui a investigação conclusivamente clara. O que era o óbvio não é mais. O que era pacífico deixa de ser. E o faz com a maestria que só um gênio conseguiria.



Acha as interligações até então consideradas inexistentes dos paradoxos e depois estabelece vínculos onde os historiadores, filósofos etc. não conseguiam enxergar. Quebra a idéia de bipolaridade. Opressor e oprimido é uma forma de ficção dentro da realidade, todavia, a ficção faz parte da engrenagem da manutenção da realidade. O opressor passa a ser o oprimido. O oprimido passa a ser o opressor.



Até que ponto a compaixão é boa? Porque no ato de se ter compaixão se estabelece uma bipolaridade (sujeitos ativos e passivos da compaixão) e isso gera um etiquetamento que traz uma segregação, uma exclusão: nós e eles. Foucault demonstra isso em vários aspectos da sua filosofia que traz como conseqüência primeira a insegurança total nos institutos.



Foucault e o Direito



O filósofo possui um interesse não-formal sobre o Direito. Ata-se, sobremaneira, nas rupturas que o Direito (posto claramente como lei, em Vigiar e Punir) fomenta nos discursos convencionais. Entretanto, não há uma unidade do Direito em Foucault. O Direito não pode ser imutável para o filósofo porque o Direito é ciência que se submete aos paradigmas dominantes. Mas, as bases jurídicas são, evidentemente, correlatas aos valores dominantes. Assim, como não é sempre a mesma realidade, não pode ser sempre um mesmo Direito. O Direito na História da Loucura é diferente do Direito do Curso do Collége de France que é diferente do Vigiar e Punir que é diferente do que existe n'A Vontade do Saber... Não há unidade no pensamento de Foucault sobre o Direito.



Simplesmente isso é irrelevante para o Professor francês porque ele aponta a necessidade de uma análise histórica[1]. Mas, pode-se extrair três noções indissociáveis: direito, poder e verdade[2]. Seu marco teórico pergunta "quais são as regras de direito que as relações de poder põem em funcionamento a fim de produzir discursos de verdade?"[3] Direito, poder e verdade: como isso se organiza em uma sociedade?



Foucault estuda o Direito em dois planos: o teórico e o prático. E quer destruir essa bipolaridade, milimétrica e exaustivamente, ao indagar como certas práticas do Direito escapam aos mecanismos de normalização? Como é a resistência a tais mecanismos?



É bem verdade que não se pode singularizar o Direito, muito menos em Foucault, e principalmente nele. Mas, pode-se fundar uma linha de discurso que fundamenta e condiciona práticas: a coação e a sanção, por exemplo, dentro de determinados paradigmas.



Não seria exagero nenhum concluir que Foucault trabalha o Direito na perspectiva do não Direito. Quando nós, juristas, apontamos em nossos discursos os sujeitos do Direito, Foucault está na contra-mão estudando-os como os sujeitados ao Direito. E quer ligar esse paradoxo e estudar, depois, essa interligação que criou para desestabilizar as verdades postas. Veja bem: Fala-se dos mesmos sujeitos. A perspectiva de Foucault, quando assimilada, é desconcertante.



Vigiar e Punir



A grande mística que Foucault nos remete no livro Vigiar e Punir é a constatação de que o iluminismo não foi um movimento 'humanista'. "Não se trata de um acaso, nem de uma gratuita e generosa humanização do sistema penal, mas da culminação de um longo processo."[4] Parece um paradoxo. E é, inicialmente. E faz crer o quão mais perigoso é o iluminismo frente ao Antigo Regime. O Iluminismo é desarticulado ao desvendar o resultado do surgimento da prisão substituta dos suplícios. O humanismo é um disfarce para perpetuar uma estrutura de poder e de verdade. É um paradoxo primeiro, para nós penalistas, essa conclusão porque, até então temos o Iluminismo como marco fundamental do surgimento da primeira geração dos Direitos do Homem. E é sobre o indivíduo que se esconde esse paradoxo. "O indivíduo é, sem dúvida, o átomo fictício de uma representação 'ideológica' da sociedade; mas é também uma realidade fabricada por essa tecnologia específica de poder que se chama a 'disciplina'. Temos que deixar de descrever sempre os efeitos de poder em termos negativos: ele 'exclui', 'reprime', 'recalca', 'censura', 'abstrai', 'mascara', 'esconde'. Na verdade o poder produz; ele produz realidade; produz campos de objetos e rituais da verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção."[5] O homem não é pensado a partir do próprio homem. Mas, é estudado a partir dos mecanismos discursivos pelos quais o indivíduo se constitui a si próprio como delinqüente (sem dúvida um viés que se liga ao Labeling Approach). Foucault perquire sobre a mudança paradigmática existente entre o Antigo Regime e o Iluminismo, mas com olhos postos nas relações de alteridade e de como essas relações realizam os intercâmbios entre diferença e identidade. Aqui o problema nevrálgico do Iluminismo: "... e quando se quer individualizar o adulto são, normal e legalista, agora é sempre perguntando-lhe o que ainda há nele de criança, que loucura secreta o habita, que crime fundamental ele quis cometer."[6]



Foucault chama a atenção que a Reforma, antes de se crê-la humanista, significa a passagem de um mecanismo histórico-ritual dos suplícios para um mecanismo científico-disciplinar onde, a partir do início do século XIX, a prisão torna-se a punição mais comum. "O Direito Penal passa a poupar o corpo para agir diretamente na alma, melhor, que 'cria' a alma."[7] Estuda a sucessão histórica dessas diferentes estruturas jurídico-punitivas, mas sempre se refere a elementos extra-jurídicos ou não-jurídicos. Foucault não se preocupa com a punição legal. Foucault busca encontrar objetos não necessariamente jurídicos que a compõe. Esses são os objetos que lhe interessam (não-jurídicos). Objetos marginais, nebulosos, mascarados, disfarçados que arranjam ou agenciam o poder que envolve a prática e a técnica, o saber e o discurso do poder. Poder legal que reproduz verdade e se sustenta. A introdução da técnica de encarceramento significa que o poder "produz a população criminosa e a administra em nível institucional, de modo a torná-la inconfundível e a adaptá-la a funções próprias que qualificam esta particular zona de marginalização." [8]



A alma passa a se submeter a dominação pelo novo procedimento político-jurídico ao se estabelecer essa nova economia. O homem deve ser útil e dócil. A prisão como um modo humano de repressão aos delitos é uma ficção.



Do suplício às penas proporcionais



Pode-se falar que, segundo Foucault, a lei é simbolizada no corpo punido. A mesma lei que é desrespeitada é a que impõe suplícios e expressa a vontade do soberano, segregando, também, o agressor (criminoso). A lei aplicada é executada procedimentalmente, num verdadeiro teatro político[9]. Direito é lei, nada mais claro nessas descrições quando se lê Foucault. E o poder soberano é que está em jogo. A vontade do soberano é a lei e a sanção é a conseqüência de desrespeito à lei.



Naquele sistema inquisitivo, o suplício era um antecedente e uma conseqüência. Servia para se obter a confissão que era prova plena. E essa tortura era minuciosamente regulamentada: o seu momento, a sua duração, os instrumentos permitidos, a intensidade que esses instrumentos devem ser utilizados, tudo isso para se produzir a verdade. O suplício, pois, antes mesmo de ser uma pena, tem um significado de determinar a verdade no processo: "O corpo interrogado no suplício constitui o ponto de aplicação do castigo e o lugar de extorsão da verdade"[10]. Passa-se do "ritual de estabelecimento da verdade" para o "cerimonial do castigo público". O que está em questão dessa prática é a lei. O suplício é a mecânica do poder. A lei é a vontade do soberano. A força da lei é a força do soberano. O suplício, então reativa o poder soberano, pois a lei se impõe, implacavelmente, sobre qualquer desobediência. O suplício renova o poder. Entretanto, o suplício passou a ser redefinido como excesso e violência arbitrária do poder. O povo passa a ter medo, porque qualquer um poderia ser condenado, e, por via reflexa, o rei passou a entender o suplício, não como reforço, mas como um perigo para a manutenção do poder, sendo necessário modificar o mecanismo a fim de se perpetuar no status quo.



Ilegalidade e ilegalismos



Na versão francesa da obra, versão original, Foucault utiliza-se da expressão "ilegalismo". Todavia, na tradução para o português fala-se em ilegalidade. Ilegalidade é "illegalité" diferente de "illégalisme" que deveria ser traduzido como ilegalismo[11]. Ilegalismo remete à idéia de um mecanismo praticado à par da legalidade. Denuncia-se uma justiça penal "irregular" devido à "multiplicidade de instâncias" que compunha o poder: justiça dos senhores, justiça do rei, do policial, do povo. Havia lacunas no sistema. Essa noção de ilegalismo visa responder a dificuldade de se explicar como teria sido possível aparecer uma nova tática punitiva. Beccaria[12] apresentava a ideologia da defesa social onde o Direito Penal deveria proteger a sociedade através de uma pena proporcional. Mas, entre a lei e a ilegalidade há um sistema punitivo, neutro, que irá, justamente, definir se a ilegalidade será aceita ou não. Foucault denuncia um interesse de forças, poderes ocultos (e nem tão ocultos...), onde a legalidade e a ilegalidade se acomodam e são aceitas. Ilegalismo é, por assim dizer, um regime de tolerância. Não é tão longe da nossa realidade quando se apontam os mecanismos de exclusão da criminalidade econômica[13], por exemplo. Há diversas formas de ilegalismo: isenção legal (por exemplo, pagamento da dívida antes do início da ação fiscal nos crimes contra a seguridade social, art. 168-A, §2º., CP), inobservância da fiscalização (vista grossa), consuetudo penal, negligência na apuração dos fatos, desclassificação, imunidades parlamentares etc.



Em Foucault, pode-se dizer que o verdadeiro sentido da Reforma não pode ser encontrado na sensibilidade, no humanismo, mas sim no âmbito de uma transformação no regime dos ilegalismos presentes em uma nova política de gestão dos ilegalismos[14]. É que no Antigo Regime os diferentes grupos sociais possuíam uma margem de ilegalismos tolerados. Isso garantia o funcionamento político e econômico da sociedade em que aquele grupo pertencia. O ilegalismo era parte da engrenagem da realidade legal. E era necessário. E isso não existia só no crime, mas na administração em geral, na alfândega etc. O regime dos ilegalismos era parte integrante da dinâmica político-econômica das sociedades. Tanto é assim que há evidências do crescimento econômico da burguesia por decorrência dos privilégios da sonegação de impostos e contrabando.



Muda-se, então, o foco dos ilegalismos dos direitos do homem, do humanismo, para os bens: esse o real significado da reforma humanista do Direito Penal em Foucault. Mudança do ilegalismo do domínio dos direitos para o domínio dos bens.



Objetiva-se o crime, mas também o criminoso (Lombroso). Veja-se, por exemplo, a reincidência que, em algumas legislações, trazia como conseqüência a pena em dobro. "Mais do que um 'ato ilegal', portanto, do que uma 'ilegalidade' determinada, a noção de ilegalismo encerra a idéia de um certo regime funcional de atos considerados ilegais no interior de uma dada legislação, em vigor no interior de uma sociedade. A idéia que parece estar ligada à noção de ilegalismo é aquela de 'gestão', gestão de um certo número de práticas, gestão de um certo número de ilegalidades ou irregularidades que, considerada (a gestão) em conjunto, representa em si mesma uma certa regularidade." [15] Descortina-se, pois uma ficção: a lei seria feita para toda a sociedade.



"O ilegalismo não é um acidente, uma imperfeição mais ou menos inevitável. É um elemento absolutamente positivo do funcionamento social, cujo papel está previsto na estratégia geral da sociedade. Todo dispositivo legislativo dispôs espaços protegidos e aproveitáveis em que a lei pode ser violada, outros em que pode ser ignorada, outros, enfim, em que as infrações são sancionadas (...) Ao final de contas, diria que a lei não é feita para impedir tal ou tal tipo de comportamento, mas para diferenciar as maneiras de se fazer circular a própria lei." [16] É dizer: a lei está, nunca é.



Bibliografia



BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 2ª. Ed.. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: ICC, 1999.



BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1993.



BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.



CALOMENI, Tereza Cristina B. (org.). Michel Foucault: entre o murmúrio e a palavra. Campos, RJ: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2004.



CASTILHO, Ela Wiecko V. de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional.1ª.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.



FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002.



FOUCAULT, Michel. "Des supplices aux cellules", Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. 2, p. 719.



FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 22.



FOUCAULT, Michel. Qu'est-ce qu'um auteur?, In: Cours au Collège de France. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. 1, p. 810.



FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 172.



ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora RT, 1997, p. 277.



[1] FOUCAULT, Michel. Qu'est-ce qu'um auteur?. In: Cours au Collège de France. Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. 1, p. 810.



[2] FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002.



[3] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 22.



[4] ZAFFARONI, Eugenio Raúl, PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: parte geral. São Paulo: Editora RT, 1997, p. 277.



[5] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 172.



[6] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 171.



[7] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 2ª. Ed.. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: ICC, 1999, p. 170.



[8] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução Juarez Cirino dos Santos. 2ª. Ed.. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: ICC, 1999, p. 183.



[9] BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.



[10]FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Tradução de Lígia M. Ponde Vassalo. Petrópolis, Vozes, 1987.



[11] No mesmo sentido: FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 130, nota 201.



[12] BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Hemus, 1993.



[13] CASTILHO, Ela Wiecko V. de. O controle penal nos crimes contra o sistema financeiro nacional.1ª.ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2001.



[14] FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002.



[15] FONSECA, Márcio Alves da. Michel Foucault e o direito. São Paulo: Max Limonad, 2002.p. 139.



[16]FOUCAULT, Michel. "Des supplices aux cellules", Dits et écrits. Paris: Gallimard, 1994. v. 1, p. 719.

Sobre a Ampla Defesa e o Exercício da Advocacia

Como são raros os processos cujos autos não possuam menos de cinqüenta folhas, o advogado, diligencioso, deve requerer permissão para fotocopiar os autos, quando não for o caso de carga. Não é raro, todavia, na práxis, a negação de saída dos autos de cartório para as fotocópias. Ilogicamente, permite-se, entretanto, que um serventuário saia de seu trabalho para levar os autos à sala de fotocópias, mas para fotocopiar – somente - até o número de dez fotocópias, nada mais...

Como expõe Gladston Mamede “examinar é o ato mais simples de folhear, verificar o que consta dos autos, ler algumas páginas e, como garantido pelo próprio Estatuto, tomar apontamentos e solicitar (ou tirar) cópias; é, portanto, um ato informal (...)”. Tal se deve para municiar o advogado de documentos a fim de argumentar, requisitar, impetrar ordens, pedir a liberdade provisória, enfim, tutelar os direitos de terceiros onde, sem os autos, o advogado, assim como o juiz e o representante do Ministério Público, não poderá efetivar seu trabalho, não passando de simples ornamento quimérico. Como aponta Frederico Marques : "Dentro das necessidades técnicas do processo deve a lei propi¬ciar ao autor e réu uma atuação processual em plano de igualdade no pro¬cesso, deve dar a ambas as partes análogas possibilidades de alegação e prova".

A lei é clara ao permitir, ao advogado, o acesso aos autos e estudá-lo. Isso é o mínimo. O advogado, aliás, indispensável à administração da justiça (art. 133, CF/88), com o exame dos autos é que postula direitos, defende interesses, combate injustiças. O exame e retirada dos autos trata-se de prerrogativa do advogado, do princípio da liberdade da profissão , ilimitado, inclusive, pelo imperativo do segredo de justiça. O interesse estatal de investigar não se sobrepõe a nenhum direito fundamental do homem ou do cidadão. A História está cheia de exemplos de perseguições e injustiças sob o manto cego da busca pela eqüidade. “Em Nome do Pai” muitos já foram sacrificados. Em nome da Justiça já se mataram inimigos particulares. Os direitos do homem e do cidadão são indisponíveis, é dizer que transcendem à própria pessoa para descansar em solo público. Sem o acesso aos autos não há defesa, sem defesa não há Justiça, sem Justiça não há Estado Democrático de Direito. De outro modo, esvaziar-se-ia a garantia constitucional do acusado (CF, art. 5º, LXIII), que lhe assegura, quando preso, a assistência técnica do advogado. É evidente que este não lhe poderá prestar tal mister se lhe é sonegado o acesso aos autos.

Em plano infraconstitucional, a rara, mas existente, prática despótica também constitui uma grave violação ilegal contra o jurisdicionado e o advogado. Na verdade, nos incisos XIII a XVI do artigo 7º. do EAOAB (Lei 8.906/94) estão discriminadas garantias processuais, de caráter especial, releve-se, para o exercício da advocacia ligadas às faculdades de examinar, ter vista e retirar autos de inquéritos, processos administrativos ou judiciais. Ex vi:



“examinar, em qualquer órgão dos poderes Judiciário (...), autos de processo findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos.”



Ressalte-se que não há dispositivo a excetuar a vista dos autos quando os mesmos estiverem conclusos à autoridade e a referência ao segredo de Justiça deve ser interpretado restritivamente. Quando se tratar de processo penal, tem o advogado, o direito de ter até mesmo "vista" dos autos fora do cartório, derrogada que está a disposição restritiva do art. 501 do CPP conforme reiteradas decisões do Pretório Excelso.

Vale ainda lembrar as disposições contidas na Lei 3.836, de 14/12/60, artigos 2° e 3°, que dispõem sobre a retirada dos autos pelo advogado na forma e nos prazos legais, cuja inobservância, igualmente, poderá facultar à parte interessado a utilização do mandado de segurança como instrumento eficaz para eliminar a ilegalidade ou abuso de poder da autoridade constituída .

A jurisprudência mais abalizada também já se deparou com procedimentos inquisitivos, garantindo ao advogado o direito de exercer sua atividade:



"ADVOGADO - Pedido de vista de autos – Indeferimento pelo Juiz-Violação de direito líquido e certo - Segurança concedida. Ementa oficial: É atentatória ao direito do advogado a decisão que o proíbe de ter vista dos autos fora do cartório, notadamente quando instado a se pronunciar nos mesmos. Violação a direito líquido e certo caracteriza¬da. Segurança concedida."



Por evidente, não se compreende que, afora as hipóteses limitativas legais, claramente alinhadas no § 1° do art. 7°, do Estatuto da Advocacia, já citado, se possa, arbitrária ou ilegalmente, impor condições ou limitações ao livre exercício do profissional do direito. É possível indeferir a vista e retirada dos autos fora de cartório quando, por decisão fundamentada, alegar existência de documento original de difícil restauração ou quando ocorrer circunstância relevante. Mas, no primeiro caso, a secretaria deve retirar cópias do documento e fazer juntar o original em cofre excluindo-se, assim, o óbice apontado. No segundo caso, deve-se encontrar caminho a permitir a mais ampla defesa, princípio preponderante de cunho público.

Nem mesmo a famigerada Resolução do CJF no. 507/06, promulgada recentemente, é capaz de limitar o direito fundamental, pois, ao que consta, o respeitável Conselho da Justiça Federal não é órgão legislativo de matéria processual (art. 22, I, CF), devendo ser desconsiderado o “conselho” de dificultar o acesso dos autos aos patronos (artigo 5º. da referida Resolução) . Trata-se de pensamento equivocado, vencido há dezenas de anos, apoiado na ideologia da defesa social. Essa pseudo-dicotomia entre defesa social e direitos fundamentais permanece nos discursos do movimento “lei e ordem” sustentando a ilusão do referido conflito de interesses. Aí o equívoco. A idéia de segurança no Estado Democrático de Direito não exclui a liberdade individual, senão complementa-a (Canotilho). A Resolução, dessa forma, é simbólica porque visa fundar um conflito só existente na vencida ideologia da defesa social e que tem por conseqüência última o esvaziamento do sistema processual em favor do autoritarismo estatal. Queremos apontar que não é possível, no Estado de Direito, democrático, contrapor dois pilares: a busca da Justiça e a defesa do indivíduo. Colocar o processo penal nesse patamar é desvincular a finalidade do Estado dos direitos fundamentais e isso é conceitualmente paradoxal (John Rawls). Desde o século passado, não é possível entender mais o processo penal como mecanismo kafkiano de punir culpados.

O direito em jogo no processo penal é a própria liberdade, só restringível quando o juiz adquira pleno convencimento de que ficou inteiramente evidenciada a prática do crime e a sua autoria. Por isso, a Carta Magna não se limitou a assegurar ao réu o exercício de sua defe¬sa, mas no art. 5.°, LV, garantiu-lhe a mais ampla defesa, ou seja, de¬fesa sem restrições, não sujeita a eventuais limitações impostas ao órgão acusatório . Mas, mesmo nesse último caso, como expõe Jader Marques , “o sigilo não pode, jamais vencer a prerrogativa do defensor”.

Na esteira desses pronunciamentos, não se vislumbra, data venia, na espécie, razão para manter a prática inquisitorial, vedando a extração de cópias e / ou saída de cartório dos autos, seja na fase pré-processual ou processual. Tal procedimento constitui verdadeiro constrangimento ao exercício profissional, pois se é permitido compulsar e até mesmo fotografar a peça investigatória, qual a razão para vedar a cópia integral dos autos?

Dir-se-á, talvez, que ao advogado do indiciado não pode ser concedido o direito de vista dos autos do inquérito policial. Vige a idéia nada garantista da inaplicabilidade dos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa ao inquérito policial, que não é processo. Afirmam que o inquérito policial não é destinado a decidir litígio algum e que estaria na esfera administrativa. Todavia, há direitos fundamentais do indiciado no curso do inquérito, entre os quais o de fazer-se assistir por advogado, o de não se incriminar e o de manter-se em silêncio. “Ademais,” conclui Felipe Martins Pinto, “é sabido que todo o manejo de poder envolve o risco de ocorrência de abusos, e é por esta razão, que um Estado deve submeter-se ao domínio das normas, prevenindo-se de arbitrariedades.” Esse entendimento é endossado pelo Ministro Sepúlveda Pertence : “Concluo, pois, que o advogado do indiciado em inquérito policial, titular do direito de acesso aos autos respectivos – que, na verdade, é prerrogativa de seu mister profissional em favor das garantias do constituinte – não é oponível o sigilo que se imponha ao procedimento.”

Desta maneira, a proibição ou vedação por ato verbal ou escrito da retirada de autos por parte da autoridade judiciária ou adminis¬trativa, constitui gravame indevido e abusivo, passível de correção, via mandado de segurança, pela parte diretamente interessada ou pelo patrono que vier a ser constituído. Desrespeitado o princípio, tratar-se-á de cerceamento de defesa e configurado estará o abuso de autoridade .

Do complexo de direitos do indiciado é corolário primeiro e prerrogativa universal ter, o advogado, acesso aos autos respectivos. Tal direito não se exclui o inquérito ou o processo que corre em sigilo. O preceito legal é irrestrito resolvendo-se, em favor da defesa, eventual conflito com os interesses do sigilo das investigações. Dessa maneira, configurado está o direito líqüido e certo que têm os advogados para copiar os autos quantas vezes forem necessárias: segredo e Justiça jamais andaram de mãos dadas.

A Prisão e a Menoridade




Um adolescente de 16 anos era integrante do grupo que arrastou o corpo de João Hélio, 6 anos, por 7 quilômetros pelas ruas do Rio de Janeiro. Volta, à tona, o debate sobre a diminuição da maioridade penal e sobre as causas da violência, como se os crimes fossem inesperados e imprevisíveis. Foi assim também quando se assassinou um famoso jornalista no Rio, se queimou um índio Pataxó em Brasília, com o caso Daniela Perez ou com o caso Miriam Brandão... Uns mais discutidos na mídia, outros menos. Observe-se mesmo que a reação da sociedade é muito maior, agora, do que quando, todos os dias, assassinam inocentes (menores também) nas grandes capitais brasileiras ou mesmo quando ocorreu a chacina da Candelária, onde sete crianças foram friamente executadas. É preciso, entretanto, relembrar dois fatos: a prisão não resolve o problema da criminalidade e o menor já se sujeita a medidas repressivas.

A prisão sempre foi uma instituição hipócrita. Ela não serve para reintegrar, mas para esconder os criminosos, excluí-los. O sistema penal é bruto e foi feito para esse fim. Essa constatação frustra as ambições do poder moderno, que (como mostrou Michel Foucault em Vigiar e Punir) aposta na capacidade de reeducar apenas segregando os criminosos. Quanto ao segundo fato, a mídia é a principal responsável pela propagação do engano à população. O ECA prevê, sim, providências sócio-educativas contra o menor-infrator: advertência, liberdade assistida, semiliberdade e, até mesmo, a internação (leia-se “prisão” mesmo). Talvez, e, aqui, sim, uma discussão razoável, devêssemos incluir uma hipótese de internação do infrator (que é medida sócio-educativa voltada para sua proteção e também da sociedade) maior que três anos (ou sobrepor a idade de 21 anos). Trata-se de, apenas, um pequeno ajuste nos artigos 112 e 121 do ECA.

A ambição ortopédica desmedida e revolucionária de diminuir a idade penal é um pensamento tacanho (a par de sua inconstitucionalidade e desrespeito à Convenção da ONU). É idéia corriqueira, ingênua e, por isso mesmo, perigosa. Nesses momentos, por ignorância emotiva ou sensacionalismo, é normal que pessoas venham aos jornais para defenderem a diminuição da idade penal, o aumento das penas, a pena de morte ou mesmo (pasmem) violências de presos contra outros presos dentro dos presídios como forma de se alcançar uma Justiça platônica.

Trata-se de reação irracional onde se acumulam inverdades patentes e pensamentos justiceiros. Esquecem-se que a violência nunca será debelada em nossa sociedade, não há uma solução final para o crime (leia-se Totem e Tabu de Freud). As pessoas querem resolver o problema da criminalidade em prazo curto, quase que se fosse possível resolve-lo através de mágicas ou encantamentos. Mas, não se pode: sobra a balbúrdia, a inquietação generalizada, a desordem intelectual que, os juristas, não podem perfilar, pois não há nada de novo, os discursos são os mesmos desde Amaral Netto. Na verdade, não falta punição, faltam investimentos e decisões políticas e sociais.

Princípio da Possibilidade de Refutação como Corolário da Ampla Defesa

“Quem deu a ti, carrasco, esse poder sobre mim?”

(Goethe)



Desde o advento da Carta, nesta República, há garantias fundamentais expressas. Dentre essas, o contraditório, a ampla defesa e a igualdade de partes (ou par conditio) que formam o arcabouço do axioma nulla probatio sine defensione e serve para nortear legisladores e tribunais contra as investidas injustas e arbitrárias.

O contraditório é “a garantia de participação, em simétrica paridade, das partes, daqueles a quem se destinam os efeitos da sentença, daqueles que são os ´interessados´, ou seja, aqueles sujeitos do processo que suportarão os efeitos do provimento e da medida jurisdicional que ele vier a impor” (Aroldo Plínio Gonçalves, Técnica Processual e Teoria do Processo. Rio de Janeiro: Aide, 1992, p. 120).

O princípio da ampla defesa está expressamente previsto no artigo 5°, inciso LV, da Carta Magna de 1988. Vicente Grego Filho afirma que a ampla defesa é a “oportunidade de o réu contraditar a acusação através da previsão legal de termos processuais que possibilitem a eficiência da defesa. (...) constituída a partir dos seguintes fundamentos: "a) ter conhecimento claro da imputação; b) poder apresentar alegações contra a acusação; c) poder acompanhar a prova produzida e fazer contraprova; d) ter defesa técnica por advogado, cuja função, aliás, agora, é essencial à Administração da Justiça (art. 133 [CF/88]); e e) poder recorrer da decisão desfavorável". (Manual de Processo Penal, 5a ed., São Paulo, Saraiva,1998)

A ampla defesa deve ser o cerne ao redor do qual se desenvolve o processo penal. Compreende, em linhas gerais, o direito à defesa técnica durante todo o processo e também o direito ao exercício da autodefesa.

A primeira apresenta-se como uma defesa necessária, indeclinável, que deve ser plenamente exercida visando à máxima efetividade possível. A segunda, por sua vez, é renunciável, exercida pelo próprio acusado a partir da atuação pessoal junto ao magistrado por meio do interrogatório ou pela presença física aos principais atos processuais (Antônio Sacarance Fernandes, Processo Penal Constitucional, 4ª. ed., SP: RT, 2005, p. 294. No mesmo sentido: Sérgio Cademartori e Marcelo Coral Xavier. Apontamentos iniciais acerca do Garantismo, Boletim do ITEC, ano I, n.04, Porto Alegre, p. 6.).

O fato da ampla defesa ser renunciável não indica que é dispensável. Tão somente garante que poderá, o acusado, se assim desejar, declinar sua presença no interrogatório e em outros atos processuais de instrução, bem como abster-se de postular pessoalmente aquilo que lhe é permitido por lei. Não induz, todavia, submissão ao arbítrio do julgador. Mas, é essencialmente ao réu preso, que está sob o pálio da justiça e não tem a escolha de ir à audiência se defender, mesmo querendo, que se deve dar essa guarita. Já se afirmou em julgamento: “... ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, por meio da presença do acusado aos atos processuais.” (RTJ 46/653)

A doutrina, na lavra do processualista português, Jorge de Figueiredo Dias, esclarece que se deve “dar ao argüido a mais ampla possibilidade de tomar posição, a todo o momento, sobre o material que possa ser feito valer processualmente contra si, e ao mesmo tempo garantir-lhe uma relação de imediação com o juiz e as provas” (Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, p. 432).José Frederico Marques, (Tratado de direito processual penal, Saraiva, 2º. Vol., p. 153), reforça extreme de dúvidas que a “defesa técnica não se torna a única a poder desenvolver-se no processo penal. A seu lado existe a autodefesa, a qual consiste na participação direta do réu em quase todos os atos do processo”. Segue nessa mesma linha de pensamento Rogério Lauria Tucci ensina: “à evidência que se deverá conceder ao ser humano enredado numa persecutio criminis todas as possibilidades de efetivação da ampla defesa, de sorte que ela se concretize em sua plenitude, com a participação ativa, e marcada pela contrariedade, em todos os atos do respectivo procedimento, desde a fase pré-processsual da investigação criminal, até o final do processo de conhecimento, ou de execução, seja absolutória ou condenatória a sentença proferida.” (Direitos e Garantias individuais no processo penal brasileiro, Saraiva, 1993, p. 205).

A autodefesa, portanto, apresenta-se como direito de audiência, direito de presença e direito de, pessoalmente, postular sua defesa, quando presente o ius postulandi.

Os conceitos de contraditório e ampla defesa são atuais, embora seu princípio fundamental, audiatur et altera pars, seja já bastante difundido. Como expõe Luigi Ferrajoli: “O pensamento iluminista, coerente com a opção acusatória, reivindicou a presença de um e de outro a todas as atividades probatórias. Voltaire protestou contra a possibilidade de que o confronto entre o imputado e as testemunhas fosse entregue à discricionariedade do juiz em vez de ser obrigatório. (...) E o mesmo fez Pagano, que desejou que as testemunhas de acusação ‘serão interrogadas ex integro na presença do réu’ e sublinhou ‘o quanto ajuda a conhecer a verdade tal contradição’” (Direito e Razão, Teoria do Garantismo Penal, SP: RT, 2002, p. 491). Rudolf von Ihering pugnou a igualdade jurídica entre as partes, “a sombra e a luz” (A evolução do Direito. Salvador: Progresso, 1956).

A praxe forense, entretanto, vem induzindo à verdadeira inexistência material destas garantias, eis que a presença do réu preso, comumente, é tida como dispensável. Ex vi: “A falta de requisição do réu preso para acompanhar a audiência não induz nulidade se o seu advogado constituído comparece ao ato” (STJ – 6ª. T – HC 21.739). Tememos pela razão a Francesco Carnelutti quando, num arroubo de desânimo, afirmou que “o juiz não tem a paciência e se a tivesse não teria o tempo para escutar a história do acusado, nem mesmo por resumo” (As Misérias do Processo Penal, SP: Conan, 1995, p. 51).

Atinge-se, assim, o princípio da possibilidade de refutação, a que trata Luigi Ferrajoli (Direito e Razão, op. cit., p. 124) e o que entende o STF em decisões mais garantistas: “O direito de estar presente à instrução criminal conferindo ao réu e seu defensor assenta princípio do contraditório penal. Ao lado da defesa técnica, confiada a profissional habilitado, existe a denominada autodefesa, decorrente da presença do acusado aos atos da instrução, quando lhe é dado contraditar a testemunha ou argüir circunstâncias ou defeitos que a tornem suspeita de parcialidade ou indigna de fé (art. 214 do CPP), bem assim auxiliar seu defensor na oportunidade das reperguntas.” (STF – RHC – Rel. Néri da Silveira – RT 601/443)

Audiência de instrução de réu preso ausente, quando à disposição do juízo, é um escândalo que pulula voraz a condenar a “justiça administrada na sombra”, como diria Romagnosi (Istituzioni di civile filosofia, ossia di giurisprudenza teorica, Opere, t. XIX, Piatti, Firenze, 1839, liv. IV, p. 265). Inocência e segredo jamais andaram juntos...

Para que se tenha a verdadeira existência do princípio do contraditório e da ampla defesa é mister que haja contato entre réu e seu defensor. Inclusive durante a audiência de instrução. O réu também tem o direito de contraditar com contra-hipóteses e contraprovas. Se for verdade que o advogado deve assistir o réu, informá-lo da situação que se encontra perante o juízo, não menos verdadeiro é que o réu também deve ter a oportunidade de orientar o seu advogado, chamar-lhe atenção para suspeições, inimizades, mentiras que as testemunhas, no ato de depor, fantasiam.

O art. 5o, inc. LXIII, da CF/88, assegura ao preso assistência ao advogado. É evidente, então, para que se tenha perfeito o contraditório, sem prejuízo para a defesa, deve estar também o advogado acompanhado do réu em audiência, mormente em se tratando de réu preso, à disposição do juízo.

A presença do réu preso na produção da prova é elemento assegurador da plenitude do exercício do direito de defesa e do contraditório que a Constituição Federal e a lei processual penal instrumentaliza. Como conclui Rosemiro Pereira Leal, “ausente o contraditório, (o processo) perderia sua base democrático-jurídico-principiológica e se tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida imponderável da liberdade das partes.” (Teoria Geral do Processo, 2ª.ed., Porto Alegre: Síntese, 1999, p. 191)

O réu preso, à disposição do juízo sentenciante, tem também o direito de assistir, comparecer e presenciar os atos processuais, principalmente sendo ato instrutório. O quadro processual é extremamente adverso aos direitos e interesses do acusado que se configura por inércia imputável exclusivamente ao Poder Público. A gravidade é acentuada pela ausência, involuntária, do próprio réu aos atos de instrução processual, decorrente de sua não-requisição pelo juízo competente. Deve-se entender comprometida a autodefesa, anulando-se o processo, conforme remansosa jurisprudência e doutrina.

Ao versar o tema, Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo Penal, vol. I/475, 17ª. ed., 2005, SP: Atlas) expende magistério irrepreensível, verbis: “É causa de nulidade a ausência de requisição do réu preso na mesma unidade da Federação, quando é de conhecimento do juízo.” Também Antonio Scarance Fernandes (Processo penal constitucional, 4ª. ed., SP: RT, 2005, p. 81): “A presença do acusado no momento da produção da prova testemunhal é essencial, sendo exigência decorrente do princípio constitucional da ampla defesa. Estando na audiência, pode ele auxiliar o advogado nas reperguntas a serem dirigidas à testemunha ouvida. Por isso, em caso de acusado preso, este deve ser requisitado, ainda que a prova testemunhal seja colhida em precatória.”

Trata-se de direito subjetivo público do acusado. Tem a própria garantia da jurisdição a impedir injustiças patentes, a olhos postos. Sendo evidente que se infringe uma norma constitucional, mais claro ainda que desse vício patente só possa advir duas conseqüências: a nulidade absoluta ou a inexistência do mesmo, sendo mesmo desnecessária a demonstração de prejuízo. É também a conclusão da mais alta corte desta República: “O direito de estar presente à instrução criminal garante ao acusado a ampla defesa. A violação desse direito importa em nulidade absoluta, e não simplesmente relativa do processo.” (RTJ 79/110)

A doutrina mais abalizada é uníssona na lavra de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (As nulidades no processo penal. 3ª. ed., SP: Malheiros, 1993, p. 133): “A validade da audiência depende, assim, de providências prévias... O acusado preso deve ser requisitado (art. 360, CPP), sob pena de invalidade da prova, colhida sem sua presença...” Também José Frederico Marques (Elementos de direito processual penal, 2 ed., RJ: Forense, 1965, vol. II, p. 64): “A autodefesa é defesa particular do acusado, através da participação em vários atos processuais e da presença àqueles que se realizam coram populi para instrução e debates da causa.” Esse também o pensamento de Antônio Magalhães Gomes Filho: “O imputado deve participar de todos os atos do processo, principalmente os da instrução, a fase processual mais decisiva para a aferição da efetividade do contraditório; é aqui, com efeito, que a participação ativa dos interessados mais se justifica; são as partes que tiverem contato com os fatos e estão mais aptas a trazê-los ao processo; por isso mesmo, também são elas que possuem os melhores elementos para contestar e explorar as provas trazidas pelo adversário, possibilitando ao julgador uma visão mais completa – e ao mesmo tempo crítica – da realidade” (Direito à prova no processo penal. São Paulo: RT, 1997, p. 154).

Em tal processo, nunca se poderá guardar certeza da prova porque valorada às escuras. Certamente a presença do réu traz outro deslinde à causa, pois outro teor tem a prova oral e diversa a sua valorização.

Também a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (art. 8, inc. 2, f, decreto nº 678 de 06.11.1992 - DOU 09.11.1992) assegura o direito de inquirir a testemunha. Ex vi: “Art. 8º (...) 2. Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) f) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos.”

Parece-nos inquestionável o direito do réu em estar presente ao ato procedimental. O juízo penal deve ser o principal contribuidor da lógica do próprio réu e não seu algoz inquisidor. Observe-se o pensamento da insigne Ada Pellegrini Grinouver: “O réu, como qualquer cidadão, é portador de uma série de direitos, de relevância prioritária e autônoma. Tais direitos devem ser tutelados pela própria autoridade jurisdicional que, no exercício de sua atividade, encontra, assim, uma série de limites.” (Liberdades públicas e processo penal, RT, 1982, p. 15). É, em fim, inconcebível que o juiz se possa pretender, cegamente, como substituto dos interesses pessoais do réu. Parafraseando Bentham (Traité des preuves judiciaires, cit. por Luigi Ferrajoli, op. cit., p. 493): “a verdadeira honradez de um juiz consiste em não exigir jamais uma tal confiança, em refuta-la quando se lha quiser atribuir, em colocar-se acima de qualquer suspeitas, impedindo que elas possam nascer e oferecendo ao público o espetáculo da sua consciência e de sua virtude.”

Punctum Diabolicum: A demonização do usuário de drogas e a sentença como exorcismo



"Examination of a Witch" Thompkins H. Matteson, 1853.

Punctum Diabolicum: A Nova Lei de Drogas

Texto publicado em 2006.
Warley Belo
Advogado Criminalista/MG
Mestre em Ciências Penais / UFMG
Professor de Direito Penal
Professor de pós-graduação da UFJF
Sumário: 1. Introdução 2. Conceito de droga ilícita 3. Drogas: um problema extra-penal? 4. O bem jurídico tutelado 5. A demonização do usuário e a sentença como exorcismo 6. Guerra às drogas: violência contra a sociedade 7. Propostas 8. Conclusão
Resumo: Com a nova Lei de drogas, reabre-se a discussão em torno do polêmico assunto. A criminalização do uso tem como objeto jurídico a saúde pública, mas não há preocupação em demonstrar se o grau de lesão é aceitável ou mesmo existente em condutas como o simples porte de substância. O grave problema social apresentado pelo uso de drogas seria em decorrência de sua ilegalidade aleatória e ausência de políticas públicas. Conclui apresentando propostas para minimizar o problema.
Palavras-chave: Drogas. Criminalização. Bem jurídico. Política repressiva. Violência.
1. Introdução
A nova Lei de drogas[1] (Lei 11.343/06) mudou o cenário político-repressivo da legislação penal ao despenalizar[2] o uso de drogas, cujo ato passa a ser apenado - no máximo - com pena alternativa [3]. Em si, trata-se de medida salutar que coaduna com as modernas políticas europeias. Entretanto, a novatio legis in mellius em quase nada resolverá o problema que aniquila a sociedade. Esse mal, que temos aprendido a conviver e, principalmente, racionalizar, não diz conta à Justiça penal, mas, sim, à Justiça social.
2. Conceito de droga ilícita
A droga, para nós, juristas, é subdivida em lícita e ilícita[4]. Sendo que a única diferença é que as drogas ilícitas são ilícitas, com duas agravantes: o cérebro humano não consegue distingui-las e a lei não faz distinção entre as próprias drogas ilícitas, de forma que o usuário de heroína é punido nos moldes do usuário de cloreto de etila[5].
Para a escolha das substâncias ilícitas, os legisladores apoiam-se nas agências internacionais do sistema penal, como a ONU[6] e a OMS. Entretanto, em rápida pesquisa pelos sítios desses órgãos, observa-se que os conceitos de drogas não indicam o porquê, v.g., a nicotina é lícita e o tetrahidrocanabiol é ilícito.
A par do conceito de droga ilícita inexistir no âmbito científico, o que nos resta claro é que há uma demonização[7] conceitual das drogas pelas agências políticas. É uma política bem próxima da pretendida pela inquisição medieval quando se matavam bruxas para "purificar" a sociedade. Hoje, pretensamente, pune-se para salvar, a todos nós, de uma vida de escolhas contrárias ao sistema de produção. Este tipo de espaço foi analisado por Foucault[8] quando estudou a objetivação do sujeito. O discurso conservador é o mesmo para fenômenos diferentes, como o uso de drogas, a obesidade ou o crime violento.
Constata-se, assim, um preconceito ao empregar o substantivo droga, narcótico, entorpecente, tóxico. Ou mesmo discutir o assunto. Nunca ouvimos alguém dizer que o álcool é um narcótico ou que a cerveja é um entorpecente, apesar de sê-los. Isso porque as adjetivações desses termos induzem a uma concepção de algo intrinsecamente ruim, naturalmente viciante, demonicamente fatal. Essas denominações, portanto, para as substâncias aceitas socialmente, soam desproporcionais ou exageradas.
Mas, as drogas, em si, tanto as lícitas quanto as ilícitas, não são boas ou ruins. Apenas são da natureza (Hipócrates). Bom ou ruim é o que se faz delas. Quem fuma quem? De forma que não existem drogas que produzem dependência, mas, sim, indivíduos dependentes de drogas. A dicção é uma espécie de escravização que segue o princípio do prazer (Freud). A morfina, desse modo, pode ser um remédio ou um veneno... Nada mais correto etiologicamente: a palavra droga, tanto em grego, como no inglês, significa substância nociva à saúde ou veneno.
Os venenos (propriamente ditos) são vendidos livremente. O álcool, seguramente uma droga pesada porque leva à dependência física, encontra pouquíssimas barreiras e, ainda, menores fiscalizações... Mas, nicotina, álcool, chumbo, arsênico, tudo, é tóxico, alguns até mais letais do que a cannabis lineu sativa. Mas, isso nos é totalmente irrelevante. Amanhã ou depois apreciaremos um bom vinho sem nos preocuparmos se é droga. A pecha pejorativa (gíria) não alcança alguns entorpecentes lícitos, pois pessoas bebem e não têm maiores problemas, a não ser, às vezes, uma ressaca ocasional. Esquecem-se de que o álcool se relaciona com a cirrose hepática e diversas outras doenças, a nicotina se relaciona com o câncer. Não queremos, com isso, pedir a criminalização dessas drogas, apenas ressaltar que ambas substâncias viciam fisicamente. Mesmo porque não se pode "criminalizar substâncias" porque essas substâncias não são rés, é seu uso que é criminalizado. De qualquer forma, a lista de malefícios das substâncias lícitas é enorme. Mesmo assim, não são consideradas drogas ilícitas no sentido popular ou legal.
3. Drogas: um problema extra-penal?
O que se conclui é que a droga não é a nicotina ou a raiz ayahuasca. É evidente que existem pessoas viciadas em heroína, como existem pessoas viciadas em cafeína, cocaína. Há preconceito e informações absolutamente distorcidas próprias do nosso fundamentalismo judaico-cristão (Boaventura), já que no mundo muçulmano há países que permitem o uso do cânhamo, mas proíbem o álcool[9]. Os nossos vizinhos argentinos permitem a utilização do cloreto de etila (lança-perfume)... Tratar-se-ia, então, a definição de droga ilícita, de uma questão extra-penal (moral ou cultural)? Se a resposta for positiva, é evidente que a sobrevivência da moral judaico-cristã não deve se condizer com a política de repressão penal.
Ao contrário, se é a saúde pública o bem a ser tutelado (ou o perigo social, como queiram) também deveríamos criminalizar a expedição do monóxido de carbono[10] resultante do transporte? Afinal de contas, aumenta de maneira significativa o risco de problemas pulmonares. Também deveríamos criminalizar o abuso de comida gordurosa? E as drogas lícitas? Acaso não afetam a saúde pública?
Pontuado desse modo, o supermercado colocaria em maior risco de perigo a sociedade do que o usuário de maconha eventual[11].
A disseminação do álcool ou nicotina afeta não apenas ao usuário, como também a toda a sociedade, todavia, há tolerância com essas substâncias em evidente opção política.
Inexoravelmente só resta o argumento extra-penal preservado pelo desrespeito à individualidade. Não se pune porque se afetou a saúde coletiva, pune-se porque se desobedeceu (mala quia prohibita).
4. O bem jurídico tutelado
A política de punição ao usuário com fundamento no bem jurídico, saúde coletiva é, assim, de difícil, senão impossível, resolução pela criminalização primária. Há inúmeros outros fatores em nossa sociedade de risco que não necessitam de criminalização. De forma a só se conceber o uso de drogas como crime se aceito como disfunção social (Jakobs). Nesse funcionalismo radical, esquece-se, como aponta Hassemer[12], que violência, risco e ameaça constituem hoje fenômenos centrais da percepção social. Por outro lado, na sociedade convivem vários agrupamentos normativos e o Direito penal nunca é igual a nenhum deles, senão compartilha valores da parte politicamente mais influente (Baratta). Lesado deve ser o bem jurídico e não o direito.
A sociedade de risco existiu ontem e existirá hoje e amanhã. Na verdade, nunca, em tempo algum, mesmo antes do homo habilis, se pôde falar em sociedade de segurança. Ademais, o Direito penal não se presta a extirpar riscos eventuais da sociedade porque esses riscos são condições existenciais da mesma.
novatio legis, desse modo, nasce velha porque é meramente proibitiva e visa controlar a sociedade criminalizando comportamento instituído por instância extra-penal porque não lesa bem jurídico. Paulo Queiroz[13] ensina-nos:
Conseqüentemente, somente podem ser erigidos à categoria de criminosos fatos lesivos de bem jurídico alheio, e não atos que representem uma "má disposição" de direito próprio. Nesse sentido, aliás, é o "núcleo" do Direito penal brasileiro, visto que não se pune o suicídio tentado, a automutilação, o dano à coisa própria etc., mesmo porque semelhante intervenção seria de todo inútil, isto é, desprovida de capacidade inovadora. E é também por isso que soam claramente inconstitucionais disposições como a do art. 16 da Lei 6.368/76 (porte ilegal de entorpecentes), ou a contravenção de mendicância (LCP, art. 60). Também por isso, são condenáveis os chamados crimes de perigo abstrato, de mera conduta etc., por consagrarem uma ficção, relativamente ao resultado.
A incriminação do uso de drogas, cuja danosidade social é de difícil comprovação, viola o princípio da lesividade[14] e da intervenção mínima e não importa em garantias de uma sociedade utopicamente mais segura. O que há é uma presunção de que a simples realização gramatical do preceito penal coloca em risco o bem jurídico[15]. Não se perquiri se houve, efetivamente, na conduta de, v.g., portar maconha uma lesão à saúde coletiva, há uma presunção iure et de iure que sim, uma periculosidade ex ante, generalista, sem chances a uma discussão sobre a imputação objetiva, ou antes, a prova da causalidade.
5. A demonização do usuário e a sentença como exorcismo[16]
O maior benefício da Lei é começar a trilhar o caminho contra a ideia de que o usuário de drogas ilícitas seja inferior ao usuário de drogas lícitas. Tanto o maconheiro ou o fumante quanto o alcoólatra merecem apóio e tratamento médico e não uma resposta penal. O usuário de drogas é sua própria vítima a partir que se torna toxicômano (doença) e passa a não poder escolher entre usar ou não a droga.
Todavia, o maconheiro não é uma entidade demoníaca, não vende sua alma ao Diabo, não é um inimigo público ou um malandro a merecer resposta do Direito penal do inimigo[17], mas, apenas, um usuário afetado por um vício maléfico a si próprio que precisa ser debelado com informação e ajuda profissional.
O usuário de drogas (lícitas ou não) não pode ser considerado criminoso. A tipificação dessa conduta vai contra os ditames do moderno Direito penal. O bem jurídico tutelado (a saúde coletiva) rivaliza com a esfera privada da pessoa, no direito a ter suas intimidades preservadas, cujo âmbito, deveria ser vedado, ao Estado, intrometer-se.
Se, podemos suicidar-nos, tomando veneno, ou cortarmos os dedos e o Estado não nos pune, não se percebe, analogamente, por que não podemos intoxicar-nos com determinadas substâncias?
A concepção de Cesare Lombroso de criminoso ainda ressoa em alto tom, pois ainda hoje muitos acreditam que o usuário de droga se inseriria no terceiro grupo de criminosos. Ao lado do ser atávico e do epiléptico, existiria o afetado pela "loucura moral", cujo senso ético é suprimido. Até hoje divindades[18] são capazes de perceber esse punctum diabolicum[19]. O positivismo tem como base a evolução natural das espécies e como ápice o nazismo que se equivocou com a política social pública comprometendo de maneira mortal a liberdade dos diferentes.
Aplica-se, assim, o direito penal do autor, pois esse é um ser inferior moralmente e poderá praticar crimes mais graves. O desvio de usar drogas é um pecado jurídico que as agências morais não aceitam. O crime do maconheiro ou viciado em heroína é ter um defeito moral, tal como o adúltero ou o homossexual. Há uma seleção criminalizante, orientada por empresa extra-penal e estereotipada, perseguidora de grupos vulneráveis, no caso, em sua maioria, os pobres e os jovens.
Por outra vertente, em última análise seguindo o pensamento lombrosiano, o drogado que fez uso de substância também disseminou o seu modo de ser, pensar e agir colocando igualmente em risco a sociedade. Há em seu comportamento uma periculosidade inerente. Chegará, pois o dia em que se punirá o uso pretérito de drogas, pois a saúde pública nada mais é do que o conjunto das saúdes individuais. Como a questão se posta relevante, também poder-se-ia abrir margem às pesquisas a fim de se saber se o indivíduo usou drogas nos últimos 30, 60, 90 ou 120 dias como o fez Nixon exigindo o exame de todos os funcionários públicos norte-americanos... A discussão parece levar-nos a Saramago, quando em seu premiado livro "Ensaio sobre a Cegueira"[20] nos ensina que somos diferentes, mas essa diferença não pode ser vista como um obstáculo para compreender o outro.
6. Guerra às drogas: violência contra a sociedade
Além do mais, a criminalização de drogas provoca ônus financeiro de grande proporção não só pelo enorme aparato policial, mas pelas vítimas mortas pelo tráfico, pelo encarecimento das substâncias e procura tardia das pessoas ao tratamento médico especializado em decorrência do medo de serem descobertas como usuárias. O aflito se vê mais aflito com a política repressiva, pois, se punido, sua situação se agrava ainda mais perante a família, a sociedade e o trabalho. Nem se argumente que não há mais pena de prisão, pois é cediço que o sistema penal não reabilita ninguém, pior, condena perpetuamente.
A criminalização não fez obstar a crescente utilização das substâncias, provando-se ineficaz a prevenção geral. A história é testemunha, pois se engana quem pensa que foi Eliot Ness quem venceu Alcapone. Quem venceu o mafioso de Chicago foi a lei. Precisamente a lei que revogou a Lei Seca e legalizou o álcool. É preciso ter consciência de que a legalização do álcool deu certa.
Certamente, aqui no Brasil, pela falta de políticas sociais, o problema do álcool ainda é grave. Todavia, a retirada do usuário de álcool da agenda policial diminuiu a violência dos traficantes de álcool, diminuiu também o seu preço para os usuários (e problemas decorrentes) e evitou um colapso maior do nosso já falido sistema prisional. É o que expõe Maria Lúcia Karam[21]:
Ao tornar ilegais determinados bens e serviços, como ocorre também em relação ao jogo, o sistema penal funciona como o real criador da criminalidade e da violência. Ao contrário do que se costuma propagar, não são as drogas em si que geram criminalidade e violência, mas é o próprio fato da ilegalidade que produz e insere no mercado empresas criminosas – mais ou menos organizadas – simultaneamente trazendo, além da corrupção, a violência como outro dos subprodutos necessários das atividades econômicas assim desenvolvidas, com isso provocando conseqüências muito mais graves do que eventuais malefícios causados pela natureza daquelas mercadorias tornadas ilegais.
Os cartéis colombianos existem por causa da cocaína, assim como a máfia nigeriana. A máfia russa dedica-se ao comércio de heroína nos Bálcãs. Essas organizações criminosas podem chegar a movimentar um trilhão de dólares/ano[22]. Teme-se que muitas economias mundiais quebrariam com a legalização das drogas, já que o crime organizado encontra facilidades econômicas na lavagem de dinheiro por meio de coação, corrupção ou conveniências.
É claro, como a luz solar, que não é a droga o maior problema. É a sua definição e sua criminalização que faz surgir e fortalece os Alcapones Tupiniquins, chefes de conhecidas organizações criminosas que sobrevivem à custa da ilegalidade e conseqüente valorização dos seus produtos ilícitos. Assim como é de conclusão matemática que a ilegalidade da maconha é a responsável pelo número vertiginoso de homicídios e escravos na região do conhecido polígono nordestino.
A criminalização primária da droga é a mãe da maioria dos crimes violentos nas favelas. Observa-se que os moradores desses aglomerados não são criminosos. São pessoas desprovidas de condição financeira. A guerra entre os traficantes e entre esses e a polícia é que gera essa calamidade social. A ilegalidade das drogas, conjugada com a ausência de políticas racionais produz e insere no mercado verdadeiras empresas ilegais. Essas são as mais visíveis conseqüências da inútil guerra contra as drogas.
7. Propostas
Como penalista, não poderíamos apontar críticas sem apresentar propostas concretas, eis que é o móvel do jurista a busca pela paz social. Seguem algumas idéias:
a) Fim da dicotomia droga lícita / ilícita;
b) Intervenção do Estado na relação consumo / oferta de drogas;
c) Retirada da repressão penal para o uso privado de drogas;
d) Punição administrativa para o tráfico ilegal e o uso público de drogas;
e) Prevenção primária quanto aos sujeitos (família, escola, sociedade, trabalho);
f) Prevenção secundária aos usuários (efeitos das drogas);
g) Prevenção terciária aos usuários (reintegração).
8. Conclusão
Fernando Pessoa[23] já afirmava no início do século passado, ao criticar a Lei Seca dos EUA, que
se o Estado nos indica o que havemos de beber, porque não decretar o que havemos de comer, de vestir, de fazer? Por que não prescrever onde havemos de morar, com quem havemos de casar ou não casar, com quem havemos de dar-nos ou não dar-nos? Todas essas coisas têm importância para a nossa saúde física e moral (...) As leis [radicais] nascem mortas; e, como no caso dos monstros, o melhor é que assim aconteça, pois, se vivem, vivem a vida inútil e daninha da Lei Seca do Estados Unidos.
A par de reconhecermos que, cientificamente, a criminalização do uso de drogas está morta, talvez, o que nos falte ainda é reconhecer que a terapia pretendida é pior do que a doença a ser debelada. O problema das drogas não se resolve com repressão ou polícia ou exército, mas, tão somente, com educação e saúde. A política repressiva, há quase um século, mostra-se falha. Nunca funcionou. Não vai funcionar.
[1] Sobre a nomenclatura droga, ver também Leal, João José. Política criminal e a lei Nº 11.343/2006: Nova lei de drogas, novo conceito de substância causadora de dependência. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1177, 21 set. 2006. Disponível em: . Acesso em: 12 out. 2006.
[2] "A despenalização é o ato de degradar a pena de um delito sem descriminalizá-lo, no qual entraria toda a possível aplicação das alternativas às penas privativas de liberdade (prisão de fim de semana, multa, prestação de serviços à comunidade, multa reparatória, semidetenção, sistemas de controle da conduta em liberdade, prisão domiciliar, inabilitações etc.)." Zaffaroni, Eugenio Raúl e Pierangeli, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro: Parte Geral.. SP: RT, 1997, p. 359.
[3] Iennaco, Rodrigo. Abrandamento jurídico-penal da "posse de droga ilícita para consumo pessoal" na Lei n. 11.343, de 23 de agosto de 2006: primeiras impressões quanto à não-ocorrência de abolitio criminis. Disponível na internet www.ibccrim.org.br, 14.09.2006.
[4] No parágrafo único do art. 1º, após reiterar os termos programáticos previstos na ementa preambular, a nova lei estabelece textualmente: "Para fins desta Lei, consideram-se como drogas as substâncias ou os produtos capazes de causar dependência, assim especificados em lei ou relacionados em listas atualizadas periodicamente pelo Poder Executivo da União."
[5] No Reino Unido, as drogas são classificadas em três categorias conhecidas como classe A, B e C, onde há a variação das penas (Medicines Act 1968 atualizada pela Misuse of Drugs Act 1971): "Class A Drugs Heroin, methadone, cocaine, Ecstasy, LSD, amphetamines (if prepared for injection) (…) maximum of seven years in prison (…). Class B Drugs Amphetamines (speed) and barbiturates (…). Maximum penalties for possession are five years in prison (…). Class C Drugs Cannabis, anabolic Steroids and benzodiazepines (tranquillisers such as Valium, Temazepam) (…) two year prison".
[6] A década de 1.990 foi declarada pelas Nações Unidas como a década de combate ao uso e abuso de drogas.
[7] Expressão usada por Ribeiro, Maurides de Melo in Artigo do Boletim IBCCRIM nº 151 - Junho / 2005, Afinal, o que é DROGA?, p. 9.
[8] Foucault, Michael. Sujeito e poder. In: Dreyfus, H; Rabinow, P. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
[9] O tráfico e uso de álcool é punido pela lei islâmica há mais de 1.600 anos. Ver Terance D. Miethe, Hong Lu. Punishment: a comparative historical perspective. Cambridge: The University of Cambridge, p. 167.
[10] Giuseppe Cascini, in Stupefacenti e repressione penale (Diritto Penale Mínimo, Roma: Donzelli editore, 2002, p. 54).
[11] Ver José Silva Júnior, Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial, (Alberto Silva Franco, org.), 7ª. ed., vol. 2, p. 3242.
[12] Crítica al derecho penal de hoy, Bogotá: UEC, 1998, p. 47.
[13] Queiroz, Paulo. Direito penal e liberdade, Boletim IBCCRIM no. 90, maio/2000, p. 5.
[14] Nesse sentido: Queiroz, Paulo. Direito Penal: Parte Geral. SP: Saraiva, p. 47, nota 103.
[15] Machado, Marta Rodriguez de Assis. Sociedade do Risco e Direito Penal, SP: IBCCRIM, 2005, p. 123.
[16] Ver Batista, Nilo. Punidos e Mal Pagos: violência, justiça. Segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio de Janeiro: Revan, 1990, p. 65.
[17] No seu sentido mais policial possível. Ver Derecho penal del enemigo, Jakobs, Günter e Cancio Meliá, Manuel, Madrid: Civitas, 2003.
[18] "Este direito penal supõe que o delito seja sintoma de um estado do autor, sempre inferior ao das demais pessoas consideradas normais. Tal inferioridade é para uns de natureza moral e, por conseguinte, trata-se de uma versão secularizada de um estado de pecado jurídico; para outros, de natureza mecânica e, portanto, trata-se de um estado perigoso. Os primeiros assumem, expressa ou tacitamente, afunção de divindade pessoal e, os segundos, a de divindade impessoal e mecânica." Zaffaroni, E. Raúl, Batista, Nilo et all. Direito Penal Brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2003, 2ª. edição, p. 131.
[19] "De resto, não existe qualquer prova de que a maconha seja inofensiva e antes, ao contrário, provoca alto teor de dependência, tanto que o viciado ou 'maconheiro' é perceptível à distância, não só pelo odor que exala como pelo aspecto pálido e esverdeado que tem." (TJSP – Ap. 206.305-3 – j. 09/09/1996, JTJ 184/302).
[20] Ensaio sobre a Cegueira, 2ª ed., Lisboa, Editorial Caminho, 1995.
[21] Artigo do Boletim IBCCRIM nº 45 - Agosto Esp. / 1996, Drogas: A irracionalidade da criminalização.
[22] Rosa, Fábio Bittencourt da. Legitimação do ato de criminalizar, Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 80.
[23] Obras em Prosas, Lisboa: Nova Aguilar, p. 636.
BELO, Warley. Punctum Diabolicum: A Nova Lei de Drogas . Disponível na internet www.ibccrim.org.br, 14.12.2006

Artigo: "A LARANJA MECÂNICA" - Comentários Criminológicos sobre a Violência Juvenil.

“... pode-se escolher a vida – e desvalorizar seu aniquilamento – ou pode-se escolher a valorização do sistema (com o conseqüente negativismo ou indiferença pelo aniquilamento da vida humana e não humana), mas também pode-se escolher não pensar e, em semelhante alienação covarde, cair no desprezível otimismo irresponsável. Para nós, a decisão eticamente correta escolhe a valorização da vida, apesar da coragem de pensar.”

(Eugenio Raúl Zaffaroni, Em busca das penas perdidas, p. 157)

Introdução

O filme advém do romance A Clockwork Orange publicado por Anthony Burgess em 1962. Burgess expõe o mundo dos “droogs”, gíria em russo, que nos remonta à um grupo de jovens delinqüentes.

O trabalho cinematográfico possui um clima amedrontado e atormentado que nos leva a muitas perguntas temáticas na moderna Criminologia: Se possível, como a violência poderá ser erradicada da nossa sociedade moderna? Por que gangues se formam e têm comportamentos extremamente violentos? Poderá, o Estado, privar um indivíduo da sua livre vontade, transformando-o em um robô (ou um animal) que admite programação (ou adestramento) mental? O que isso significa ao analisarmos as tecnologias de modificação de comportamento de castigo contra o crime?

Essas são apenas algumas das indagações que procuraremos responder ao longo desse trabalho que visa discutir, sim, a violência, mas quer ser também um meio de troca de idéias entre um fascinado pelo Cinema e pela Criminologia. Portanto, logo se avisa, o discurso não quer ser só técnico. Quer ultrapassar essa fronteira e ser um texto “comentarista”. Quer interagir com o leitor. Desse modo, ser-nos-á permitido fazer digressões à essa ou àquela doutrina ou corrente de pensamento ou mesmo outras obras literárias sem o medo de incorrermos em falhas metodológicas modernas a que os trabalhos científicos estão agrilhoados.

E não é só.

Tratamos da violência juvenil. Isso indica que não trataremos da violência adulta e nem da criminalidade juvenil e / ou adulta.

O discurso é orientado para um determinado grupo de agentes: os jovens adolescentes a que nos remonta o filme. É claro que, mesmo assim, não podemos, aqui, pretensiosamente, assumir a descrição da violência juvenil como um todo. Seguimos, nesse aspecto, a honestidade de Albert K. Cohen[1], no seu clássico Delinquent Boys:

“The problem of the relationship between juvenile delinquency and adult crime has many facets. To what extent are the offenses of children and adults distributed among the same legal categories, “burglasy”. “larceny”, “vehicletaking” and so forth? To what extent, even when the offenses are legally identical, do these acts have the same meaning for children and adults? To what extent are the careers of adult criminals continuations of careers of juvenile delinquency?

We cannot solve these problems here, but we want emphasize the danger of making facile and unprone assumptions. If we assume that “crime is crime”, that child and adult criminals are practitions of the same trade, and if our assumptions are false, then the road to error is wide and clear. Easily and unconsciously, we may impute a whole hort of notions concerning the nature of crime and its causes, derinedfrom on knowledge and fancies about adultcrime, to a large realm of behavior to which these notions are irrelevant. It is better to make no such assumptions; it is better to look at juvenile delinquency with a fresh eye and try to explain what we see.”

Por outra, violência e criminalidade não são sinônimos. Necessário, pois pontuar a diferenciação, a fim de delimitar o discurso. Rodrigo de Abreu Fudoli[2] nos ensina o seguinte:

“Violência e criminalidade são fenômenos diversos. O crime é apenas uma das facetas da violência, embora haja, no discurso dominante, uma clara aproximação entre violência e crime, identificando-se a ação individualizada da criminalidade convencional como tradução da idéia de violência. Este falso e parcial pensamento conduz à consideração do sistema penal como produto hábil a fornecer à sociedade a proteção e segurança almejadas, como forma de desviar as atenções de fatos mais danosos, e de permitir o terrorismo oficial, mantenedor da injustiça, da desigualdade e da exclusão.”

No filme, essa dicotomia violência/crime não é tão explorada, mas há, verdadeiramente, no discurso dominante, tanto lá na ficção quanto aqui na realidade, a aproximação entre os conceitos de violência e crime. O nosso maior temor é que se confunda esse discurso - voltado para a violência – com um discurso que analisa a criminalidade juvenil. Seria um erro crasso estudar o texto dessa maneira.

O ponto da discussão é, pois a violência juvenil. Não obstante, abarcaremos também o tratamento behaviorista de ‘reeducação’ social tendo, sempre, por pano de fundo o filme, a doutrina criminológica e o direito de apontarmos nossa visão pessoal.

O Autor de “A Laranja Mecânica”: Burgess Anthony Burgess nasceu no dia 25 de fevereiro de 1917 e morreu em 25 de novembro de 1993. Era ensaísta versátil, lingüista, tradutor, músico, e novelista cômico[3] cujo uso inventivo do idioma ‘Nadsat’ é prova para paródia refletindo o interesse dele em James Joyce, sobre quem escreveu em Re Joyce (1965). É reconhecido mundialmente pelo seu melhor romance futurístico: “A Laranja Mecânica” (1962; filme, 1971).

Criado em ambiente católico na cidade de Manchester, Inglaterra, estudou música e foi também compositor. As suas formas musicais freqüentemente são usadas em sua ficção, como Napoleon Symphony: Um Romance em Quatro Movimentos (1974).[4]

Depois de servir ao Exército britânico na Segunda Guerra Mundial, ele se tornou professor e oficial de educação, primeiro na Inglaterra (1950-54) e então no oeste americano (1954-59), onde escreveu Time for a Tiger (1956), seu primeiro romance publicado.

Mandado de volta para a Inglaterra com um tumor cerebral supostamente fatal, ele escreveu outros cinco livros em apenas um ano.

Direção do filme: Kubrick A direção foi de Stanley Kubrick. Nasceu em Nova Iorque no dia 26 de julho de 1928 e morreu em 07 de março de 1999. Era escritor de filmes, diretor e produtor, cuja fama é virtualmente legendária[5]. É considerado um mestre da sétima arte.

Enquanto trabalhava ainda como foto-jornalista para revista Life, Kubrick fez sua entrada de modo quase imperceptível com o filme Fear and Desire (1953) e o Killer’s Kiss (1955). Depois do seu “thriller” de crime The Killing (1956), os críticos começaram a lhe notar. Mas foi com Paths of Glory (1957) que solidificou sua reputação como diretor. Após, lançou Spartacus (1960), Lolita (1962), Dr. Strangelove, ou How I Learned to Stoped Worrying e Love the Bomb (1964). No 2001:Uma Odisséia no Espaço (1968) e na Laranja Mecânica (1971), ambos feitos na Inglaterra, gerou-se uma intensa controvérsia da crítica, mas, agora, são amplamente aceitos como marcos do cinema moderno. Seus filmes posteriores são Barry Lyndon (1975); The Shining (1980); Full Metal Jacket (1987) e Eyes Wide Shut (1999).

A Laranja Mecânica ganhou destaque na Associação de Filmes da América (AFI – American Film Institute)[6] pela exploração da sexualidade e da violência de forma singular, permanecendo hoje com o 46o. lugar no ranking daquela organização. Tornou-se o segundo filme avaliado (depois de Midnight Cowboy) a ganhar The Best Picture Academy Award. O primeiro lugar do ranking da AFI pertence a Cidadão Kane.

Os críticos de Nova Iorque nomearam A Laranja Mecânica o Melhor Filme de 1971, e Kubrick o melhor diretor. Ganhou quatro nomeações ao Oscar, por Melhor Quadro, Melhor Diretor, Enredo mais Bem Adaptado e Melhor Filme Editado.

Ameaças de morte por causa do filme O filme causou um escândalo quando foi liberado na Inglaterra e recebeu a fama de ter incitado vários atos de violência. Em 1973, Kubrick pediu à Warner Bros. para remover o filme da Inglaterra. O filme ficou proibido de ser exibido no Reino Unido de 1973 até o ano 2000.

Em uma entrevista após a morte de Kubrick, sua ex-esposa Christiane, relatou as razões que motivaram o cineasta a impedir a exibição do filme: ameaças de morte a ele próprio e à sua família.

Por que “Laranja” e por que “Mecânica”? O que significa o título "Laranja Mecânica”? Ao pé da letra, o título original (Clockwork Orange), significa “Laranja com Mecanismo de Relógio”. O título alude, pois a um “mecanismo de relógio” - clockwork – algo que nos remonta a uma visão mecânica, artificial, robótica, programável.

Orange – laranja, nos leva, particularmente, a ver semelhança, no inglês, com a palavra “orang – utan”, ou seja, um macaco (no caso alaranjado, mesmo), uma criatura, um animal. No final das contas, seria uma alusão ao procedimento behaviorista utilizado pelos cientistas do filme para reintegrar à sociedade o jovem Alex, considerado como um “animal” e, por isso mesmo, “domesticável”.

Existem também reminiscências[7] ao título ligando-o à uma velha expressão londrina - tão esquisita quanto o título – que significa: “muito estranho ou incomum”. Nesse aspecto, liga-se à visão do autor sobre o comportamento dos jovens delinqüentes ou, mais corretamente, como já apontamos, ao tratamento que o criminoso Alex fora submetido.

O Idioma Talvez a coisa mais fascinante sobre o livro (e o filme) seja o idioma.

Alex pensa e fala no "Nadsat" (adolescente em russo, em analogia temos “teen” do inglês. Também é a terminação das palavras russas que numeram os números de onze a dezenove).

No princípio, o vocabulário parece incompreensível: "You could peet it with vellocet or synthemesc or drencrom or one or two other veshches". (“Você podia peet isto com vellocet ou synthemesc ou drencrom ou um ou dois outros veshches"). Mesmo não se sabendo nenhuma palavra russa e parecendo, à primeira vista, indecifrável o significado, compreende-se a idéia ao se analisar o contexto da frase. Entretanto, há palavras que buscam ser inteligíveis mesmo em se observando o contexto: quando Alex chuta um integrante de uma gangue rival (Billyboy), caído no chão, ele diz que o chutou no "gulliver". A expressão poderia fazer referência a qualquer parte do corpo naquele contexto. Todavia, em outra cena, um copo de cerveja é servido com “gulliver”. E quando o mesmo se recusa a ir à escola fica claro que “gulliver” é dor de cabeça... De qualquer forma, a palavra pode ter sua origem remontada ao russo: “golova”, que significa “cabeça”[8].

Anthony Burgess não usou palavras russas sempre de forma mecânica[9]. Há passagens que se utiliza do “Nadsat” com grande ingenuidade, como na palavra "gulliver" já referida. Outras palavras são brilhantemente arquitetadas: khorosho (bom ou bem) como "horrowshow"; iudi (pessoas) como "lewdies"; militsia (milícia ou polícia) como “millicents”.

A "conversa codificada” (melhor do que gíria) inclui a frase marcante de Alex “O my brothers" e palavras como "crark" (uivar?) e “cutter" (dinheiro). A linguagem tem um som maravilhoso, particularmente em abuso, quando "bratchny grahzny” soa infinitamente melhor do que "dirty bastard” (“bastardo sujo"), além do que é um ponto central para a nossa análise criminológica.

O capítulo fantasma de Clockwork Orange

O livro A Laranja Mecânica foi publicado em Nova Iorque por W.W. Norton Inc. no ano de 1962 e também na Europa.

Na América do Norte, ao contrário do que ocorreu na Europa, Norton - o presidente da Editora, insistiu que o livro perdesse seu capítulo final[10]... Por que? Não nos pergunte! Não encontramos a resposta.

Burguess concordou com esse procedimento, mas “não fiquei contente”, pois “tinha estruturado o trabalho com muito cuidado. Havia dividido em três seções de sete capítulos cada, figura numérica essa que, em numerologia tradicional, significava o símbolo de maturidade humana.”, explicou Burguess a um jornal londrino[11].

No mínimo, incomum a história.

Alex termina o Capítulo 20, na edição americana, com a seguinte declaração: “eu estava certo que tinha me curado". Ou seja, se “estava” era porque não continuava... As edições americanas e européias são essencialmente diferentes.

Tem mais: Kubrick não teve notícias desse capítulo à tempo. A versão que lhe chegou às mãos era a americana, sem o capítulo 21, e, mesmo o filme tendo sido realizado na Inglaterra, só veio a descobrir o “capítulo fantasma” após o término do trabalho cinematográfico. Nada muito relevante para Kubrick que se disse satisfeito com o final da versão americana e que não a mudaria[12].

No capítulo final (capítulo 21 - ou capítulo 7 da parte III), Alex aparece com mais idade, renuncia seus modos violentos, se casa e tem crianças. Torna-se, assim um “indivíduo produtivo” à sociedade. Em linguagem simples, a versão dos americanos transformou o romance em ficção e modificou, radicalmente, a concepção sobre o behaviorismo, como veremos.

Descrição das cenas de “ultra-violência” Prenuncia o cartaz do filme: “Being the adventures of a young man whose principal interests are rape, ultra-violence and Beethoven.”

O desordeiro e jovem Alex (Malcolm McDowell) tem seu modo particular de diversão: dores, sofrimentos alheios e violência gratuita. O trajeto de Alex é de cunho punk amoral o que nos leva a formar um arco dinâmico entre a visão futurística de Stanley Kubrick e a visão de choque de Anthony Burgess em seu romance. Permitido, pois sair da órbita terrestre para tecer comentários.

Imagens agressivas, reforçadas pelos contrapontos musicais aliado ao “código” Nadsat usado por Alex e seus camaradas, fazem do filme de Kubrick um quebra-cabeças cujas peças se amoldam em um todo poético mesmo sendo um universo imensamente controverso e violento.

A locação do filme é a Inglaterra em futuro próximo. Ao fundo, toca música de órgão ao estilo gótico (Elegy in Death of Queen Mary, de Pucell)[13]. A abertura possui uma imagem memorável: é uma tomada, em foco, dos olhos azuis e face maliciosamente sorridente do jovem Alex de Large, com um falso cílio (superior e inferior) adornando o seu olho direito.

Suas abotoaduras e suspensórios são decorados com um sangrento glóbulo ocular.

Afastando a visão da câmara, os "droogs", possuidores de nomes russos, são mostrados: Georgie (James Marcus), Dim [abreviação de Dimitri] (Warren Clarke), e Pete (Michael Tarn).

Os nomes são simbólicos: o Alex representa o Alexander, heróico e majestoso (Alex The Large, é o seu nome). O Grande. Mas, nesse caso "A - lex", ou seja - um homem sem lei, o que já pode nos trazer alguma referência sobre a anomia dos criminólogos.

Na frente deles, e também formando um corredor em ambos os lados, aparecem formas grotescas de trabalho de arte em um humor niilista e futurístico: esculpido em branco higiênico - corpos de mulheres submissas em fibra estão em forma de mobília, onde algumas estão ajoelhadas e outras em posição de quatro, como mesas. As cores estão ausentes, exceto o orlon artificial das perucas. O filme é narrado por Alex, o protagonista. Assim as primeiras palavras:

Alex: There was me, that is Alex, and my three droogs, that is Pete, Georgie, and Dim, and we sat in the Korova Milkbar trying to make up our rassoodocks what to do with the evening. The Korova milkbar sold milk-plus, milk plus vellocet or synthemesc or drencrom, which is what we were drinking. This would sharpen you up and make you ready for a bit of the old ultra-violence.

No Korova Milkbar, mistura-se bebidas “enriquecidas” com drogas (denominado "milk-plus"). Servida dos seios de uma manequim nua (uma “mãe” como fonte da violência, a violência como instinto natural?) que é operada por moeda e que já sai automaticamente com drogas para deixá-los prontos para o entretenimento: "the old utra-violence". Eles esperam por uma noite com muita confusão, depredação, agressão e estupro.

Possuem um padrão nas vestimentas: macacões compridos e brancos, suspensórios brancos paralelos, botas de combate pretas e corridas. Usam uma espécie de coquilha externa e bem à mostra, mas igualmente branca, protegendo as genitálias.

A primeira atuação remonta um espancamento a um bêbedo vagabundo que buscava refúgio abaixo de uma passarela de pedestres. Cantava "Molly Malone"[14].

O velho bêbado ("filthy, dirty old drunkie") os escarnece e é espancado severamente depois de ter lamentado o estado da sociedade presente onde não há mais respeito e nem valores. Um mundo que tem péssimo cheiro, onde nenhum jovem respeita os anciões.

Ao fundo, música de violinos e instrumentos de sopro de madeira.

A cena passa para uma casa de ópera (ou cassino ou teatro) abandonada - um símbolo da sociedade contemporânea que se desmorona. São ouvidos gritos estridentes e música. No palco, uma jovem mulher em luta contra alguns jovens que a molestavam. A vítima de estupro tem suas roupas rasgadas ante os quatro furiosos delinqüentes de uma gangue rival. Billyboy (Richard Connaught), e sua gangue, usa roupas que lembram velhos uniformes nazistas:

Alex: It was around by the derelict casino that we came across Billyboy and his four droogs. They were getting ready to perform a little of the old in-out, in-out on a weepy young devotchka they had there.

Alex e a sua gangue observam o preparatório para “the old in-out, in-out”, e então - preferindo violência a sexo - os desafia a uma briga com um insulto sexual: "How art thou, thou globby bottle of cheap, stinking chip oil? Come and get one in the yarbles, if you have any yarbles, you eunich jelly thou."

O prédio antigo serve de fundo para uma rápida sucessão de imagens violentas executada harmonicamente, como em uma cena de balé. Os atos violentos entram em uma sintonia, em uma leveza com a música de Rossini ao fundo. Em estilo reconhecível por quase todo o filme a simbiose violência-música nos mostra a briga entre as gangues de adolescentes onde aparecem lances de arremesso de mobílias, janelas de vidro se estilhaçando, espelhos espatifados e chutes cinematográficos. Corpos voam pelo ar em pulos e cambalhotas; cadeiras esmagam cabeças. Quando, finalmente, a atuação é interrompida por uma sirena policial. Alex e sua gangue fogem em um carro esporte roubado - um Durango/95.

Saem com o carro pela noite escura da zona rural dirigindo em alta velocidade e despreocupadamente em relação aos outros carros e motos que vêm em direção contrária. Em verdade, eles se jogam contra os outros veículos. Divertem-se à custa do pânico e da excitação de forçar os outros carros a saírem da estrada.

Chegam a uma residência opulenta marcada com um convidativo indicador de “CASA” iluminado. É uma casa moderna. Uma tentativa imaginosa de antecipar o design arquitetônico futurístico. Os quatros se dirigem para a porta de entrada.

A casa é a residência dos Alexanders. O marido ancião, escritor, bate à máquina de escrever (Kubrick não imaginava a revolução dos PCs). A sua esposa, Sra. Alexander, usando uma roupa vermelha, lê em uma cadeira de plástico branca - também com um suposto design futurista. Quando a campainha toca (parece uma parte da melodia da Quinta Sinfonia de Beethoven!)[15] ela vai à porta. Alex pleiteia - ao argumento de que houve "um acidente" terrível - o uso do telefone da casa para chamar uma ambulância: “é uma questão de vida ou de morte". Ela hesita: suspeita da visita noturna. Mas, o Sr. Alexander consente ao pedido de socorro. Quando ela destrava a porta, a gangue invade a casa trazendo à tona um início de um pesadelo para os moradores, mas que não passa do mais vão dos entretenimentos para os quatro rapazes. Estão usando máscaras cômicas e estranhas. Alex tem um grotesco símbolo fálico que lhe tampa o nariz. A Sra. Alexander é segura à altura dos ombros por um dos comparsas e é afagada por Alex. O Sr.

Alexander é chutado no chão por Alex que ironicamente pontua rítmica e secamente - a pontapés - uma dança com a letra de "Singin in the Rain". A cena é perturbadoras, pois há uma justaposição das letras familiares de uma música brincalhona, alegre, feliz - de um filme clássico - com imagens de brutalidade e de extremista “ultra-violence”:

I'm singin' in the rain, Just singin' in the rain... What a glorious feeling, I'm happy again. I'm laughing at clouds, so dark up above. The sun's in my heart, and I'm ready for love. Let the stormy clouds chase, everyone from the place. Come on with the rain, I've a smile on my face. I'll walk down the lane, with a happy refrain. And I'm singin', just singin' in the rain.

Ambas vítimas são amordaçadas com uma bola de borracha dolorosamente inserida em suas bocas e seguras ao redor da cabeça por longas tiras de fita adesiva. Alex destrói a escrivaninha do escritor, a máquina de escrever e a estante. Sr. Alexander é forçado, agora já completamente rendido, a assistir ao despimento e estupro de sua esposa. Alex começa cortando dois círculos ao redor dos seios da Sra. Alexander para expô-los. Após, corta-lhe o terno inteiro. Então, com um movimento que lembra um passo de dança, baixa as próprias calças e escarnece ao marido: "Viddy well, little brother. Viddy well."

O grupo volta ao Korova Milkbar onde eles se espreguiçam em contraste com as paredes pretas.

Há uma mesa perto onde alguns técnicos de estúdio de televisão estão rindo e conversando. A mulher do grupo segue seu instinto e canta uma seção curta da “Ode to Joy” de Schiller no movimento de coral da Nona Sinfonia de Beethoven[16]. Para Alex, é um momento de puro êxtase.

Depois da música, Dim ironiza a cantora. Alex o agride nas pernas com uma bengala pela falta de respeito ("por ser um bastardo sem modos"). É evidente que não se poderia falar mal do seu amado e favorito compositor. Os ganidos de Dim parecem choramingos de criança e demonstram descontentamento com a liderança de Alex: "eu não gosto que você faça isso comigo. E não sou mais seu irmão e nem nunca o quis ser... Yarbles, grande yarblockos de bolshy para você". Dim o ameaça, mas se recusa a lutar com Alex quando esse aceita o convite.

Alex volta para casa (na Municipal Flatblock 18a Linear North)[17] onde ele vive com seu pai e sua mãe.

O salão de entrada do prédio está obstruído por lixo e sobras de materiais demonstrando o desleixo dos moradores.

Em uma passagem, fica à vista um mural enorme onde aponta-se a dignidade do trabalho, todavia está deformado por uma pichação sexual obscena. A porta do elevador está quebrada e Alex tem de subir pelos degraus. A parede dentro de seu quarto está enfeitada com um desenho erótico, uma imagem feminina. Do outro lado, há um quadro de Beethoven. Ele põe sua pilhagem da noite em uma gaveta já cheia de relógios roubados e carteiras. Em uma segunda gaveta, ele confere a sua cobra python. Como "o fim" perfeito para a "noite maravilhosa", Alex insere uma fita cassete da Nona Sinfonia de Beethoven. Enquanto aprecia seu compositor favorito, no pedaço mais conhecido da música, a cobra python explora a área onde está exposta a figura feminina na parede. Durante um devaneio, ao tom de Beethoven, Alex delira: Formam-se quadros alucinógenos em sonhos masoquistas de imagens com cortes rápidos de quatro “Jesuses” de plástico dançando fora do crucifixo. Uma mulher vestida de branco cai em uma armadilha e, pendurada pelo pescoço, vê homens olhando de soslaio. Alex ri maliciosamente. Agora são imagens de uma erupção vulcânica. Depois uma avalanche de pedras que esmagam homens neandertalenses primitivos.

A manhã vem. Os pais de Alex parecem ser de classe média. É a impressão, ao menos. O contexto social é muito importante para a análise que se segue. Por isso, à frente, seremos obrigados a elaborar dois caminhos. O primeiro construindo uma teoria de Alex num contexto proletário e o segundo sobre Alex numa situação financeira de classe média.

Seu pai, Pee (que é uma gíria inglesa para urinar), e sua mãe, Em, estão confusos, apologéticos e, aparentemente, amedrontados pelo comportamento desviado do filho. Costumeiramente tomam o café matutino e falam sobre Alex. O pai pergunta: “eu gostaria de saber, onde exatamente ele vai trabalhar à noite?” A mãe responde: “Bem, como ele disse, são coisas estranhas que ele faz, alguns biscates, ora aqui, ora acolá, como tem de ser.”

Ao ser desperto pela mãe, alega pretensa "dor no gulliver". Desculpa suficiente para lhe isentar a ida à escola. Quando seus pais já não mais se encontram em casa, levanta. Apenas trajando uma cueca, é surpreendido por um assistente social (ou um agente corretivo), Sr. Deltoid, já dentro do apartamento, pois a chave lhe fora emprestada pela mãe de Alex a caminho do trabalho. Depois de fazer Alex se sentar na cama, próximo a ele, põe o braço afetuosamente ao redor dos ombros nus de Alex e fala em linguagem Nadsat para ficar atento porque da próxima vez ele poderá ir para a prisão. Externa sua suspeita do envolvimento de Alex na "sordidez" da noite prévia.

Em uma flamejante boutique musical, duas garotas lambem fálicos sorvetes. Ouve-se sons sintetizados do quarto movimento da Nona Sinfonia de Beethoven. Alex está vestido estilisticamente. A cena é filmada em 360o. graus enquanto passeia pela loja e examina as duas jovens. Depois de rondá-las, as indaga: "Um pouco insensato, não é, minhas queridas?” e então convida-as para escutar música em seu sistema moderno de hi-fi.

Já em seu quarto, há uma criativa filmagem em alta velocidade de uma cena de orgia (a clockwork sex?) entre os três. A cena foi filmada numa velocidade doze vezes superior a de um filme normal (a duas armações por segundo). Levou uns 28 minutos atuais para filmar, mas dura, na tela, apenas 40 segundos.

A gangue de Alex o está esperando no salão de entrada do apartamento, quando o mesmo desce pelas escadas. Depois de discordarem das ordens dele e da disciplina ditatorial exigida, um dos ‘droogs’ quer saber de "dinheiro grande, muito grande”.

Para satisfazer o desejo dos amargos dissidentes, Alex oferece a eles uma trégua e para se reconciliarem sugestiona uma rodada de bebidas ("moloko-plus") no milkbar de Korova. Eles caminham ao longo de uma marina quando, em gracioso e lento movimento (é notável o contraste com os movimentos de alta-velocidade da cena de orgia anterior) Alex os agride e consegue manter o seu controle tirânico sobre os comparsas.

Daí, o filme continua com a invasão de um ‘spa’, cuja dona possui um tanto de gatos, e é assassinada por Alex. Na saída, é surpreendido pelos próprios amigos com uma garrafada de leite em sua face. Postado no chão, é preso e levado à Delegacia.

Do Prazer, através da violência As cenas são, deveras, nauseantes e é preciso mesmo ter “nervos de aço” para passar imune às chocantes arbitrariedades. Entretanto, agora, podemos nos abstrair dessa descrição detalhada e passarmos a analisar as cenas principais do filme, lamentando – profundamente – não termos mais espaço para aprofundarmos e expormos todas nossas idéias.

Como já indicamos no início do trabalho, o filme quer tratar da violência juvenil e do tratamento imposto ao jovem Alex.

Começamos com uma afirmativa desconcertante: A violência é útil. A violência é funcional para a sociedade.

Num primeiro momento, pode-se pretender, a assertiva, como uma idéia reducionista ou evasiva das sangrentas cenas descritas. Mas não é esse o ponto. Observemos. Não se tem notícias de nenhuma civilização onde a violência não tenha existido. Carnificinas, massacres, genocídios, fúria, ou seja, a violência em sua generalidade sempre foi comum a qualquer conjunto de civilização. Não é uma coincidência. Trata-se de uma estrutura constante do próprio fenômeno humano e tem, evidente, um papel na vida em sociedade.

Emile Durkheim[18] nos traz essa concepção inicial do utilitarismo de todos os fatos sociais:

“Classificar o crime entre os fenômenos da sociologia normal não é apenas dizer que constitui fenômeno inevitável, embora lastimável e devido à maldade incorrigível dos homens; é afirmar que é um fator da saúde pública, uma parte integrante de toda sociedade sã. Este resultado é, à primeira vista, tão surpreendente que nos desconcertou durante muito tempo. Todavia, uma vez dominada a primeira impressão de surpresa, não é difícil encontrar as razões que explicam esta normalidade e, concomitantemente, a confirmam. (...) o crime é normal porque seria inteiramente impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele.”

Mais recentemente, Maffesoli[19], expôs:

“A violência, a crueldade, a desordem, a perda são somente aspectos da vida cotidiana levadas ao seu extremo, e esse limite é a condição de um reabastecimento dessa mesma vida cotidiana. O “reabastecimento” de que acabamos de falar exprime, aos nossos olhos, esse processo lógico, orgânico que une a monotonia à intensidade, a partir do momento em que cada um é aceito enquanto tal, como elemento de um conjunto.”

Temos por certo que a violência também ocupa status de normalidade em nosso contexto civilizatório, assim como o crime. Logo, a violência é funcional, exerce função na sociedade, é importante enquanto violência. O problema é desvendarmos o ‘modus operandi’ desse processo.

Zaffaroni e Pierangelli[20] nos chama a atenção para um aspecto da funcionalidade da violência:

“É claro que a tese de Durkheim peca pela ingenuidade, mas é a primeira formulação moderna de uma visão macrossociológica do delito que abarca a reação social. O delito já não é um corpo estranho, nocivo à sociedade, mas que cumpre uma função positiva em nível macrossociológico, ou seja, estaria integrado “fisiologicamente” à sociedade, seria um elemento “funcional” da mesma. Não é uma posição anti-organicista, mas uma mudança dentro da abordagem organicista.”

A crítica de Zaffaroni e Pierangelli à Durkheim refere-se à moderna crítica da Criminologia ao Direito Penal positivo, cuja análise não adentramos por motivos já expostos. Fica, todavia, a citação e o pioneirismo de Durkheim para o estudo da violência não centrada no indivíduo em si, mas, sim, numa nova visão macrossocial e compreender isso é essencial para interpretar o filme. Por isso, fazemos uma reformulação: a violência tem sua funcionalidade inserida em contexto macrossocial.

Lançamos outra aresta para o discurso: a heterogeneidade gera a violência e a homogeneidade gera a passividade, mas é potencialmente mortífera. Assim as vestimentas dos jovens delinqüentes. Visualmente, eles são iguais nas roupas, calças compridas brancas, suspensórios brancos paralelos, botas de combate pretas e corridas e uma coquilha protetora dos órgãos genitais. Não se trata de emergimos uma “visão lombrosiana das vestimentas”. Queremos reforçar o argumento de um identificação primária, visual.

Esse comportamento, de se homogeneizar ao outro traz em si, também, a heterogeneidade. No caso, em relação a todos os demais da sociedade e agravado em relação a outros grupos rivais (gangues). Trata-se de um “estruturante” coletivo. Um limiar de águas: o nós e o resto.

A identificação visual é um mecanismo de compartilhamento de valores. Todos se vestem iguais, todos tomam (e gostam) do “milk-plus”, todos cultuam a “ultra-violence”. Não há liberdade fora dos parâmetros apontados por essa tirania. Até o ruim individualmente passa a ser bom se o grupo assim rotula. Há uma igualdade de pensamentos, um só modo de ser, de falar, de gostar, etc.. Becker aponta-nos exemplo final ao expor situação análoga, ao tratar dos usuários de maconha. Diz nem sempre ser a primeira utilização da substância prazerosa. Os efeitos químicos, não raramente, são náuseas, falhas de percepção no tempo e no espaço e vômitos. Mas, o indivíduo “aprende” a ligar esses efeitos ao significado de prazer principalmente porque os “outros” assim o entendem. Há uma interiorização desses valores. Mais: a opinião do grupo é tomada como ideal para a opinião pessoal. Becker[21] denomina de aprendizagem “step by step”:

“One more step is necessary if the user who has now learned to get high is to continue use. He must learn to enjoy the effects he has just learned to experience. Marihuana-produced sensations are not automatically or necessarily pleasurable. (...) The user feels dizzy, thirsty; his scalp tingles; he misjudges time and distances. Are these things pleasurable? He isn’t sure. If he is to continue marihuana use, he must decide that they are.”

A partir daqui podemos fazer junções entre esses fatos e alguns teóricos.

Albert K. Cohen, cuja obra já citamos, desenvolve a teoria das subculturas dos bandos juvenis. Esta é descrita como um sistema de crenças e valores, cuja origem é extraída de um processo de interação entre rapazes ocupantes de posições pares na estrutura social. Esta subcultura representa a solução de problemas de adaptação, para os quais a cultura dominante não oferece soluções satisfatórias. O primeiro momento da teoria é a idéia da total democratização do chamado american dream: tanto os jovens das classes com posses como os jovens das classes baixas interiorizam e começam por aderir à ética do sucesso da sociedade ocidental-capitalista. Essa ética, todavia, se revela discriminatória, pois possui mecanismos de exclusão de grupos sociais e critérios típicos da classe média: racionalidade, autodisciplina, ambição, qualificação técnica, cortesia, cultura acadêmica, etc. Alex pode ter sido educado nesse meio, pode ter sido socializado com essa concepção culturalista da classe média e, normalmente, deveria seguir, reproduzir o modelo dos próprios pais. Quando o corretor de menores chega à sua casa fica claro que as condições sócio-familiares de Alex são típicas da classe média, mas também ficou claro, na mesma cena, que Alex não relevava importante a “ética da responsabilidade” apresentando a dias uma suposta “dor de gulliver” para não ir à escola. Esse dado é importante, pois a escola espelha a ideologia democratizante (Cohen) e meritocrática (Alessando Baratta[22]) da sociedade global.

Parsons[23] já fala em youth culture, caracterizada pela irresponsabilidade e cujo aparecimento atribui-se às “tensões nas relações entre os jovens e os adultos” por decorrência dos comportamentos, valores e exigências da sociedade industrial. Lembra da facilidade, nas primeiras décadas do século passado, de um jovem, antes mesmo de completos os dezoito anos, se integrar ao mercado de trabalho. Era possível, assim uma inserção, sem traumas, para a vida adulta e para a cultura dominante. Já na década de cinqüenta e sessenta (época em que foi escrito e filmado o “Clockwork Orange”) é imprescindível a qualificação técnica mais apurada para a integralização ao sistema sócio-econômico. Dessa forma, transferiu-se da idade média de dezessete para vinte e quatro anos a entrada para o mercado de trabalho. O que altera significativamente as fronteiras de valores e relacionamento entre as gerações. Ora, esse distanciamento temporal (cerca de sete anos) abriu um vazio na vida desses jovens emergindo uma “teen-ager culture” (England) uma vez que esses jovens ficaram sem definição social clara.

Como se não bastasse, e no filme vimos isso, a estrutura familiar vem em contínua desestruturação. Sofre grandes transformações com reflexos evidentes na formação moral e educacional dos jovens, principalmente na classe média. Alex, por exemplo, possui pais totalmente desvinculados de sua vida social, não sabem sequer se o filho “trabalha” à noite e nem se esforçam por saber.

Nesse sentido, Figueiredo Dias[24]:

“(...) se fosse possível sintetizar as inovações introduzidas na educação das novas gerações, poderíamos falar em abandono do monismo moral e do monismo profissional-acadêmico. A educação deixou de se realizar predominantemente em casa e na atmosfera da severidade puritana.”

Veja-se, pois a ambigüidade da criação desses jovens: de um lado há uma cultura tradicional, convencional com comportamentos virtuosos, de responsabilidade, trabalho[25], estudo, mas, ao mesmo tempo, retiram-lhes a função produtiva-econômica. São convocados à uma vida acadêmica, mas são desprovidos das gratificações financeiras desse estado. Há um contra-senso desse “duplo vínculo” sociedade-jovem.

Daí surgem crises de identidade cuja superação encontra terreno fértil dentro das subculturas dos jovens. Buscam o prestígio entre si, o status, a “dominação” mesmo dentro do seu universo jovem. Acaso não é isso que Alex procurava com seus “droogs”? A todo momento se impor coercitivamente quanto aos outros?

A partir de todo esse desenho macrossocial, alcançou-se certo grau de solidariedade entre o grupo. Iniciou-se a prática coletiva de violência e ilegalidade: condução do automóvel, uso de drogas, vandalismo, furto, roubo, estupro, infrações às normas ou padrões sexuais. Tudo em contraste frontal com a cultura dominante.

Logo, já se percebe, a formação do grupo tem duplo movimento: destrói e constrói. Revela, também, uma desestruturação social manifesta. Vamos lembrar, rapidamente, que os pais de Alex são ausentes, relapsos. O prédio onde Alex mora está abandonado e sujo. Tais circunstâncias, evidente, por elas mesmas, não são os únicos motivos para a constituição da gang. Não se trata disso. Mas é um fator importante. Deve ser visto com relevância. Nesse pensar, a violência no filme pode ser analisada, ao mesmo tempo, em relação a uma institucionalização de valores (Becker), adaptação social (Cohen) e estresse social (Parsons).

Essa é a análise superficial e limitada ao aspecto macrossociológico. Entrementes, forçoso é concluir a necessidade em averiguarmos, ainda, o porque da formação da “gang” e o aspecto individual de Alex nessa estrutura social.

O crime (aqui posto em paralelo à violência a fim de prosseguirmos no discurso) é comumente associado, de forma necessária, a efeitos socialmente disfuncionais, negativos, perturbadores. Hobbes via no crime uma ameaça à sociedade. Tais efeitos são, sim, irrecusáveis. Provoca danos materiais, medo, cerceia a convivência social, põe em risco valores sociais, etc. Mas há seu lado positivo (Durkheim). Esse efeito positivo também foi abordado por Merton, além de Coser, Cohen, Erikson e Scott.

Robert Merton desenvolveu a chamada teoria funcionalista da anomia tendo por base a negação da concepção patológica do desvio, àquela época já superada por Durkheim[26]. Seguindo Figueiredo Dias[27]:

“O conceito de anomia de Merton situa-se expressamente no desenvolvimento da idéia durkheimiana de ausência de normas. Apesar da diversidade de formulações utilizadas, ele acaba por privilegiar idéias de ‘desmoralização’ ou ‘ruptura da estrutura cultural’. O grau de anomia de um sistema social mede-se pela extensão em que há ausência de consenso sobre as normas julgadas legítimas, com a conseqüente insegurança e incerteza nas relações sociais. As pessoas são confrontadas pela anomia substancial quando, como um dado de facto, não podem esperar com elevada probabilidade que o comportamento dos outros se conforme com os padrões que comumente consideram legítimos.”

Na concepção de Merton, pois permite-se interpretar o desvio como um produto da estrutura social, absolutamente normal, assim como o comportamento adaptado às regras sociais. “Isso significa que a estrutura social não tem somente um efeito repressivo, mas também, e sobretudo, um efeito estimulante sobre o comportamento individual.”[28]

Num primeiro momento defrontamo-nos com a desestruturação oculta (ou semi-oculta) dos “droogs”. As fissuras, como já apontadas, são relativamente importantes e relativamente aparentes, mas não são menos importantes e podem nos servir de meio revelador da especificidade daquela violência gerada. Com a agregação pode-se concluir que há um “enfraquecimento dos vínculos sociais” (Durkheim) que acarreta uma desagregação social. Ou seja, há um escambo de valores. A anomia é manifesta. Esse mecanismo, segundo Durkheim, caracteriza a acmé de uma civilização. Nos interessa a conclusão, cujo fundamento desse mecanismo é o de normatizar. A adoção de normas (e aqui é explícito: os “uniformes”, tanto do grupo de Alex quanto do outro grupo, os Billyboys, o “Nadsat”, o ritual do “milk-plus”) cria uma integração da qual os membros são partes. Os outros estão excluídos, já apontamos.

A consciência individual ou mesmo coletiva nada tem a ver com esse processo. Essas gangues não se formaram conscientemente. Estamos tratando de rebeldia, cujo objetivo é destruir a inércia, a quietude. Estamos no plano da resistência. Na guerra contra uma moral estreita e conformista. A violência dos “droogs”, pode ser analisada, como uma introspecção de um simbolismo alinhado a um desejo de viver social, talvez como resposta à não permissão de uma vida voltada para a produção numa sociedade dominada pelo trabalho e pelo isolamento. Como dissemos, não há esse espaço para os jovens entre as idades de dezessete a vinte e quatro anos.

Nesse vasto movimento, o ‘grupo de rejeitados’ é revestido de um novo contexto político. Tornam-se criadores ou reformadores de uma nova estruturação social.

A violência nos remete a um instinto, quase que perceptível, de recusa, resistência, insubmissão. O preso rebela porque se recusa a ter determinado tratamento penitenciário, o povo rebela porque não lhe é prestada a devida assistência, há violência porque é a forma de se externar algum tipo de inconformismo. Falamos de desejo de viver fora dos parâmetros impostos, falamos de resistência ao padrão do comportamento social.

A marginalidade, portanto, acabamos de mostrar, é supostamente anti-social, mas, de fato, trata-se de uma pára-sociedade (Maffesoli) avalista, no final das contas, do bom funcionamento do conjunto social.

Daí trazermos à tona a seguinte conclusão: a “ultra-violência” dos “droogs” é lógica e serve de equilíbrio social. São cúmplices do sistema que lhes oprimem e que eles próprios desejam se libertar. É necessário que alguém faça esse papel para que o sistema continue coeso como está. Certamente, a conclusão não é original, todavia, no contexto do filme é uma constatação assombrosa. Observemos que é o próprio “Ministro da Justiça” quem vai ao encontro de Alex para saber de seu pronto restabelecimento de saúde no hospital depois que esse se joga pela janela. O Ministro (leia-se poder dominante) interessado na recuperação do delinqüente, em especial daquele delinqüente, que havia rompido com o velho tratamento de recuperação e iniciado um novo tratamento.

Ralf Dahrendorf[29] expõe, coadunando com o pensamento lançado, que

“as sociedades e as organizações sociais não se mantêm unidas pelo consenso, mas pela coação, não por um acordo universal, mas pelo domínio exercido por alguns sobre outros.”

Na seara do indivíduo Alex, os psicanalistas sucessores de Freud dizem que não há essência da sociedade e nem do indivíduo[30]. A psicanálise vem se firmando no sentido da sociedade se confundir com a cultura. Isso quer dizer, simplesmente, que a sociedade é uma construção humana, assim como a cultura. Portanto, ela terá todos os aspectos das construções humanas, inclusive alguns elementos complexos: amor, ódio, beleza, ética, etc.. O indivíduo não tem como essência a repressão de si mesmo. Se se pode falar em essência (em Freud) é a presença determinante do inconsciente. E o inconsciente não se confunde com o reprimido, porque o inconsciente é mais. No caso de Alex, a concepção de si e do outro é muito ruim, muito rígida, daí o seu comportamento em tônica individualista até em relação aos seus “droogs”.

Não temos competência para nos lançar na psicologia, entretanto é certo que o processo final do novo mecanismo utilizado pelo Estado contra o delinqüente é um processo de “conter o indivíduo”, visando o estabelecimento e a manutenção do equilíbrio social como um todo. Observemos, então que se Alex morresse, antes ou depois do tratamento, seria muito pior para o sistema do que com ele vivo, distribuindo violência antes e se mostrando “domesticado” após o tratamento.

A individualidade de Alex - talvez possamos compreender assim – nos revela uma insatisfação com sua própria vida. Procura se satisfazer fugindo, ao máximo, do padrão que lhe é apresentado como correto e que lhe cabe adequar-se, apenas. Não aceita. Foge, luta, se rebeldia, agride a sociedade de todas as formas: faz uso de narcóticos, rouba, estupra, mata. O que quer Alex? Qual o seu objetivo com essa violência? Agredir a sociedade, é verdade, mas, dessa forma, acaba sendo co-réu do sistema. Ele é meio, fim e causa do sistema excludente. Freud[31] nos dá uma visão interessante sobre a violência que podemos ricamente incluir nesse trabalho:

“Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra “felicidade” só se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar – de modo geral ou mesmo exclusivamente – um ou outro desses objetivos. (...) Somos feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito pouco de um determinado estado de coisas.”

A violência de Alex parte da sociedade, ganha reforço individualista pela sua auto-concepção de pessoa na sociedade e, no final das contas, acaba sendo de utilidade para essa mesma sociedade. O círculo se fecha.

Tratamento: domesticação O tratamento consiste em uma lavagem cerebral na qual o delinqüente não consegue cometer os atos a que foi condicionado a não fazer. Tem ânsias e vômitos, sente dores e vertigens. Alex não pode mais roubar, estuprar e nem ouvir a nona sinfonia de Bethoveen. Mesmo que queira. É uma das caricaturas mais expressivas que se tem notícia de submissão: o sistema venceu, redundantemente.

Alex foi adaptado à uma situação que, se não tivesse cometido os atos de ultra-violência, não seria possível a aplicação do novo modo de “reincerção social”. Lembremo-nos que o “Ministro da Justiça”, em revista ao pátio onde Alex estava preso, julgou-o petulante, violento e anti-social, portanto apto à nova versão de tratamento. Aí está o aspecto utilitário, social, planificado, adaptado da violência individual de Alex.

Não nos passa desapercebido um ciclo de violência: Alex contra a sociedade e a sociedade contra Alex. Assim, podemos concluir certa a nossa afirmação anterior de que a violência é funcional. No caso, há uma identificação dos valores da sociedade contra os atos de Alex e uma renovação (ou inovação) no mecanismo de “domesticação do criminoso”. Não estamos ainda discutindo sobre o método ali utilizado, estamos apenas expondo que uma das conseqüências apontadas dos atos de “ultra-violence” praticados por Alex redundaram, queira-se ou não, em uma renovação. O sistema de recuperação de delinqüentes, se modificou por decorrência de Alex. A violência é ambígua: cria e destrói.

Já havíamos externado uma versão para o significado do título do filme. “Orang-e” = “Orang-utan”. Isso nos fez remontar a animal e, conseqüentemente, à domesticável. Essa domesticação é a finalização de um longo ciclo. É o que M. Foucault chama “a história da racionalização utilitária da particularidade na contabilidade moral e no controle político”. Essa citação cai bem na interpretação do filme porque se refere a uma análise da educação.

Àquele tratamento behaviorista, há uma certa ingenuidade na crendice de ser, o homem, condicionável tal e como os animais. É óbvio que somos passíveis de condicionamentos, mas não se tem notícias científicas sobre a possibilidade da propositura de métodos, ditos em psicologia “condicionamento operante”, para o controle comportamental.

No livro, com o capítulo vinte e um, o behaviorismo é vitorioso porque Alex se vê reintegrado à sociedade. Ou seja, o tratamento “funcionou”. No filme, ocorre justamente o contrário. Há uma crítica ao condicionamento, no caso, inoperante...

Observamos semelhanças, no aspecto, com o clássico “Admirável Mundo Novo”, de Adous Huxley. Todavia, a determinação da existência há a posteriori, no caso da “Laranja”.

Conclusão É evidente a dificuldade em se reduzir a violência à uma estrutura utilitarista. Nem o tentamos. Sempre tivemos olhos postos no filme. Adverte-se porque é clara a inaceitabilidade da incompreensível, excessiva e sem finalidade, violência gratuita. É, por isso mesmo, inquietante. Mas é fácil perceber que a violência acaba sempre por reforçar valores e / ou iniciar uma nova ordem, seja essa ordem de que esfera for: política, artística, literária, filosófica ou, como no caso, correcional.

Aqui não se defendeu a violência. O estudo é analítico, tão somente. É claro que não somos “indiferentes” à violência, compreendida essa indiferença no seu sentido de defesa social, onde “relegitimadora do exercício de poder do sistema penal” (para usarmos as palavras de Zaffaroni[32]), mas é lógico que busquemos “racionaliza-la” a fim de atrelar o filme à vida real. É bem isto que se procurou no trabalho: apreciar a violência nos limites do contexto proposto.

A própria “relegitimação” é simplista: nosso tempo é subversivo e o poder deve controlar, organizar, dividir em seqüências controláveis os agentes da violência. O problema é limitar os contornos desse lema. Lembremos Maquiavel quando ressalta os fins e não se importa muito com os meios... É dizer: “Isso irá diminuir a violência no futuro”, então a sociedade responde: “Ah, tudo bem; é para a alegria dos nossos filhos”. Todavia, essa ordem estabelecida traz ínsita a transferência para um futuro (próximo ou não) a segurança da sociedade. Tira-se hoje para se ter no amanhã. Limita-se hoje para ser abundante amanhã. Há uma transferência do próprio prazer para “o amanhã”. Só há um problema aqui: essa “subversão” da sociedade sempre existiu! Não importa a época. Imaginemos: Na época de Cristo. Na Idade Média. No período da guerra fria. Enfim... A realidade da sociedade é sempre um mister entre a fantasia e a objetividade em se alcançar a paz num futuro indeterminado. É uma “realidade” que propugna por estruturas sociais dominadas, controladas e crê num futuro de paz. Sem essas violências ou atrocidades, não haveria porque abrir mão de direitos para o Estado.

Ao buscarmos a paz estaríamos lidando com uma utopia, então?

O modo de ver utópico nos revela, conceitualmente, de que há uma “boa causa” a ser alcançada e que devemos trabalhar para alcançá-la.

No filme, a visão é pessimista. O futuro, cujo niilismo se expande com a violência gratuita, é pior do que o presente. Há uma irresignação impotente, fatalítica, cataclísmica. É uma posição, à toda prova, pessimista. Há, pois uma contradição entre a idéia “utópica” de uma “boa causa” e a idéia do filme “pessimista” quanto ao futuro. Estamos, pois em uma bifurcação: utópicos ou pessimistas?

Nós não perfilamos o pessimismo, já nos adiantamos. Permitimo-nos procurar soluções para a violência.

Dir-se-á, quem sabe os apocalípticos, que o homem é naturalmente mal, avesso à paz e irracional. Não discordamos, mas temos a convicção de que o homem, mesmo hoje chamado de irracional, um dia, tornar-se-á racional, conhecerá o caminho da paz e procurará o bem. Ademais, uma provocação: chamar o homem de irracional não é um sinal de que não somos tão rígidos assim? Esse discurso não é um discurso natimorto? Eis: somos positivistas, não utópicos.

De qualquer forma, acreditamos que o caminho para a paz vai de encontro com o que afirma Marshall B. Clinard[33]:

“Studies of such delinquent groups in middle-class communities, suburban areas, and cities and rural areas of various sizes and types are needed. With this information, sociologists could move far beyond mere generalities to specific knowledge of the effect of gangs on members. Undoubtedly it will be found tha gang can be typed according to differences in structure and function. Moreover, more detailed research on gangs may help us to integrate some psychiatric thinking with sociology. For example, gang that commit particularly violent and brutal offenses may have a member with a disturbed our sadistic personality who, because of his positions of leadership, exercises undue influence on other members of the gang, causing them to become involved in offenses which they not ordinary commit.”

O “inimigo”, hoje, é mais complexo do que se imagina, mas, nem por isso, invencível. Sabe-se de uma multiplicidade de opressões, de resistências, de agentes e, mesmo assim, quando se descobre um fator que gera a violência por detrás desse fator há outros inúmeros fatores e assim sucessivamente. E o que está por trás acaba por estar também à frente, acaba por ser um fator desencadeante de violência.

Tomemos, pois, o filme, como uma metáfora da vida que passa freneticamente exigindo-nos conhecer algo ignorado, mas sejamos conscientes, pois esse ‘dique’ da ignorância é insuficiente para reter o sonho de um novo futuro.

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25. DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 6a. edição, 1972.

26. FREUD, Sigmund. O Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997.

27. DAHRENDORF, Ralf. Out of Utopia: toward a reconstruction of sociological Analysis, in “The American Journal of Sociology”, LXIV.

28. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 14a. ed., 1999.

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[1] COHEN, Albert K.. Delinquent boys: The Culture of the gang, London: Routledge & Kegan Paul Ltd., 1956, p. 25. Grifos nossos.

[2] FUDOLI, Rodrigo de Abreu. O Fenômeno Violento: Fatores Condicionantes e Propostas para Redução de sua Incidência, Revista do CNPCP, Brasília, 1 (11): 95-112, jan./jun. 1998.

[3] www.kirjasto.sci.fi/burgess.htm

[4] www.beifaust.tripod.com/authonyburguess.htm

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[16] www.sciflicks.com/a_clockwork_orange

[17] www.sciflicks.com/a_clockwork_orange

[18]DURKHEIM, Emile. As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 6a. edição, 1972. p. 58. Grifos nossos.

[19] MAFFESOLI, Michel. Dinâmica da Violência. São Paulo: RT, Ed. Vértice, 1987, p. 55.

[20] ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro – Parte Geral. São Paulo: RT, 1997, p. 312.

[21] BECKER, Howard S.. Outsiders – Studies in the sociology of desviance, The Free Press, NY, 1991, p. 53. Grifos nossos.

[22] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2A. ed.,1999, p. 181.

[23] DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O Homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2a. Reimpressão, 1997, p. 343 e ss.

[24] DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O Homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2a. Reimpressão, 1997, p. 304.

[25] O trabalho, no filme, tem também essa função de adestramento, ou função disciplinar, como o diz Michel Foucault (FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 14a. ed., 1999, p. 223). Se os jovens não têm o trabalho, logo, uma das conseqüências pode ser a desagregação social.

[26] Todavia, uma grande distância separa Durkheim de Merton, pois esse louva-se do caráter sistemático da sua teoria, é dizer que oferece uma explicação de todo o comportamento desviante em geral, enquanto Durkheim analisa o comportamento desviante individualmente. Também Merton não entende que o homem é natural e necessariamente ilimitado e insaciável como Durkheim aponta. Para Merton todos os estímulos potenciadores da ação humana são socialmente induzidos.

[27] DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O Homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2a. Reimpressão, 1997, p. 322.

[28] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2A. ed.,1999, p. 62.

[29] DAHRENDORF, Ralf. Out of Utopia: toward a reconstruction of sociological Analysis, in "The American Journal of Sociology", LXIV, p. 126.

[30] DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa, op. Cit., possuem visão diferente.

[31] FREUD, Sigmund. O Mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 23 e 24.

[32] ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1999, 4a. ed.

[33] Criminological Research, in Sociology Today, vol. II, p. 528. Grifos nossos.