segunda-feira, 17 de junho de 2013

quarta-feira, 12 de junho de 2013

O Crucifixo no Escritório do Advogado Criminalista




O Crucifixo no Escritório do Advogado Criminalista

Warley Belo

Um cliente veio em consulta e, ao final, já de saída, avistou a imagem de Cristo que tenho na parede. Disse que se sentia mais tranquilo por estar diante de um cristão.
Despedi-me sem, no entanto dizer – realmente – qual a extensão do significado de Cristo num escritório de um Advogado. O momento não era propício, pois o cliente vem em busca de alívio imediato, ainda que temporário. Mas, posso aclarar agora. Di-lo-ei depois. Eventualmente.
O crucifixo com Cristo, de presença constante nos plenários do júri e também nos tribunais, não se trata de uma escolha religiosa. O Estado é laico. Todavia, a imagem nos remonta a um clamoroso erro judiciário, cometido há dois milênios. Para os jurados e juízes, uma advertência. Para os Advogados, uma lembrança.
Advertência para que julguem com retidão, decidam com a devida prudência, em face da lei.  Se recusem a agir como Pôncio Pilatos que, vislumbrando um inocente, “lavou as mãos”.
Lembrança para que sejamos atentos. Há erros judiciários por falsas interpretações, mas também por descaso dos julgadores.  
O episódio me fez lembrar a obra clássica do jurista italiano Piero Calamandrei – “Eles os Juízes, vistos por um Advogado” (São Paulo: Martins Fontes, 1999) quando disse sobre o assunto: 

“O crucifixo não compromete a austeridade das salas dos tribunais; eu só gostaria que não fosse colocado, como está, atrás das costas dos juízes. Desse modo, só pode vê-lo o réu, que, fitando os juízes no rosto, gostaria de ter fé na sua justiça; mas, percebendo depois atrás deles, na parede do fundo, o símbolo doloroso do erro judiciário, é levado a crer que ele o convida a abandonar qualquer esperança – símbolo não de fé, mas de desespero. Dir-se-ia até que foi deixado ali, às costas dos juízes, de propósito para impedir que estes o vejam. Em vez disso, deveria ser colocado bem diante deles, bem visível na parede em frente, para que o considerassem com humildade enquanto julgam e nunca esquecessem que paira sobre eles o terrível perigo de condenar um inocente.”

No meu caso, o Cristo está à minha frente. Atrás das costas, Themis.
Na gravura, “Christ before Pilate” de Hans Multscher, 1437.

terça-feira, 11 de junho de 2013



Babás que agridem crianças: maus-tratos, tortura ou tortura-maus-tratos?

Warley Belo
Advogado Criminalista

“A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta,
é sempre uma derrota.”
 Jean-Paul Sartre

         A disciplina para as crianças é um assunto tormentoso. Mesmo para os pais legítimos, as mais leves punições físicas encontram barreiras intransponíveis frente aos estudiosos do tema.
         Na evolução histórica, o pai podia fazer do filho o que bem entendesse. O pater-familias era o que vigorava na Roma Antiga. Posteriormente, esse poder sobre os filhos diminuiu encontrando no Cristianismo importante barreira moral. Na Idade Média, o poder de disciplina infligindo castigo físico era permitido, mas limitado à morte ou a ferimento grave. No século XIX, a maioria dos códigos não dispunha sobre os maus-tratos, senão às lesões graves ou aos homicídios de maneira em geral. Aqui no Brasil somente com o Código dos Menores (1927) foi que se passou a caracterizar especificamente o crime em seus artigos 137 a 140. Hoje em dia, a matéria é disciplinada no Código Penal como crime de maus-tratos (art. 136) e impor punição física para educar é algo fora do contexto social ao ponto de termos no Senado da República em trâmite a “Lei da Palmada” (PL 7672) que visa coibir qualquer interferência agressiva dos pais contra os filhos para o fim de educar. É claro que não há um consenso a esse respeito e muita discussão ainda há porvir. Entretanto, é pacífico entre nós, e chega a ser odioso, quando há um comportamento agressivo e desproporcional, seja por quem for e por qual motivo se justificar, a prática de maus-tratos. Com maior razão, se a pessoa é contratada para cuidar da criança, como é o caso das babás. 
         Maltratar, no caso, é expor a perigo a saúde ou a vida de alguém, sob sua dependência ou guarda, a castigos imoderados, trabalhos excessivos e/ou privação de alimentos e cuidados. O crime de maus-tratos tem pena entre 2 meses a 1 ano ou multa com causa de aumento de 1/3 da pena se a vítima é menor de 14 anos.  Esse crime tem como sujeito ativo autoridades, guardiães ou vigilantes para as práticas educacionais, religiosas, para tratamento ou custódia em geral.
         Entretanto, por que não se fala, no caso, de tortura, crime muito mais grave? O que diferencia os maus-tratos do crime de tortura, já que em ambos há a imposição de sofrimentos? É possível que um pai ou uma babá sejam condenados por tortura?
A tortura é crime previsto na Lei nº 9.455, de 7 de abril de 1997, cuja pena é bem maior variando de 2 anos a 8 anos de reclusão que, praticada contra criança ou adolescente, há também causa de aumento da pena de 1/6 até 1/3. Na oportunidade da publicação da lei, revogou-se o artigo 233 do Estatuto da Criança e do Adolescente, dando-se tratamento unitário e uniforme ao tema. Torturar significa infligir tormentos e suplícios, tanto na dimensão física ou mental, em vítima por atos de desnecessária crueldade. No caso em apreço, de uma babá que agride uma criança, estaremos nos referindo à figura típica esculpida no art. 1º., II, da Lei 9.455/97. Neste caso, não basta a ocorrência do sofrimento físico ou mental: ele tem de ser intenso (elemento indispensável, apesar de inexplicado porque um tipo aberto). Exige-se, ainda, a intenção específica de que funcione como forma de castigo pessoal ou medida de caráter preventivo. Teremos aí o crime de tortura-maus-tratos.
A diferença, pois mais comezinha entre os crimes diz conta, primordialmente, à intenção. No crime de maus-tratos, a finalidade da conduta é a repreensão de uma indisciplina, na tortura, o propósito é causar o padecimento da vítima. O crime de maus-tratos se castiga para educar, ensinar, tratar etc., o que denominamos ius corrigendi em Direito Penal. Esta é a finalidade de se impor o sofrimento ilegal. Essa espécie de maus-tratos, quando configurada, afastará a incidência do crime de tortura. No crime de tortura, há agressão gratuita, por motivos banais, ou para impor castigo pessoal por prazer, ódio ou qualquer outro sentimento vil. Sendo assim, a diferença não se encontra nem tanto na intensidade ou extensão do sofrimento, mas, sim, no elemento volitivo, nada obstante as características das lesões serem importantes indicativos e elemento integrante da tortura-maus-tratos.
O crime de tortura é equiparado a crime hediondo e seu início de cumprimento de pena é sempre fechado. Além do que é impossível substituir a pena de prisão por restritiva de direitos por ser crime praticado por violência.
Desta forma, via de regra e teoricamente, é possível que uma babá seja condenada por crime de tortura quando agride intensamente, não só no aspecto físico, uma criança com a simples intenção de menosprezá-la, subjugá-la ou humilhá-la.

Bibliografia
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, parte especial 2, 12ª. Ed., São Paulo: Saraiva, volume 2, p. 301 e ss..
FRANCO, Alberto Silva ET all. Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial. 7ª. Ed., São Paulo: RT, vol. 2, p. 2301 e ss.
FRANCO, Alberto Silva ET all. Leis Penais Especiais e sua Interpretação Jurisprudencial. 7ª. ed., São Paulo: RT, vol. 2, p. 3098 e ss.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, 4ª. Ed., Rio de Janeiro: Forense, 4ª. Ed., 1958, volume V, p. 445 e ss.
GOMES, Luiz Flávio. Estudos de Direito Penal e Processo Penal – Tortura, São Paulo: RT, 1998, p.122.
MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Breves considerações sobre a criminalização da tortura. São Paulo: Boletim Ibccrim, 56, julho, 1997, p. 3.
STF. HC 79.920. Rel. Maurício Corrêa.
TERRA, Rodrigo. Breves apontamentos sobre a lei da tortura (Lei 9455/97). Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 49, fev. 2001. Acesso em: 10 de junho de 2013.
TJPR. Ap. 82687900, Rel. Trotta Telles.
TJSP, RJTJSP 148/280.

quinta-feira, 6 de junho de 2013

O conceito de culpabilidade


Warley Belo
(Belo, Warley. Tratado dos Princípios Penais, volume II. Florianópolis: Bookes, 2012, pág. 18) 

            A definição[1] dogmática de culpabilidade (do alemão, Schuld, do italiano, colpevolezza) é, historicamente dificultada por sua sensível e complexa composição[2] alcançando, não raras vezes, paragens extrajurídicas. Por isso, o conceito de culpabilidade encontra caminho em definição negativa, isto é, a legislação prevê quais são as causas de exclusão da culpabilidade. Até mesmo Hassemer[3] chegou a afirmar que o conceito de culpabilidade é um dos mais difíceis e obscuros do sistema penal.
            Menoridade, doença mental, erro inevitável sobre a ilicitude do fato são exemplos de excludentes a limitarem ou mesmo extirparem a capacidade de responsabilidade. Sem essa capacidade de querer e compreender não é possível valorar um juízo de censura porque essa avaliação do comportamento do agente pelo aplicador da lei fica desarrazoada.
            Deste modo, o conceito inicial, apesar de não se ter na doutrina uma concepção unívoca, é o de se designar, a culpabilidade, como a valoração negativa ou reprovação sobre o injusto[4]. Entretanto, tal conceito, como qualquer outro sobre a culpabilidade, é insuficiente[5] e não responde muito, pois valoração, por si mesmo, já induz um leque muito amplo de possibilidades, mormente em uma sociedade pluralista como a nossa[6]. A dificuldade do tema é tamanha que até para lançar as bases mínimas da definição não existe consenso algum no tema.
            De qualquer modo, para construirmos o conceito de culpabilidade temos que partir de algum pressuposto. A doutrina lançou esse pressuposto sobre a valoração. Esta valoração é, antes de tudo, uma reprovação de alguma ação injusta (o objeto de valoração) porque seria exigível (juízo de censura) um comportamento diverso do autor. Essa reprovação pressupõe capacitação física e psicológica do agente, além da inexistência de determinadas circunstâncias, a permitir-lhe motivar-se de acordo com a norma penal. Daí tem que o injusto é o objeto sobre o qual recai a valoração, já a culpabilidade é, conceitualmente, esta própria valoração[7].



[1] Nos textos antigos, utilizava-se a expressão imputatio.
[2] Francisco de Assi Toledo (Princípios Básicos de Direito penal, São Paulo: Saraiva, 1990, pág. 216, § 16, item 224) introduziu assim: “A palavra "culpa", em sentido lato, de que deriva "culpabilidade", ambas empregadas, por vezes, como sinônimas, para designar um dos elementos estruturais do conceito de crime, é de uso muito corrente. Até mesmo as crianças a empregam, em seu vocabulário incipiente, para apontar o responsável por uma falta, por uma travessura. Utilizamo-la a todo instante, na linguagem comum, para imputação a alguém de um fato condenável. Seria incorreto dizer-se, por exemplo: Pedro tem culpa pelo progresso da empresa que dirige; o mesmo não aconteceria, porém se disséssemos: Pedro tem culpa pela falência da empresa que dirige. O termo culpa adquire, pois, na linguagem usual, um sentido de atribuição censurável, a alguém, de um fato ou acontecimento. Veremos que o seu significado jurídico não é muito diferente. Todavia, se olharmos de frente a culpabilidade jurídico-penal, será fácil perceber que não estamos diante de algo tão simples como parece.”
[3] “O conceito de culpabilidade é uma exceção entre os pressupostos da punibilidade. Ele pertence a um dos instrumentos mais difíceis e obscuros do sistema jurídico-penal.” (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito penal. Porto Alegre: Safe, 2005, p. 292).
[4] Ver SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 173 e ss.
[5] Foi uma das principais críticas que fez Sebastián Soler (Culpabilidad real y culpabilidad presunta. In Anuário de Derecho penal y ciencias penales, t. XV, F. III, Sepbre.-Didbre, MCMLXII, Madrid: INEJ Duque de Medinaceli, pág. 481, item 4) sobre a concepção normativista: “Se a reprovação está fundada na existência de algo, a culpa está aí antes de que a reprovação seja feita e, no fim, reprovabilidade não nos diz em que se funda. O reprovado é um efeito de algo meramente aludido, mas não aclarado.” (Tradução livre).
[6] Como anota Roxin (ROXIN, Claus. Derecho penal, t. I, Madrid: Civitas, 1997, p. 798): “o conceito normativo de culpabilidade só afirma que uma conduta culpável há de ser reprovável. Porém ele mesmo é de natureza completamente formal e não responde à questão relativa aos pressupostos materiais que caracterizam a reprovabilidade.” No mesmo sentido Marcos Destefenni (O injusto penal, Porto Alegre: Safe, 2004, p. 52, item 4.9): “O Direito penal, como a própria sociedade, é dinâmico. Os valores mudam todo dia e o Direito penal não pode se distanciar desse dinamismo social.”
[7] Precisamente aqui cabe toda a crítica da Criminologia com base na teoria das subculturas criminais (Albert Cohen e Herbert Marcuse) que nega o próprio princípio de culpabilidade porque entende essas valorações relativas. “... a teoria das subculturas criminais nega que o delito possa ser considerado como expressão de uma atitude contrária aos valores e às normas sociais gerais, e afirma que existem valores e normas específicas dos diversos grupos sociais (subcultura). (...) Não existe, pois um sistema de valores, ou o sistema de valores.” (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito penal. 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 199, p. 74, grifamos). Todavia, trabalhamos em uma ideologia de sistema da valores dominantes da maioria, quer dizer, na ideologia da culpabilidade. Caso contrário não teria sentido nos debruçarmos sobre o assunto e nem buscar legitimá-lo constitucionalmente.