Racismo ou Humor?
Warley
Belo
Advogado
Criminalista
Mestre
em Ciências Penais - UFMG
“Oh! O senhor está com ideias
negras!”
(Machado
de Assis, Iaiá Garcia)
O
comediante Rodner Figueroa foi demitido após afirmar que a primeira-dama
americana, Michelle Obama, “parecia do elenco de O Planeta dos Macacos”. Esse tipo de racismo também existe entre
nós. O preconceito está na conversa de bar, na televisão e na música.
Expressões como “serviço de preto” ou “negrice”, dentre muitas outras, são
bastante comuns. Nem tão longe de nós, o programa Os Trapalhões fazia sucesso nas noites de domingo expondo Mussum em
situações hoje inaceitáveis. Em um episódio, Dedé chega em uma oficina mecânica
e pergunta “cadê o macaco?”, ao que Mussum todo sujo de graxa sai debaixo de um
carro e responde com sua peculiar verve: “Macaquis é a mãe!” Hoje essa cena não
teria mais graça. Qual a diferença entre os casos? A partir de quando o humor de
conotação racista passa a ser considerado crime?
A raça decorre de características
hereditárias como a cor dos cabelos, pele e nariz que distinguem grupos da
mesma espécie. Não desapareceram apesar de grande miscigenação. A crença de que
essas características sejam determinantes na superioridade de um grupo a outro
é o que chamamos de racismo. Já o julgamento negativo e prévio, uma suspeita,
uma intolerância, denominamos preconceito. Há um terceiro conceito que é a discriminação
quando se externa o preconceito e é a tônica do limite entre uma conduta
criminosa e a liberdade de manifestação artística.
Na época do Brasil colônia, vigia-se
as Ordenações Filipinas (1603) onde se permitia escravos brancos e negros e se estimulava
o preconceito contra os judeus, que eram obrigados a usar chapéus amarelos, e os
mouros, que deveriam usar na roupa uma “lua de pano vermelho”. Proclamada a Independência,
o Brasil assinou tratado proibindo o tráfico de escravos em 1826. O Código
Criminal do Império de 1830 havia previsão de penas de açoites e a colocação de
ferros nos réus-escravos. Em 1850, entrou em vigência a Lei Eusébio de Queiroz
que proibia o comércio de escravos. Em 1871, a Lei do Ventre Livre e somente em
1888 a abolição da escravidão. No Código Penal da República de 1890,
igualmente, nada apontou sobre o preconceito, pelo contrário, criminalizava a
capoeira. O Código Penal de 1940, onde a parte especial ainda está em vigência
entre nós, nada disse sobre a questão. Somente em 1951 é que surge a primeira
lei racial, chamada Lei Afonso Arinos (Lei 1390/51) que, de maneira muito tímida,
previu atos discriminatórios como contravenção. Teve mero efeito simbólico.
Após 34 anos, publica-se a lei 7437/85 que, em síntese, expandiu o preconceito para
questões de sexo e estado civil. Com a Constituição de 1988, o art. 5º., inciso
XLII, passou a considerar o racismo como crime inafiançável e imprescritível.
Após esta legislação, cuja ideologia repressiva se esquece da prevenção social,
surge a atual Lei 7716/89 regulando o preconceito de raça, cor, etnia,
procedência nacional e religião, deixando o preconceito de sexo e de estado
civil como contravenção. Posteriormente, houve modificações da Lei 7716, a
saber: leis 8081/90, 8882/94 e 9459/97. Ou seja, temos, no Brasil, quase 400 anos
de escravidão legalizada contra 130 anos de tentativa de respeito racial.
A legislação prevê, ainda, os
comportamentos considerados de essência preconceituosa, como xingamentos, que
podem configurar a injúria racista, prevista que é no art. 140, §3º., Código
Penal. Chamar alguém de “macaco” ou “bicho de goiaba”, fazendo referência subjetiva
individualizada e dirigida a uma pessoa por suas características físicas,
morais ou intelectuais ligadas à raça não é crime de racismo, mas sim de injúria
racista, cujas consequências são mais brandas.
O
Brasil já foi considerado pela ONU, através da UNESCO, em 1950, como uma “democracia
racial” onde as raças conviveriam harmoniosamente. Sabemos, entretanto, que o
preconceito no Brasil sempre viveu. Apesar de 99% dos brasileiros se dizerem
não-racistas, 98% desses dirão também conhecer alguém que o é. O legislador só
soube até hoje aplicar doses maiores do mesmo remédio ao doente, ou seja, aumentar
as penas. Isso ainda é o de menos, pois há ideias tacanhas e ridículas como a
da ministra que pretende banir obra de Monteiro Lobato por passagens
consideradas, por ela, racistas. Seria o primeiro passo para levar a proibição
da leitura de Castro Alves, Shakespeare, Agatha Christie... e também da Bíblia
pelos mesmos móveis. Igualmente deveríamos censurar músicas como “Nega do Cabelo
Duro” de Luiz Caldas, “Ovelha Negra” de Rita Lee e “Black Sabbath” do homônimo
grupo inglês. Por fim, deveríamos, então, extirpar dos dicionários expressões
como câmbio negro, mercado negro, humor negro, caixa-preta etc.
Michele
Obama foi ofendida, mas não só ela, como todos os negros. A frase dita numa TV
de grande audiência incita claramente preconceito generalizado. Observe-se que
esta análise não passa por uma visão objetiva, gramatical ou de bom-senso, mas
uma visão subjetiva, valorativa a se perceber que o interlocutor desejou ou
assumiu o risco de ofender a toda uma coletividade. Muito mais importante,
entretanto, do que censurar comediantes, livros e músicas é criar consciência
desse sintoma na sociedade. Somente o tempo e a maturidade irão possibilitar reflexos
nas expressões e nas artes. O limite, pois do humor, da arte e das expressões
vai até onde não seja ofensa proposital e deliberada de induzir ou incitar o
preconceito. Fora disso, é piada de mal gosto.