quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Professor Warley Belo lançará obras em Portugal e receberá Comenda


O Núcleo de Estudos na Europa e América do Sul e a Rede Advocacia de Excelência organizam o XIII Encontro Internacional de Juristas em conjunto com o 5º Congresso de Direito Europeu em Porto / Portugal entre os dias 18 e 22 de janeiro de 2016. O evento é realizado na Europa todos os anos, reunindo profissionais do Direito de três continentes.

Portus Cale. Marcelino Abreu


O Professor Warley Belo irá participar do encontro onde receberá a Comenda INFANTE D. HENRIQUE, o mentor dos Descobrimentos. 

Na oportunidade, lançará obra em conjunto com juristas do Brasil, Portugal, Argentina, Espanha, Colômbia e Peru. Na mesma ocasião, lançará, na Europa, seu romance judicial “O Segredo das Cartas” (Bookess), baseado em fatos verídicos.



As Condições da Ação Penal

Prof. Warley Belo publica artigo sobre As Condições da Ação Penal na prestigiada revista Lex Magister. 

Resumo: A evolução do conceito de ação ao longo do tempo faz mudar a concepção das chamadas condições da ação inclusive no seu relacionamento com o mérito da causa. A problemática suscita questionamentos a respeito da carência de ação trazendo conseqüências práticas importantes. A teoria da asserção ajuda a sistematizar essa correlação entre as condições da ação e o mérito da causa, possibilitando uma interpretação uníssona com a concepção abstrata da ação.





As Condições da Ação Penal e o Julgamento de Mérito Abusivo


As Condições da Ação Penal e o Julgamento de Mérito Abusivo

Warley Belo -  

Resumo: A evolução do conceito de ação ao longo do tempo faz mudar a concepção das chamadas condições da ação inclusive no seu relacionamento com o mérito da causa. A problemática suscita questionamentos a respeito da carência de ação trazendo conseqüências práticas importantes. A teoria da asserção ajuda a sistematizar essa correlação entre as condições da ação e o mérito da causa, possibilitando uma interpretação uníssona com a concepção abstrata da ação.

1. Das Teorias da Ação

1.1 Introdução

Ação é o bater à porta do Poder Judiciário. É o direito de invocar, de pedir a tutela jurisdicional. O Estado chamou para si a tarefa de administrar a Justiça através do Poder Judiciário ficando impossibilitados, os particulares, de auto-executarem seus direitos, salvo os casos em que a lei permita a autodefesa. Dessa forma, da violação da norma penal nasce a pretensão punitiva do Estado (ius puniendi), que se opõe à pretensão de liberdade (ius libertatis) do possível infrator. A pretensão punitiva, por sua vez, só pode ser atendida mediante a sentença judicial, que só é alcançável validamente por intermédio do processo (nulla poena sine judicio).

O processo é sempre indispensável; é dogma do Estado Democrático de Direito. E o direito de pedir o provimento jurisdicional é a própria ação. O Estado, portanto, por intermédio do órgão do MP ou de particular (ação penal condenatória de iniciativa privada), exerce a ação a fim de ativar a jurisdição penal. Dessa forma, a ação provoca a jurisdição que se exercita por meio do processo, importante alicerce do Estado Democrático de Direito.

1.2 Breve Regressão Histórica às Teorias da Ação

Savigny consolidou a teoria imanentista (teoria civilista ou concepção clássica) em 1840. Foi a primeira teoria, no direito moderno, que tentou estabelecer o conceito de ação processual. Defendia a idéia de que para cada direito material era imanente uma ação, em analogia à concepção original dos romanos (legis actionis). O direito material era indissociável, não autônomo, ao direito de movimentar a jurisdição. A ação e o direito subjetivo material constituíam uma só coisa, eram sinônimos, quer dizer, não há ação sem direito e não há direito sem ação. Partia do conceito de ação dado pelo jurista romano Celso: Nihilaliud est actioquamius quod sibidebeatur, indiciumpersequendi (A ação nada mais é do que o direito de perseguir em juízo o que nos é devido). Windscheid demonstrou que essa actio não correspondia à ação processual moderna. O conceito seria mais adequado à pretensão de tutela jurídica estatal. Existiam quatro condições da ação: existência do direito, qualidade de parte, capacidade processual e interesse.

Chegou a ser adotada por Garsonnet, Mattirolo, João Monteiro, João Mendes Júnior, Clóvis Beviláqua e Câmara Leal. Por volta de 1850, houve disputa entre os juristas alemães Windscheid e Müther no sentido de conceber, ou não, a ação como direito autônomo, distinto do direito material. Bernhard Windscheid publicou, em 1856, obra intitulada A ação do direito civil romano do ponto de vista do direito atual, em que demonstra que o conceito romano de actio não coincidia em absoluto com o conceito de ação (Klage) daquele direito germânico. Theodor Müther, em 1857, publica Sobre a teoria da actio romana, do moderno direito de queixa, da litiscontestação e da sucessão singular nas obrigações, em revide a Windscheid. Ele procurou demonstrar que havia uma perfeita coincidência entre a actio romana e a Klage germânica. No mesmo ano, Windscheid respondeu a Müther na obra intitulada A actio réplica ao Dr. Theodor Müther, acolhendo muitas das ponderações de seu opositor.

Wach (1860) acresceu à disputa a idéia de direito a uma sentença favorável: tem direito de ação quem tem razão, ou seja, direito de ação só existe se reconhecido concretamente em juízo. Nascia a teoria concreta da ação. Fundava-se a idéia de direito autônomo e público da ação. Wach dizia que ação é um direito público contra o Estado que deve garantir os direitos do autor contra o réu. Seguiram Wach, Müther e Hellwig. Alguns autores inserem Chiovenda, pois seu conceito de ação é idêntico ao de Wach, qual seja, ação é poder atribuído ao titular do direito subjetivo material. Esse titular invoca a proteção do Estado para tornar efetivo seu direito contra o obrigado. Chiovenda, assim como Wach, também tentou demonstrar a autonomia do direito de ação ao subordinar o direito de ação à existência de um direito para o autor. A existência do direito é pressuposto da ação. Devem concorrer, ainda, duas condições: legitimidade e interesse, sendo que o julgamento das condições da ação é o julgamento do mérito.

A concepção é duramente criticada por não explicar o direito de ação declaratória negativa que visa reconhecer a inexistência de uma relação jurídica, esvaziando o conceito concreto de ação. Oskar von Bülow (1868) concebeu o processo como relação jurídica. Quanto à ação, posicionou-se como concretista, seguindo, pois, as teorias de Müther e Wach. Doutrinava que a ação é o direito a uma sentença justa, mas só ocorre após a demanda. Anterior ao juízo, não existe.

Coube a Degenkolb, na Alemanha, e Plósz, na Hungria, em 1877, desenvolver a teoria da ação como direito público, eminentemente autônomo e abstrato. Conceberam, assim, a ação como direito incondicionado de movimentar a jurisdição, pouco importando o reconhecimento do direito material alegado. Essa teoria, abstrata da ação, define a ação como direito autônomo completamente desvinculado de qualquer direito subjetivo material. O direito à ação é abstrato porque outorgado pela ordem jurídica a quem invoca proteção jurisdicional. Ação é, assim, direito geral e abstrato a uma sentença favorável ou desfavorável.

A partir de 1877, desvincula-se o direito de ação do direito subjetivo invocado e da análise de ser o direito material favorável ou não. Diferencia-se, de uma vez por todas, direito material de direito processual. A existência do direito material torna-se irrelevante para o direito de ação. Seguiram a concepção Carnelutti, Couture, Alfredo Rocco, Zanzucchi dentre outros. Köhler dizia que acionar é um direito individual decorrente da personalidade. Essa tese não vingou, por se adequar mais à Psicologia do que ao Direito, apesar de Goldschmidt ter suavizado a crítica ao referir-se ao conceito de ação como direito da personalidade.

Chiovenda, em 1903, profere na Universidade de Bolonha conferência intitulada A ação no sistema dos direitos, concebendo a ação como “o poder de criar a condição para a atuação da vontade da lei”. Integra, assim, a ação na categoria dos chamados direitos potestativos (poderes de produzir efeitos jurídicos determinados). Para Chiovenda, a ação é um poder puramente ideal, quer dizer, o poder de produzir determinados efeitos jurídicos (atuação da lei), mas ação é direito autônomo.

Essa teoria da ação como direito potestativo é inserida no grupo da concepção concreta, pois a ação, para Chiovenda, não pressupõe necessariamente um direito subjetivo, mas só existe direito de ação quando a sentença é favorável ao autor. Ação é direito potestativo, de poder jurídico (kannRechte), a quem tem razão contra quem não a tem. Não se propõe contra o Estado, mas contra o adversário, porque o Estado é que tem interesse da escolha da razão; por isso provê juízes.

A vitória na demanda seria uma condição da ação sendo ele o primeiro processualista a formular a teoria das condições da ação. Conceitua-as como condições necessárias para se obter um pronunciamento favorável. Para Chiovenda, as condições da ação são questões de mérito, por isso é considerado adepto à concepção concreta do direito de ação, que seria autônoma, mas que estaria sempre voltada à realização efetiva do direito substantivo da parte. De forma que não faz uma separação nítida entre as condições da ação e o mérito. Diz ele que os pressupostos processuais são “condições para a obtenção de um pronunciamento qualquer, favorável ou desfavorável, sobre a demanda”. Já as condições da ação seriam “condições de uma decisão favorável ao autor”. Para Chiovenda, pois, a falta de condição da ação leva à rejeição do pedido do autor produzindo sempre coisa julgada, como decisão de mérito. É dizer: o julgamento das condições da ação é o julgamento do mérito. As condições da ação são condições de mérito.

Seguiram Chiovenda, Weismann, Redenti, Eliézer Rosa, Celso Agrícola Barbi. Calamandrei também seguiu Chiovenda. Para ele, a ação era direito subjetivo autônomo (existia por si mesmo). Daí dizer que havia um direito processual e outro material. Carnelutti definiu a ação como “o direito subjetivo processual das partes”. Também dizia que o interesse individual do autor é diferente do interesse da ação. Aquele pretende a solução favorável do litígio; esse, a composição do litígio. Carnelutti é criticado por falar que a ação é contra o juiz, porque o juiz e o Estado não podem ser separados. Já Eduardo Couture, jurista uruguaio, definiu a ação como “o poder jurídico que tem todo o sujeito de direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais para reclamar deles a satisfação de uma pretensão”.

Seguindo a linha do tempo, Ugo Rocco define ação como “o direito de pretender a intervenção do Estado e a prestação da atividade jurisdicional, para a confirmação ou realização coativa dos interesses (materiais ou processuais) protegidos em abstrato pelas normas de direito subjetivo”. Zanzucchi defende a teoria abstrata da ação, segundo a qual, além de ser um direito autônomo frente ao direito material controvertido – conceitualmente -, independe a ação da própria existência de tal direito subjetivo. Ele assume perante o problema das condições da ação posição bem diferente da de Chiovenda. Seu entendimento é que as condições da ação, os pressupostos processuais e o mérito da causa são categorias distintas. As condições da ação são “os requisitos do poder de agir” diante do caso concreto, a fim de alcançar o provimento final a que tende a ação.

Liebman lança bases para a teoria eclética da ação. Para o processualista, ação é direito de provocar o exercício da função jurisdicional, direito subjetivo que consiste no poder de criar situação a que o exercício desta função está condicionado. É dirigida contra o Estado, a fim de que esse dê provimento jurisdicional. Para isso, a ação depende de requisitos constitutivos (as condições da ação). “Só se estiverem presentes essas condições é que se pode considerar existente a ação, surgindo para o juiz a necessidade de julgar o pedido, para acolhê-lo ou rejeitá-lo”. O direito de ação é um agir contra o Estado, em sua condição de titular do poder jurisdicional, i.e., direito de ação é direito à jurisdição. Não há ação sem jurisdição e vice-versa. Nisso concordam também os adeptos da teoria abstrata.

Para Enrico Tullio Liebman, só há jurisdição quando ultrapassada a fase de averiguação prévia. Se há alguma condição prévia não presente para que o juiz possa decidir sobre o mérito da causa, a decisão que encerra o processo não é verdadeiramente jurisdicional e não haverá exercício de ação. O direito de ação é direito a sentença de mérito favorável ou não ao autor, sendo necessário as condições da ação que se apresentam como pré-requisitos à apreciação do mérito da causa. Na terceira edição de seu manual, retirou a possibilidade jurídica do pedido dentre as condições da ação, subsumindo-a ao interesse de agir. Paradoxalmente, o legislador brasileiro passou a adotar, naquele momento, a primeira posição do professor italiano, pelo art. 267, VI, do CPC (LGL\1973\5).

Com Liebman, deu-se sentido próprio à expressão carência da ação, fazendo surgir a teoria do trinômio: pressupostos processuais, condições da ação e mérito da causa. É a teoria mais aceita. Fazzalari faz a revisão do conceito de ação tomando como critério a legitimação para agir, que não pode ser atribuída apenas ao autor, mas se estende a todos os sujeitos do processo, o que é perfeitamente lógico, pois sem a legitimação para agir não se poderia compreender o fundamento jurídico de seus atos.

1.3 Conceito de Ação Penal

Ação vem de actio, do verbo latino agere, significando, processualmente, ação judicial. Na linguagem forense, empregou-se agere, no sentido de pleitear. É, pois, o direito de provocar o Poder Judiciário a uma decisão sobre relação de direito. Diz-se da ação penal quando visa a aplicação da lei penal, assim entendida em sua inteireza de imposição de pena ao delinqüente, prova do delito, acusação do autor de infração penal, busca pela verdade do fato considerado delituoso. Ação é faculdade ou dever (no caso das ações penais públicas) e meio próprio que tem toda pessoa capaz, com interesse e legitimidade de exercitar em juízo um direito subjetivo de que é titular. É meio legal de reivindicar ou defender em juízo um direito subjetivo pretendido, ameaçado ou violado ou simples interesse. É o direito de invocar o Poder Judiciário.

Diz-se que ela é pública, mesmo a ação penal condenatória de iniciativa privada, pois o que se faz valer é o direito de punir do Estado (ius puniendi) e não o direito de ação (ius accusationis). Caracteriza-se por ser indivisível, pois abrange todos os que participaram do delito, e indisponível, visto que o órgão do MP não pode desistir da ação iniciada e as partes não podem transacionar sobre o objeto do processo ou fixar e delimitar o objeto de acordo com seus interesses pessoais, como ocorre no processo civil. A ação é dirigida apenas contra o Estado (tanto na esfera civil como na penal), embora, uma vez apreciada pelo juiz, vá ter efeitos na esfera jurídica de outra pessoa: o réu ou o executado. Nega-se, portanto, que ela seja exercida contra o adversário isoladamente, contra esse e o Estado ao mesmo tempo, ou contra a pessoa física do juiz.

Modernamente, há uma tendência a considerar como ação penal uma série de pedidos feitos em juízo penal e que não têm caráter condenatório, como a prisão preventiva, a homologação de sentença estrangeira, a fiança, o habeas corpus, a revisão criminal etc. Por isso, utilizamos sempre a expressão ação penal condenatória, porque existem ações penais não condenatórias.

2. Das Condições da Ação Penal

2.1 Introdução

O direito de invocar o Poder Judiciário exige a presença de condições, requisitos para a existência não abusiva e de efetivo exercício da ação penal. “É como a situação de quem embarcasse em trem, sem bilhete de passagem. Depois de algum percurso, verifica-se que ele não tem direito ao transporte, nem meios de adquiri-lo. É posto para fora da composição. Não consegue a finalidade com que entrou no carro”.

Como já explicitado no item 1.2, o primeiro processualista a formular a teoria das condições da ação foi Chiovenda. Conceituava-as como condições necessárias para se obter um pronunciamento favorável. Para Chiovenda, as condições da ação são questões de mérito (concepção concreta). Tal posicionamento é, coloquemos assim, vencido atualmente pela concepção abstrata. Tal constatação é de suma importância para diferenciarmos as conseqüências, limites e fundamentos da carência da ação. Somente quando presentes as condições da ação é que se pode dizer que existe ação tecnicamente regular, surgindo para o juiz a obrigação de julgar o pedido procedente ou não.

As condições da ação no processo penal são três: possibilidade jurídica da acusação, interesse de agir e legitimação para agir.

2.2 Possibilidade Jurídica da Acusação

Haverá possibilidade de acusação se a causa de pedir se fundar em fato previsto como delito e o pedido for previsto e não defeso em lei. No processo civil, diz-se que a pretensão sobre dívida de jogo, v.g., é expressamente vedada, dizendo-se impossível juridicamente o pedido. Mas, o pedido, tecnicamente, é possível, qual seja, condenação a pagamento de quantia certa. Assim, a impossibilidade jurídica reside, precisamente, na causa de pedir e não no pedido em si. Faltando a previsão legislativa sobre o pedido – ou a causa de pedir -, no processo civil, não é causa de impossibilidade jurídica do pedido, pois o juiz decidirá mesmo assim.

No processo penal, a ordem jurídica deve prever a providência pretendida pelo interessado. A possibilidade jurídica da acusação é uma questão de tipicidade a ser observada no recebimento. Se há previsão, a causa de pedir – e não o pedido – é juridicamente perfeita e, atendendo-se às outras condições, é possível que se alcance a decisão de mérito. O pedido seria juridicamente impossível se pretendesse a prisão perpétua ou a pena de morte, por exemplo, já que vedadas pelo ordenamento.

Calmon de Passos, tratando do assunto no âmbito processual civil, critica a inserção da possibilidade jurídica do pedido como uma condição da ação. Para o insigne processualista, haveria a possibilidade jurídica sempre que a pretensão (substancial) não estivesse expressamente vedada pelo ordenamento jurídico, e não quando faltasse nele a previsão, em abstrato, da pretensão postulada.

No processo civil, a possibilidade se define negativamente (impossibilidade jurídica) quando o ordenamento jurídico não veda, em tese, o pedido (ex.: testamento de pessoa viva, contrato sobre dívida de jogo etc.). No processo penal, somente é possível o provimento se expressamente permitido, expressamente admitido, tanto no que tange a causa de pedir (típica, em tese) quanto ao pedido (típico e não vedado). No âmbito penal, o princípio da legalidade (nullum crimen nulla poena sine praevia lege scripta, stricta et certa) é reinante e absoluto, e não se faz juízo negativo, mas positivo. Isso porque essa condição da ação penal refere-se à pretensão expressamente prevista no ordenamento jurídico (causa de pedir). Assim, matar alguém é crime (art. 121 do CP (LGL\1940\2)). O órgão do MP denuncia pretendendo a aplicação da pena cabível e não proibida (pedido). Logo, há possibilidade jurídica da acusação e não, tão-somente, do pedido. Assim, se alguém comete um ato incestuoso próprio, haverá impossibilidade jurídica da acusação, levando o autor a ser carecedor da ação. Tal sistemática decorre mesmo da função garantidora do tipo penal, donde se conclui que a inexistência de possibilidade jurídica da acusação acarreta a carência da ação.

E se o juiz receber a ação penal na circunstância do incesto próprio, v.g.? Haverá carência de ação? Por evidência que não, se – e somente se – não constatar a impossibilidade jurídica da acusação no momento adequado, qual seja, no recebimento. É claro que não se deve esperar pela análise do mérito, em hipótese como essa. Deve-se, sim, decidir sobre a admissibilidade ou não da ação penal.

Não se obtém mérito sem processo e sem contraditório. O réu só toma conhecimento do processo após a citação válida. É concluir: só após o recebimento da ação penal, nunca antes. Se há processo, deve haver contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/1988 (LGL\1988\3)). Mérito no recebimento é concepção eminentemente concretista, o que a doutrina vem rechaçando.

O recebimento da denúncia (ou queixa) importa em cognição sumária; ou seja, o juiz não deve aprofundar no exame do mérito, pois seria verdadeiramente um julgamento antecipado. Todavia, caso o fato narrado evidentemente não constitua crime, i.e., a prima facie já se nota a atipicidade, desnecessário o processo, e a peça inaugural não deverá ser recebida e nem haverá julgamento do mérito. É somente no julgamento meritocrático que se analisarão os fatos provados. No juízo de prelibação, o juiz deverá renunciar a esse exame detido. Se há impossibilidade jurídica da acusação constatada no recebimento, o juiz deverá declarar o autor carecedor da ação (art. 395 do CPP (LGL\1941\8), modificado pela Lei 11.719/2008). É impensável que, por exemplo, um cidadão seja denunciado por fato atípico, e o juiz julgue o mérito em pleno juízo de prelibação, e, o pior, já se sabendo que, na hipótese, não poderia ter sido pedida a aplicação da sanção penal (já que se trata de conduta atípica). Se o juiz, num momento de dúvida, recebe a ação penal, que pede a condenação por fato atípico, temos aí uma nulidade. Se, persistindo o processo, alcançar a sentença tratar-se-á de decisão de mérito (art. 386, III, do CPP (LGL\1941\8)).

Ao juiz cumpre indeferir a inicial por carência, se averiguada no recebimento. Deve declarar extinto o processo sem julgamento de mérito, por nulo que é, se averiguada, a impossibilidade, entre o recebimento e a sentença. Há, todavia, julgamento de mérito se averiguada na sentença. Uma coisa é o julgamento das condições da ação (actionem esse fundatam) e outra a decisão do pedido (actionem esse probatam).

Por todos esses motivos, a inicial que é recebida, sendo a acusação impossível juridicamente, está a contrariar a legislação constitucional e infraconstitucional. Haverá flagrante abuso do poder-dever de acusar. O caminho do réu poderá ser dois: impetrar habeas corpus para trancar a ação penal por nulidade ou aguardar a decisão de mérito e pleitear absolvição com base no art. 386, III, do CPP (LGL\1941\8).

2.2.1 Condições de Procedibilidade

Existem, ainda, as condições especiais para o exercício da ação penal. São as denominadas condições de procedibilidade (ou de persegüibilidade), que nada mais são do que espécies da possibilidade jurídica da acusação.

As condições da ação se exigem sempre, mas as de procedibilidade somente quando a lei assim determinar. Exemplo: representação na ação penal pública condicionada. Sem esse pré-requisito, também haverá contrariedade aos mandamentos legais. A falta de condição de procedibilidade significa ilegalidade impediente na instauração do processo. Assim, faltando a representação do ofendido, há carência da ação pela impossibilidade jurídica da acusação. Se o juiz receber a ação, mesmo assim haverá nulidade manifesta e absoluta (art. 564, III, a, do CPP (LGL\1941\8)), por isso mesmo passível de HC (art. 648, IV, do CPP (LGL\1941\8)).

2.3 Interesse de Agir

Existe o interesse material de agir, bem como o interesse processual ou interesse de agir. O interesse material exige, para propor ou contestar uma ação, interesse moral ou vínculo familiar (representação, por exemplo) da parte de quem o faz. É interesse primário. O interesse processual é instrumental, secundário. É a aspiração a uma justa composição da lide, não o interesse em lide. É o interesse-necessidade de se recorrer ao Judiciário, que no processo penal é presumida, tendo em vista a impossibilidade de aplicar pena sem processo (nulla poena sine iudicio).

É perda de tempo o exame de mérito em pedidos que podem ser satisfeitos por outros modos que não uma ação judiciária ou que não revelam nenhum prejuízo ou resistência do réu na satisfação do direito que se lhe exige. Assim é no processo civil. No campo penal, é impensável aplicar pena sem o devido processo legal. Demandas que invocam leis em tese, questões acadêmicas, dentre outros exemplos, são questões que revelam a falta de interesse processual de agir. Antes de saber quem tem razão, o juiz tem de verificar se a demanda se justifica, independentemente do direito que as partes alegam ter, e se o tipo de processo pretendido é o adequado para a situação concreta.

Exsurgem do conceito os requisitos da necessidade, utilidade (uso das vias) e adequação (ao procedimento em contraditório), a fim de se atingir o interesse de agir. Para a maioria doutrinária, porém, quando observada pelo juiz, por exemplo, uma causa de extinção da punibilidade, haverá carência da ação por falta de interesse de agir, se observada no recebimento nos termos do art. 43, II, do CPP (LGL\1941\8). Tal se impõe até mesmo em obediência ao princípio da economia processual, pelo qual o processo deve ter o máximo de efetividade com o mínimo de procedimento e gasto financeiro. Assim, se já se sabe da impossibilidade de se aplicar pena a alguém pelo processo ser desnecessário ou inútil (interesse-utilidade), não deverá nem ao menos ser recebido, tal é o caso da prescrição retroativa. Desse modo, as causas extintivas da punibilidade (perempção, litispendência, coisa julgada, prescrição, decadência, dentre outras) se ligam ao interesse de agir. Há carência da ação, mas por falta de interesse, e não por impossibilidade jurídica da acusação. A extinção da punibilidade faz a causa de pedir inútil e sem necessidade.

Por outro lado, o processo penal é sempre necessário (interesse-necessidade) para a aplicação da pena, visto que o particular não pode fazer Justiça com as próprias mãos. O pedido deve ser idôneo a provocar a atuação jurisdicional em situação concreta; ou seja, deve ser útil. Deve satisfazer concretamente a pretensão do autor. O interesse de agir é essa ponte entre a situação concreta e a tutela jurisdicional. Se não há situação concreta ou se não há a necessidade da tutela, então a ponte que une os conceitos não existe.

Também se entende por interesse de agir a adequação entre a situação do fato e o provimento jurisdicional concretamente solicitado. Assim, por exemplo não se poderá impetrar MS para efetivar uma busca e apreensão (medida cautelar).

2.4 Legitimatio Ad Causam

Quando se fala em legitimação, surgem as clássicas definições de Alfredo Buzaid e Liebman, respectivamente: “A legitimidade é a pertinência subjetiva da ação, a titularidade na pessoa que propõe a demanda.”(…) é a pertinência subjetiva da lide nas pessoas do autor e do réu, isto é, o reconhecimento do autor e do réu, por parte da ordem jurídica, como sendo as pessoas facultadas, respectivamente, a pedir e contestar a providência que é objeto da demanda.” O tema se liga a quem promove a ação penal e contra quem. Legitimação diz conta às partes as quais a lei confere o direito de ação ou de defesa. Normalmente, quem tem legitimidade é o titular ou sujeito da relação jurídica que sofreu a lesão de direito (legitimação ordinária). Pode ocorrer, entretanto, a propositura de ação, em nome próprio, em defesa de direito de outrem (legitimação extraordinária ou substituição processual).

No processo penal, há uma legitimação genérica do MP. Somente quando a lei expressamente estabelece que a legitimação é do ofendido ou seu representante é que temos a legitimação extraordinária. Sendo as ações penais classificadas de acordo com critério subjetivo (diferentemente do processo civil, cujo critério é o objetivo), leva-se em consideração a titularidade do direito de ação penal condenatória, que poderá ser de iniciativa pública ou de iniciativa privada. Na primeira, o titular é o Estado; na segunda, o titular também é o Estado, mas o exercício da ação é concedido ao ofendido ou ao seu representante (legitimação extraordinária). Não pode o MP oferecer queixa em ação penal condenatória de iniciativa privada (salvo exceções) e nem o particular denunciar, salvo no caso da ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública (art. 5º, LIX c/c art. 129, I, da CF/88 (LGL\1988\3)).

A legitimação para a causa aplica-se tanto ao autor quanto ao réu. Vincula-se ao direito de ação a determinado titular. Assim, temos que a ação penal condenatória pública deve ser proposta pelo órgão do MP (arts. 127 e 129 da CF/1988 (LGL\1988\3)). Tanto isso é verdade que se o órgão do MP não propuser a ação penal, no prazo que a lei determina, poderá fazê-lo a vítima ou o seu representante legal. É a denominada ação penal condenatória de iniciativa privada subsidiária da pública. Nem sempre, todavia, a ação penal condenatória será de iniciativa pública. Vezes há – raras, é verdade – que a iniciativa é privada (ação penal pública de iniciativa privada).

Excepcionalmente, ocorre que qualquer pessoa possui a legitimatio ad causam ativa. É o caso da ação penal não condenatória de habeas corpus, nos termos do art. 654 do CPP (LGL\1941\8). A legitimatio ad causam passiva refere-se ao acusado, ao réu, a quem se imputa o fato, que pode até mesmo ser uma pessoa jurídica, conforme for o caso. Se a parte for ilegítima, diz o art. 395 do CPP (LGL\1941\8) (modificado pela Lei 11.719/2008), a denúncia ou queixa será rejeitada. Na prática, como já dito, o juiz fará uma cognição sumária da legitimatio ad causam passiva, pois a grande questão é saber se o imputado é ou não autor do fato delituoso. Se o indiciado não participou da infração, não deve ser denunciado. Todavia, se a primeira dúvida persiste – “Será que o indiciado não participou mesmo do crime?” -, ou seja, havendo maior probabilidade de que a peça acusatória seja verídica, temos a legitimatio.. Na doutrina e na jurisprudência temos exemplos de casos de ilegitimatio passiva ad causam: a denúncia contra a testemunha ou contra o perito ou contra suspeito que se identificou com cédula de identidade que não era sua (STF, HC 74.941-1/SP). No caso, o juiz – consciencioso – deverá rejeitar a denúncia quanto a esses, pois numa cognição sumária, percebe-se que eles não participaram do fato. E essa decisão de rejeição da denúncia quanto à falta desta condição: é decisão de mérito? No processo civil, muitos entendem a decisão da ilegitimidade ad causam como mérito.

O juiz deverá, na decisão de prelibação do recebimento e, evidente, antes de receber a peça introdutória, verificar a presença dos pressupostos processuais e das condições da ação. Se o juiz verifica que o autor é carecedor da ação, não irá receber a ação. Não deverá analisar o mérito, pois: a) o próprio ordenamento processual determina a rejeição da denúncia quando “faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal” (art. 395, II, do CPP (LGL\1941\8)); e b) a teor do art. 564, II, do CPP (LGL\1941\8), o processo será passível de nulidade.

Não se pode falar em lacuna no caso. Pode até parecer estranho, por exemplo, que o órgão do MP denuncie equivocadamente o perito e que o juiz tenha que excluí-lo antes do recebimento, mas a verdade é que o perito não poderá alcançar sentença de mérito na oportunidade do recebimento, que não comporta cognição aprofundada. Teria de esperar, o perito, até o final da sentença para alcançar o julgamento de mérito, tentar inovar no processo penal, pedindo o julgamento antecipado da lide penal, ou impetrar HC, se o juiz, equivocadamente, houvesse recebido a ação penal. Observe-se, novamente, a melhor adequação abstrativista. Os defensores da teoria concreta certamente não concordarão com o posicionamento. Todavia, é preciso lembrar que quando discordamos dos civilistas estamos com olhos postos no processo penal. É claro que pela disposição do art. 267, VI, do CPC (LGL\1973\5) há a conseqüência – lá – do julgamento do mérito. No processo penal, entretanto, não se pode dar guarita à corrente que liga as condições da ação à situação de fato, que só pode ser afirmada e comprovada no processo após a instrução e a avaliação das provas. O art. 395 do CPP (LGL\1941\8) desvincula a legitimidade das partes do direito material.

Por outra, antes do recebimento da denúncia ou queixa não há processo e o juiz decide que, por falta da condição da ação, não poderá julgar o mérito. Sentenças que julgam o mérito sobre o fundamento de que há carência da ação não reflete técnica processual, pois o que existe é juízo de inadmissibilidade. A procedência ou não do pedido só é possível se presentes todos os pressupostos processuais e condições da ação. A carência, por sua vez, só existe, tecnicamente, até o recebimento. Claro que já nos posicionamos pela teoria abstrata da ação e por isso seguimos esse entendimento.

Na análise das condições, tem-se cognição sumária, tanto que no art. 395 do CPP (LGL\1941\8), diz-se que se rejeitará a denúncia ou a queixa se ausente qualquer condição da ação. Já no mérito: cognição exauriente. O problema é de intensidade, verticalidade, profundidade da cognição. Se ocorrer o recebimento da denúncia nos casos de réu injustamente denunciado, só restará impetrar HC para trancar a ação penal por nulidade (art. 564, II), segundo dispõe o CPP, ou aguardar sentença onde, só aí, se alcançará o mérito. De qualquer maneira, é-nos evidente que o problema da ilegitimatio ad causam passiva, como capaz de gerar a carência da ação, já estará superado para o juiz do processo de conhecimento, após o recebimento.

Temos, pois, por impossível a absolvição com julgamento do mérito (art. 386, IV, do CPP (LGL\1941\8)) no recebimento. Se falta um dos pressupostos, inexiste processo. Não se impede a ação que pode ser proposta em outro processo. Quando se fala em carência da ação, é porque falta uma das condições da ação. Se averiguada no momento processual adequado (no recebimento), ocorrerá a carência; caso contrário, poderá haver alegação e reconhecimento pelo juiz de nulidade ou a impetração de HC para trancamento. De todas as maneiras, é certo que a falta de pressuposto ou condição contraria o devido processo legal. Por isso mesmo, há abuso e ilegalidade do poder-dever de acusar.

3. A Justa Causa Penal e o Mérito

3.1 Conceito

O conceito da justa causa, assim como sua natureza jurídica, é tema polêmico na doutrina pátria, mesmo quando se trata de averiguarmos no restrito estudo das condições da ação. Faria parte do interesse de agir? Seria uma condição genérica da ação, um conjunto dessas condições ou uma quarta e autônoma condição? Seria mérito ou um controle prévio da admissibilidade do mérito?

Etimologicamente, a palavra justa tem sua origem no latim, do adjetivo justus ou iustus. Diz-se daquilo que é eqüitativo, daquilo que é legal. Já a palavra causa vem também do latim causa-ae (ou com variações para caussa e kaussa) e é um vocábulo filosófico e científico obscuro. No direito, esse vocábulo, possui inúmeros sentidos: motivo determinante, fim imediato, lide, ação etc.

O CPP (LGL\1941\8) também não é esclarecedor quanto ao significado desse vocábulo. Nesse Código, temos a justa causa como sinônimo de “motivo justo” (arts. 277, parágrafo único, 278 e 453), no sentido de excluir uma responsabilidade. Dessa forma, há quem conceitue a justa causa como causa legal, motivo legal, segundo os preceitos da lei, o motivo legítimo, o impedimento de evidente necessidade, o que está conforme a Justiça, a razão, o motivo para processos ou proceder etc.

Autores há, por outro lado, que identificam na justa causa uma quarta condição da ação penal. É o caso de Afrânio Silva Jardim, entendendo que às três condições clássicas da ação – possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade ad causam - “acrescenta-se uma quarta: a justa causa, ou seja, um suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado. Tal lastro probatório nos é fornecido pelo inquérito policial ou pelas peças de informação, que devem acompanhar a acusação penal (arts. 12, 39, § 5º, e 46, § 1º, do CPP (LGL\1941\8)) (…)”.

Alguns autores identificam o conceito de justa causa com aquilo que é legal ou conforme ao direito. Adotam, assim, um posicionamento mais amplo quanto ao conceito. É de se ver que tal identificação não pode ser tida como equivocada. Explicita e individualiza a natureza do instituto como um paladino, um fiscal, um equilíbrio entre os institutos processuais penais e a própria lei penal e constitucional.

Maria Thereza Rocha de Assis Moura conceitua o termo como “a causa conforme o ordenamento jurídico, ou secundumius“, ressaltando que é inviável definição absoluta, mas possível um conceito-limite.

Demonstrado, assim, o que temos apontado: o tema é amplo, complexo e longe de ser pacificado. Todavia, como parece claro e inconteste, a acusação não pode e não deve ser ilegal, abusiva, temerária ou leviana. Daí ter de vir lastreada em elementos probatórios (fumus delicti). Mas, isso, por si só, não erige, em absoluto, a justa causa a autônoma condição da ação. Tanto é assim que, em uma análise mais criteriosa – e a crítica aqui é construtiva e científica, não procurando desconsiderar os pensamentos destoantes -, o que se releva como quarta condição da ação seria a soma da possibilidade jurídica da acusação e do interesse de agir. A justa causa está em todas as condições da ação, e isso não a faz autônoma, senão mais vinculada. Por tudo isso, ainda ficamos com José Barcelos de Souza quando afirma que a justa causa não é e nem pode ser erigida à quarta condição da ação. Faltando uma das condições para o exercício regular da ação penal, falta a justa causa.

A justa causa expande-se em importância e realidade além das condições da ação a ponto de a conceituarmos como um pré-requisito universal da persecutio criminis. É que o iuslibertatis é valioso. Procedimentos fundados em devaneios ou em conjecturas abstratas, ilegalidades ou, ainda, em insuficiência investigatória contrariam o ordenamento jurídico. A ação penal, v.g., só pode e deve ser utilizada quando de sua real necessidade; caso contrário, afrontar-se-ia a CF (LGL\1988\3) e de nada valeria consagrar princípios reitores que protegem a liberdade individual. A finalidade da persecutio criminis deve ter uma justa causa provável, sempre, tanto no inquérito quanto no processo, ou na medida cautelar ou execução. Portanto, a justa causa não se limita às condições da ação.

A discussão se a justa causa estaria na possibilidade jurídica da acusação ou no interesse de agir ou se seria condição autônoma já é ultrapassada. A jurisprudência, inclusive, já está em outras discussões. Defende-se que a justa causa não se restringe mais ao interesse de agir ou à quarta condição de ação. É pré-requisito universal da persecutio criminis. O primeiro direito do indivíduo suspeito de crime é o direito de preservação de sua dignidade humana. Tanto a ação do Poder Executivo quanto do Poder Judiciário é limitada pela lei, essa mesma lei que protege a dignidade humana. Não se admite mais arbitrariedades – nem grandes, nem pequenas, nem sobre o manto cego do tecnicismo jurídico de diferenciar processo de procedimento e nivelar a liberdade do indivíduo por esse aspecto.

Esse direito de preservação da dignidade humana protege substancialmente nós cidadãos contra investigações irregulares sobre nossas pessoas e pertences. O que estamos defendendo é que a linha que separa o que é considerado legal – à luz da necessidade de investigar o crime em benefício da comunidade – do que é ilegal – à luz do direito de preservação da dignidade humana – é demarcada pela justa causa. Sem a probabilidade de que a causa seja justa, haverá espoliação do status dignitatis do acusado. É dizer que, sempre, deve haver uma prisão necessária, um inquérito necessário, uma ação necessária, um processo necessário, uma medida cautelar necessária, um libelo-crime necessário e uma execução necessária, sendo certo que é a ação penal um grande filtro (a priori ou a posteriori) desses eventos.

Quando o Estado inicia a persecutio criminis, necessita, antes de mais nada, respeitar a liberdade e a dignidade moral do acusado. Sob esse aspecto, uma série de transigências viáveis foram sendo feitas através dos séculos, e hoje alcançam grandeza constitucional. Todavia, essas garantias não impedem a atuação do poder-dever de punir. Não impedem, mas limitam e exigem pré-requisitos. Uma vez estabelecido que é provável que a causa seja justa, pelo conjunto de elementos probatórios, as relações entre o acusado e o Estado alcançam o seu ponto crítico. É tão crítico que não é possível um julgamento válido sem defesa em nosso sistema acusatório misto.

A justa causa está para a persecutio criminis assim como o processo penal está para o Estado Democrático de Direito. Analogamente ao que disse Grispigni quanto ao bem jurídico, dizemos que a justa causa é a alma da persecutio criminis, o espírito de liberdade vivo no nosso Estado Democrático de Direito. A justa causa está presente além das condições da ação. É o próprio motivo para agir, seja em que quadrante do processo ou procedimento penal estejamos. É o escudo contra qualquer tipo de abuso do poder-dever de acusar ou qualquer ilegalidade.

3.2 Natureza Jurídica

Para o regular exercício do direito de ação, exige-se a possibilidade jurídica da acusação, o interesse de agir e a legitimidade das partes. São as condições genéricas da ação. Não são condições para a existência do direito, porque o direito à ação é abstrato e existirá sempre, mas condições para seu exercício legal, regular e não abusivo. A justa causa diz conta ao interesse de agir segundo doutrina clássica. Todavia, o significado da expressão justa causa ultrapassa os limites dessa condição e chega a ser fundamento da prisão, do inquérito policial, da medida cautelar, do libelo-crime acusatório, da execução penal e, mesmo, das outras condições da ação.

Como conceituar a justa causa de uma maneira genérica? O que é justa causa? Como identificar a falta de justa causa? O conceito de justa causa é tema afeto ao processo penal, lato sensu. Não há figura correlata no processo civil. Em sua história nunca houve consenso doutrinário quanto à sua conceituação e natureza jurídica.

Os tribunais também refletem a incerteza. A bem dizer, têm incentivado a dilatação do conceito, o que merece a nossa acolhida quando se percebe preocupação com a lisura e veracidade das prisões, inquéritos policiais, medidas cautelares, libelos, ações e execuções penais. A natureza jurídica da justa causa, da mesma forma, estimula grande discussão, e pelos mesmos motivos. Como se percebe, a expressão justa causa – ou falta de justa causa – é dotada de grande amplitude. Seu conceito doutrinário flutua de acordo com a percepção de cada autor. As variantes são muitas. Onde há acusação, em seu sentido mais lato, deve estar presente a justa causa como pré-requisito a uma acusação não abusiva. A cada prova produzida, a cada passo procedimental, há de se justificar o porquê da constrição imposta à liberdade do acusado.

Há a necessidade de se prever um controle sobre a justa causa, pois abusos ou ilegalidades devem ser evitados na imposição de qualquer tipo de restrição à liberdade do acusado, seja em sede de inquérito policial ou de processo ou de execução. A justa causa vem apresentada como uma idéia de garantia para a liberdade do cidadão e de limitação da intervenção estatal. Não se trata de pontuarmos a legalidade estrita, pois essa já existe nas letras da lei; trata-se de pontuarmos a eficácia legal, a existência prática e real de proteção no mundo real, e não no mundo das idéias. A justa causa, como entendemos, é a eficácia prática e amplificada do princípio da legalidade.

Quando dizemos que a justa causa se liga à legalidade e ao não-abuso do poder-dever de acusar, temos um conceito tão amplo quanto os casos em que caibam HC. É um ponto de partida, mas não definitivo, já que a enumeração do art. 648 do CPP (LGL\1941\8) não é exaustiva, e o conceito de justa causa deve ser até mais amplo, pois se liga à própria concepção de dignidade do acusado. Pontes de Miranda, Frederico Marques e Pimenta Bueno também dão ao tema a mais ampla extensão conceitual. Se faltam, pois, pressuposto processual, condição da ação, se não há prova material ou de autoria, se cabe HC, ou seja, se abarca o amplo e irrestrito conceito de ilegalidade ou abuso de poder ou de direito – ou do poder-dever -, diz-se que há falta de justa causa para a prisão, ou o inquérito, ou a ação etc. É nesse aspecto que, deveras, mais coadunam com o espírito da CF (LGL\1988\3) as hipóteses ampliativas que surgem na jurisprudência e os cultuados juristas retro-mencionados.

3.3 Prisão, Inquérito e Justa Causa

O Código de Processo Criminal do Império de 1832 – e os subseqüentes estaduais – ligava a expressão justa causa tão-somente à prisão ilegal.

Mesmo assim, a mais preclara doutrina da época não se rendia a conceito restrito de justa causa. Com a entrada em vigor do CPP (LGL\1941\8) de 1941, a previsão legal de justa causa passou a ser esculpida no art. 648. Elencam-se situações que configuram coação ilegal, ensejadoras da impetração de HC; ou seja, trata-se da indicação de possíveis fundamentos para o HC. Com a CF/88, a justa causa ganha amplo status constitucional. A prisão penal provisória exige estejam presentes os motivos autorizadores. Sem esses motivos, não há justa causa para a prisão. Pode ser, também, que exista um aparente fundamento para a prisão, decorrente de uma má interpretação dos fatos e/ou provas que levaram o julgador a decretar a prisão. Nesse caso, igualmente, faltaria justa causa.

Outros exemplos: a prisão em flagrante por fato atípico; o excesso de prazo no procedimento ordinário, quando o réu estiver preso; réu preso em virtude de sentença condenatória, havendo apelação quando o efeito é suspensivo etc.

O Poder Judiciário deve zelar pela legalidade da prisão e, por decorrência, do inquérito policial desde o início, impedindo ao máximo qualquer tipo de agressão ao status dignitatis do acusado. No art. 5º, III, X, XI, XII, XXXVII a LXIX, da Carta, temos o grau máximo de relevância e amplitude a que foi elevada a liberdade. Desse modo, concluímos que a justa causa é tema afeto também ao inquérito policial, pelo cerceamento à liberdade do cidadão. O princípio adotado é: onde há acusação deve haver justa causa para tanto. Para além, pois da prisão, é preciso a justa causa também no inquérito policial.

Além do constrangimento moral e social, o inquérito pode se desenvolver redundando em prisão temporária ou preventiva, medidas cautelares de busca e apreensão, quebra de sigilo bancário, telefônico e outras tutelas de urgência, como o arresto e o seqüestro de bens, o que, a toda evidência, agride o status dignitatis do acusado. O binômio justa causa – dignidade está para além do processo.

Não constitui, prima facie, abuso de poder ou constrangimento ilegal a investigação sumária dos fatos tidos como delituosos. Todavia, o inquérito policial poderá se apresentar como um constrangimento ilegal. Assim, se, por exemplo, o objeto do inquérito é irrelevante para a ordem jurídico-penal (art. 6º, do CPP (LGL\1941\8)), o vexame que suscita, com reflexos na ordem moral e na liberdade do indivíduo, poderá ser impedido, pois há ilegalidade. Cumpre ao órgão do MP opinar pelo arquivamento dos autos em tais circunstâncias – quando muito requisitar novas diligências – mas nunca denunciar. Há, como se sabe, inúmeras hipóteses de falta de justa causa para o inquérito policial. Por questão de direito (como a atipicidade do fato, falta de representação, falta de fundamentação para a abertura, não descrição da conduta, não apontamento do dispositivo teoricamente violado etc.) ou questões fáticas (como falta de provas). De qualquer modo, sem a justa causa o inquérito policial deverá ser trancado, pois macula a dignidade do cidadão.

Por outra perspectiva, é certo que do inquérito policial poderá nascer o processo. É que esse procedimento administrativo é um lastro inicial à acusação e fonte da peça inaugural. Por isso, deve nascer na legalidade estrita, a fim de evitar processo inútil, desnecessário ou abusivo. Por não outras razões é que o CPP (LGL\1941\8) exige que o juiz, ao tomar conhecimento do inquérito, verifique a fidelidade entre os fatos narrados com a classificação provisória, formulada pela autoridade policial, e conceda a liberdade provisória, com ou sem fiança, se pertinente. É que a acusação (em sentido lato) vai tomando forma cada vez mais embasada. A acusação que nasce na rua com o boletim de ocorrência policial vai ao delegado de polícia, há o auto da prisão em flagrante, a nota de culpa e o juiz toma conhecimento etc. Nessa persecução, o delito vai ganhando forma e força. Por isso, a importância da defesa no inquérito policial. Quando mais cedo se trabalha no inquérito, melhor para a Justiça.

Não raras vezes já nos deparamos com classificações provisórias feitas pelo delegado de polícia que vedavam a liberdade provisória. É o caso, por exemplo, da classificação da conduta como tráfico de drogas (Lei 11.343/2006), ou como crime hediondo (Lei 8.072/90), ou como crime de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98), ou mesmo como crime perpetrado por organização criminosa (Lei 9.034/95), o que impediria – em tese – a concessão da liberdade provisória. Todavia, como se trata de classificação provisória, o advogado deve pleitear, mesmo assim, pela concessão da liberdade, sob o fundamento de que a classificação não corresponde à realidade dos fatos. Portanto, o causídico não deve se render à classificação apurada no auto de flagrante delito; deve se prender aos fatos e à crítica da necessidade da prisão.

Observemos, pois, o gravame ignominioso imposto ao acusado neste caso: preso em flagrante por porte de drogas, com a classificação provisória como traficante. As conseqüências são nefastas para o acusado, tanto a título de liberdade como a título da propositura de uma ação penal infundada. Assim, sem a evidenciação ampla e fundada dos fatos no inquérito policial, há falta de justa causa, pois caracterizado estará o cerceamento a direito individual.

O inquérito policial não deve ser visto, apenas, como procedimento administrativo prévio e prescindível que visa a demonstrar existência material do crime e indícios de autoria destinados à propositura da ação penal. Nem pelo fato de ser o inquérito, conceitualmente, mero procedimento (e tecnicamente sem a amplitude do contraditório processual), não devemos simplificá-lo ao ponto de enxotá-lo das limitações do Estado Democrático de Direito. O inquérito policial, jamais, está alheio à realidade constitucional. Em outras palavras, dizer que o inquérito é só um procedimento administrativo não reflete a sua realidade. O inquérito policial também é uma forma de atuação política.

A ampla defesa e o contraditório devem existir no inquérito policial. Onde há acusação (e aqui nos referimos à acusação como exposto pela CF (LGL\1988\3), art. 5º, LV), deve haver contraditório e ampla defesa.

A unilateralidade da acusação nesse momento da persecutio coloca em risco o contraditório e a ampla defesa constitucionais. Na Carta, não está a excepcionar o inquérito ou a delimitar as garantias ao processo. Leia-se, também, procedimento. As conseqüências dessa inconstitucionalidade são muitas e graves. Vão além do amor à letra da lei. Violam a própria Justiça criminal. Fato é que o acusado tem o direito de tentar diminuir ou minimizar a acusação abusiva ou ilegal que, eventualmente, poderá ocorrer. Ninguém duvida que existam acusações no âmbito do inquérito policial levianas, infundadas e falsas (observemos o art. 339 do CP (LGL\1940\2) – crime de denunciação caluniosa). O acusado tem o direito de realizar diligências e de participar de todas as outras nesse sentido. Tem o direito, inclusive, de exigir a participação de advogado (art. 133 da CF/1988 (LGL\1988\3)), e se não tiver condições de arcar com essa despesa o Estado deverá nomear um defensor dativo para atuar no inquérito policial. A não participação de defesa técnica no inquérito policial, à luz da CF (LGL\1988\3), traz como conseqüência a imprestabilidade dos atos praticados, eis que não atendem ao art. 5º, LV, da CF/1988 (LGL\1988\3). Já é chegada a hora, passado mais de década, da leitura do CPP (LGL\1941\8) frente à CF, e não da CF frente ao CPP (LGL\1941\8). Qualquer forma de ilegalidade, ou abuso de direito, ou poder no inquérito policial deverá ser rechaçada pelo HC, heróico remédio que serve de voz aos acusados nesse procedimento.

4. Da Teoria da Asserção ao Mérito Abusivo

A aferição das condições da ação deve ser feita antes do recebimento. Após o recebimento, não é possível declarar o autor carecedor de ação. Poderá ocorrer, no caso, nulidade (art. 564, II, III, a, do CPP (LGL\1941\8)) ou se chegar ao mérito (art. 386 do CPP (LGL\1941\8)). Na decisão preliminar de recebimento, contrariando Chiovenda, não é possível fazer paralelos ao exame do mérito. A chamada teoria da asserção relaciona as condições da ação com a profundidade da cognição. No exame preliminar (quando do recebimento) não há uma análise aprofundada, mas tão-somente superficial, de modo que as condições da ação resultam da simples alegação do autor (ut si vera sint exposita).

Todas as condições da ação devem, assim, ser averiguadas. Mas como? Como saber se há possibilidade jurídica da acusação? Como saber da legitimação ad causam ou do interesse de agir? Simplesmente observando o que afirmou o autor. O juiz deverá aceitar, provisoriamente, as afirmações do autor. A cognição sumária, portanto, não deve se confundir com o exame do mérito. Esse sim, necessariamente de cognição aprofundada no processo de conhecimento. Se, prima facie, se observa a inviabilidade da pretensão do autor, não se tratará de julgamento de mérito, mas da falta, v.g., de uma das condições da ação, tratar-se-á de carência. Se presentes essas condições, nesse juízo de prelibação, só então estará autorizado, o juiz, a decidir o mérito, ou seja, se o pedido é procedente ou improcedente.

E se o juiz tiver dúvidas sobre uma das condições? Simplesmente deverá receber a peça vestibular (in dubio pro societate). É que qualquer necessidade de cognição não-sumária indica a exigência de instrução, e isso se traduz em análise do mérito. Se há exigência de averiguação mais aprofundada é caso de recebimento.

Daí podemos concluir que as condições da ação sempre serão analisadas em tese. Ou seja, se há possibilidade jurídica em tese, legitimação para agir em tese, interesse de agir em tese. Deve-se analisar, sempre, a probabilidade positiva de veracidade das alegações do autor.

Certo é que a ausência de qualquer uma das condições induz à carência de ação, mas se averiguado no recebimento. Após, só se poderá tratar de declaração de nulidade absoluta ou exame de mérito abusivo (ou não, caso adentre no mérito observando a ausência referente à condição). Após o recebimento, não há possibilidade de se considerar o autor carecedor da ação.

Na primeira oportunidade concedida ao réu após o recebimento, qual seja a defesa prévia, a inépcia da ação deverá ser alegada pelo réu, pois o seu silêncio acarreta preclusão, evidenciado sua capacidade de se defender. Nesse caso, há a possibilidade de se considerar inepta a ação penal após o recebimento, mas somente até a primeira fala do réu. Após a apresentação da defesa prévia, não existirá conseqüência jurídica, salvo se demonstrada a nulidade absoluta.

Já com a carência da ação é diferente. Uma vez recebida a ação penal, não há mais como considerar a carência, tecnicamente. Nem se o réu a alegar na defesa prévia. Após o recebimento, o instituto carência é impossível de ocorrer. A carência, tecnicamente, só pode existir até o recebimento da ação penal. É dizer que, presente a carência da ação, deve, o juiz, obrigatoriamente, não receber a ação penal. Se a receber, todavia, não poderá no curso do processo ou em sentença apontar a sua existência sob essa alcunha, senão apontar nulidade ou enfrentar o mérito.

E por que no recebimento é que o juiz deverá declarar o autor carente? É porque é esse o momento procedimental para se averiguar as condições da ação. A falta das condições da ação não impede – de maneira absoluta – o julgamento do mérito, pois, como já dissemos, poderá haver uma ação penal abusiva (ou seja, sem alguma condição da ação), e nesse caso poderá haver o julgamento do mérito – também abusivo (porque a ação não possuía uma das condições da ação). Não é verdade que existe a possibilidade legal de revisão dos processos findos de sentença “contrária ao texto expresso da lei”?

Decorrência desses pensamentos é que a carência da ação nunca será, tecnicamente, fundamento para a sentença. Buzaid põe as condições da ação como questões preliminares. São preliminares ao exame do mérito, porque são condições da admissibilidade do provimento sobre a demanda, ou seja, como condições essenciais para o exercício não abusivo da função jurisdicional em face do caso concreto. Haverá, sim, exercício da ação. Poderá haver julgamento, e de mérito, mas poderá ser abusivo se as condições não estiverem presentes. Essas condições referem-se ao exercício regular (não à existência) da ação penal. Não se confundem com os pressupostos processuais, que dizem conta – aqui, sim – da existência do processo e da validade da relação processual. Por isso mesmo, ausente uma das condições da ação, é possível ao autor (outrora carecedor) renovar o pedido.

Portanto, os julgamentos sobre os pressupostos processuais, sobre as condições da ação e sobre o pedido (mérito) não se confundem. O juiz, ao receber a ação penal, deve observar, na ordem, os pressupostos processuais, após as condições da ação, e, ao final, o mérito. Faltando os pressupostos processuais ou as condições da ação penal ou havendo julgamento de mérito abusivo, estar-se-á contrariando a lei processual e a Carta Magna (LGL\1988\3). Haverá abuso e ilegalidade do poder-dever jurisdicional nessa persecutio criminis.

5. Conclusões

a) O não-recebimento da ação penal por falta de condição da ação penal não pode ser entendido como decisão de mérito. b) Antes do recebimento, não há processo (citação válida). Sem o processo respectivo, não há sentença de mérito. c) A teoria abstrativista da ação explicita que o direito à ação é independente do fundamento ou da falta de fundamento da pretensão ou da intenção em que se traduz o direito material, a que é, porém, conectado. O direito à ação é distinto da relação jurídica material e trata-se de um meio, e não de um fim, que seria o direito a simples decisão. d) Mérito pressupõe um processo com todas as suas garantias inerentes, inclusive o contraditório e a possibilidade de defesa. No juízo preliminar do recebimento, isso não existe. c) Se a causa de pedir descreve fato atípico, não é correto dizer que há impossibilidade jurídica do pedido. d) Com ausência explícita de uma condição da ação é inadmissível prover o mérito. e) Se o magistrado entende que não há possibilidade jurídica da acusação, não há dúvida que denega o pedido, mas sob o fundamento de que inexiste no sistema jurídico o tipo de providência solicitada. f) A possibilidade jurídica da acusação envolve a causa de pedir e o pedido. g) Nem toda sentença é de mérito, encerrando sentença de admissibilidade a que conclui pela ausência de condição da ação. h) A decisão sobre condição da ação não faz coisa julgada material. i) Uma decisão não pode ser fundada na falta de condição, no recebimento, se ela é questão de mérito. j) A identificação das condições da ação com o mérito eleva a ação como direito ao provimento favorável. k) A falta de “indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão” constitui nulidade insanável. Se é impossível ao juiz referir-se aos artigos de lei que deve aplicar ao fato objeto do processo, porque inexistentes, é evidente a inadmissibilidade do recebimento da denúncia no que respeita a esse fato. l) A justa causa penal não é e nem pode ser erigida a quarta condição de ação penal. m) A justa causa penal está presente além das condições da ação. n) Exame de mérito em ação sem condição é provimento abusivo. o) A carência só existe até o recebimento. p) A carência de ação não pode ser – tecnicamente – fundamento meritocrático. q) Condições da ação dizem conta ao exercício regular da ação e não de sua existência. r) Julgamento sobre pressupostos processuais, condições da ação e mérito não se confundem. s) O julgamento de mérito abusivo é o reverso do julgamento de admissibilidade da ação penal. t) As condições de procedibilidade são espécies da possibilidade jurídica da acusação.
1. Das Teorias da Ação
1.1 Introdução
Ação é o bater à porta do Poder Judiciário. É o direito de invocar, de pedir a tutela jurisdicional. O Estado chamou para si a tarefa de administrar a Justiça através do Poder Judiciário ficando impossibilitados, os particulares, de auto-executarem seus direitos, salvo os casos em que a lei permita a autodefesa. Dessa forma, da violação da norma penal nasce a pretensão punitiva do Estado (ius puniendi), que se opõe à pretensão de liberdade (ius libertatis) do possível infrator. A pretensão punitiva, por sua vez, só pode ser atendida mediante a sentença judicial, que só é alcançável validamente por intermédio do processo (nulla poena sine judicio).
O processo é sempre indispensável; é dogma do Estado Democrático de Direito. E o direito de pedir o provimento jurisdicional é a própria ação. O Estado, portanto, por intermédio do órgão do MP ou de particular (ação penal condenatória de iniciativa privada), exerce a ação a fim de ativar a jurisdição penal. Dessa forma, a ação provoca a jurisdição que se exercita por meio do processo, importante alicerce do Estado Democrático de Direito.
1.2 Breve Regressão Histórica às Teorias da Ação
Savigny consolidou a teoria imanentista (teoria civilista ou concepção clássica) em 1840. Foi a primeira teoria, no direito moderno, que tentou estabelecer o conceito de ação processual. Defendia a idéia de que para cada direito material era imanente uma ação, em analogia à concepção original dos romanos (legis actionis). O direito material era indissociável, não autônomo, ao direito de movimentar a jurisdição. A ação e o direito subjetivo material constituíam uma só coisa, eram sinônimos, quer dizer, não há ação sem direito e não há direito sem ação. Partia do conceito de ação dado pelo jurista romano Celso: Nihilaliud est actioquamius quod sibidebeatur, indiciumpersequendi (A ação nada mais é do que o direito de perseguir em juízo o que nos é devido). Windscheid demonstrou que essa actio não correspondia à ação processual moderna. O conceito seria mais adequado à pretensão de tutela jurídica estatal. Existiam quatro condições da ação: existência do direito, qualidade de parte, capacidade processual e interesse.
Chegou a ser adotada por Garsonnet, Mattirolo, João Monteiro, João Mendes Júnior, Clóvis Beviláqua e Câmara Leal. Por volta de 1850, houve disputa entre os juristas alemães Windscheid e Müther no sentido de conceber, ou não, a ação como direito autônomo, distinto do direito material. Bernhard Windscheid publicou, em 1856, obra intitulada A ação do direito civil romano do ponto de vista do direito atual, em que demonstra que o conceito romano de actio não coincidia em absoluto com o conceito de ação (Klage) daquele direito germânico. Theodor Müther, em 1857, publica Sobre a teoria da actio romana, do moderno direito de queixa, da litiscontestação e da sucessão singular nas obrigações, em revide a Windscheid. Ele procurou demonstrar que havia uma perfeita coincidência entre a actio romana e a Klage germânica. No mesmo ano, Windscheid respondeu a Müther na obra intitulada A actio réplica ao Dr. Theodor Müther, acolhendo muitas das ponderações de seu opositor.
Wach (1860) acresceu à disputa a idéia de direito a uma sentença favorável: tem direito de ação quem tem razão, ou seja, direito de ação só existe se reconhecido concretamente em juízo. Nascia a teoria concreta da ação. Fundava-se a idéia de direito autônomo e público da ação. Wach dizia que ação é um direito público contra o Estado que deve garantir os direitos do autor contra o réu. Seguiram Wach, Müther e Hellwig. Alguns autores inserem Chiovenda, pois seu conceito de ação é idêntico ao de Wach, qual seja, ação é poder atribuído ao titular do direito subjetivo material. Esse titular invoca a proteção do Estado para tornar efetivo seu direito contra o obrigado. Chiovenda, assim como Wach, também tentou demonstrar a autonomia do direito de ação ao subordinar o direito de ação à existência de um direito para o autor. A existência do direito é pressuposto da ação. Devem concorrer, ainda, duas condições: legitimidade e interesse, sendo que o julgamento das condições da ação é o julgamento do mérito.
A concepção é duramente criticada por não explicar o direito de ação declaratória negativa que visa reconhecer a inexistência de uma relação jurídica, esvaziando o conceito concreto de ação. Oskar von Bülow (1868) concebeu o processo como relação jurídica. Quanto à ação, posicionou-se como concretista, seguindo, pois, as teorias de Müther e Wach. Doutrinava que a ação é o direito a uma sentença justa, mas só ocorre após a demanda. Anterior ao juízo, não existe.
Coube a Degenkolb, na Alemanha, e Plósz, na Hungria, em 1877, desenvolver a teoria da ação como direito público, eminentemente autônomo e abstrato. Conceberam, assim, a ação como direito incondicionado de movimentar a jurisdição, pouco importando o reconhecimento do direito material alegado. Essa teoria, abstrata da ação, define a ação como direito autônomo completamente desvinculado de qualquer direito subjetivo material. O direito à ação é abstrato porque outorgado pela ordem jurídica a quem invoca proteção jurisdicional. Ação é, assim, direito geral e abstrato a uma sentença favorável ou desfavorável.
A partir de 1877, desvincula-se o direito de ação do direito subjetivo invocado e da análise de ser o direito material favorável ou não. Diferencia-se, de uma vez por todas, direito material de direito processual. A existência do direito material torna-se irrelevante para o direito de ação. Seguiram a concepção Carnelutti, Couture, Alfredo Rocco, Zanzucchi dentre outros. Köhler dizia que acionar é um direito individual decorrente da personalidade. Essa tese não vingou, por se adequar mais à Psicologia do que ao Direito, apesar de Goldschmidt ter suavizado a crítica ao referir-se ao conceito de ação como direito da personalidade.
Chiovenda, em 1903, profere na Universidade de Bolonha conferência intitulada A ação no sistema dos direitos, concebendo a ação como “o poder de criar a condição para a atuação da vontade da lei”. Integra, assim, a ação na categoria dos chamados direitos potestativos (poderes de produzir efeitos jurídicos determinados). Para Chiovenda, a ação é um poder puramente ideal, quer dizer, o poder de produzir determinados efeitos jurídicos (atuação da lei), mas ação é direito autônomo.
Essa teoria da ação como direito potestativo é inserida no grupo da concepção concreta, pois a ação, para Chiovenda, não pressupõe necessariamente um direito subjetivo, mas só existe direito de ação quando a sentença é favorável ao autor. Ação é direito potestativo, de poder jurídico (kannRechte), a quem tem razão contra quem não a tem. Não se propõe contra o Estado, mas contra o adversário, porque o Estado é que tem interesse da escolha da razão; por isso provê juízes.
A vitória na demanda seria uma condição da ação sendo ele o primeiro processualista a formular a teoria das condições da ação. Conceitua-as como condições necessárias para se obter um pronunciamento favorável. Para Chiovenda, as condições da ação são questões de mérito, por isso é considerado adepto à concepção concreta do direito de ação, que seria autônoma, mas que estaria sempre voltada à realização efetiva do direito substantivo da parte. De forma que não faz uma separação nítida entre as condições da ação e o mérito. Diz ele que os pressupostos processuais são “condições para a obtenção de um pronunciamento qualquer, favorável ou desfavorável, sobre a demanda”. Já as condições da ação seriam “condições de uma decisão favorável ao autor”. Para Chiovenda, pois, a falta de condição da ação leva à rejeição do pedido do autor produzindo sempre coisa julgada, como decisão de mérito. É dizer: o julgamento das condições da ação é o julgamento do mérito. As condições da ação são condições de mérito.
Seguiram Chiovenda, Weismann, Redenti, Eliézer Rosa, Celso Agrícola Barbi. Calamandrei também seguiu Chiovenda. Para ele, a ação era direito subjetivo autônomo (existia por si mesmo). Daí dizer que havia um direito processual e outro material. Carnelutti definiu a ação como “o direito subjetivo processual das partes”. Também dizia que o interesse individual do autor é diferente do interesse da ação. Aquele pretende a solução favorável do litígio; esse, a composição do litígio. Carnelutti é criticado por falar que a ação é contra o juiz, porque o juiz e o Estado não podem ser separados. Já Eduardo Couture, jurista uruguaio, definiu a ação como “o poder jurídico que tem todo o sujeito de direito de recorrer aos órgãos jurisdicionais para reclamar deles a satisfação de uma pretensão”.
Seguindo a linha do tempo, Ugo Rocco define ação como “o direito de pretender a intervenção do Estado e a prestação da atividade jurisdicional, para a confirmação ou realização coativa dos interesses (materiais ou processuais) protegidos em abstrato pelas normas de direito subjetivo”. Zanzucchi defende a teoria abstrata da ação, segundo a qual, além de ser um direito autônomo frente ao direito material controvertido – conceitualmente -, independe a ação da própria existência de tal direito subjetivo. Ele assume perante o problema das condições da ação posição bem diferente da de Chiovenda. Seu entendimento é que as condições da ação, os pressupostos processuais e o mérito da causa são categorias distintas. As condições da ação são “os requisitos do poder de agir” diante do caso concreto, a fim de alcançar o provimento final a que tende a ação.
Liebman lança bases para a teoria eclética da ação. Para o processualista, ação é direito de provocar o exercício da função jurisdicional, direito subjetivo que consiste no poder de criar situação a que o exercício desta função está condicionado. É dirigida contra o Estado, a fim de que esse dê provimento jurisdicional. Para isso, a ação depende de requisitos constitutivos (as condições da ação). “Só se estiverem presentes essas condições é que se pode considerar existente a ação, surgindo para o juiz a necessidade de julgar o pedido, para acolhê-lo ou rejeitá-lo”. O direito de ação é um agir contra o Estado, em sua condição de titular do poder jurisdicional, i.e., direito de ação é direito à jurisdição. Não há ação sem jurisdição e vice-versa. Nisso concordam também os adeptos da teoria abstrata.
Para Enrico Tullio Liebman, só há jurisdição quando ultrapassada a fase de averiguação prévia. Se há alguma condição prévia não presente para que o juiz possa decidir sobre o mérito da causa, a decisão que encerra o processo não é verdadeiramente jurisdicional e não haverá exercício de ação. O direito de ação é direito a sentença de mérito favorável ou não ao autor, sendo necessário as condições da ação que se apresentam como pré-requisitos à apreciação do mérito da causa. Na terceira edição de seu manual, retirou a possibilidade jurídica do pedido dentre as condições da ação, subsumindo-a ao interesse de agir. Paradoxalmente, o legislador brasileiro passou a adotar, naquele momento, a primeira posição do professor italiano, pelo art. 267, VI, do CPC (LGL\1973\5).
Com Liebman, deu-se sentido próprio à expressão carência da ação, fazendo surgir a teoria do trinômio: pressupostos processuais, condições da ação e mérito da causa. É a teoria mais aceita. Fazzalari faz a revisão do conceito de ação tomando como critério a legitimação para agir, que não pode ser atribuída apenas ao autor, mas se estende a todos os sujeitos do processo, o que é perfeitamente lógico, pois sem a legitimação para agir não se poderia compreender o fundamento jurídico de seus atos.
1.3 Conceito de Ação Penal
Ação vem de actio, do verbo latino agere, significando, processualmente, ação judicial. Na linguagem forense, empregou-se agere, no sentido de pleitear. É, pois, o direito de provocar o Poder Judiciário a uma decisão sobre relação de direito. Diz-se da ação penal quando visa a aplicação da lei penal, assim entendida em sua inteireza de imposição de pena ao delinqüente, prova do delito, acusação do autor de infração penal, busca pela verdade do fato considerado delituoso. Ação é faculdade ou dever (no caso das ações penais públicas) e meio próprio que tem toda pessoa capaz, com interesse e legitimidade de exercitar em juízo um direito subjetivo de que é titular. É meio legal de reivindicar ou defender em juízo um direito subjetivo pretendido, ameaçado ou violado ou simples interesse. É o direito de invocar o Poder Judiciário.
Diz-se que ela é pública, mesmo a ação penal condenatória de iniciativa privada, pois o que se faz valer é o direito de punir do Estado (ius puniendi) e não o direito de ação (ius accusationis). Caracteriza-se por ser indivisível, pois abrange todos os que participaram do delito, e indisponível, visto que o órgão do MP não pode desistir da ação iniciada e as partes não podem transacionar sobre o objeto do processo ou fixar e delimitar o objeto de acordo com seus interesses pessoais, como ocorre no processo civil. A ação é dirigida apenas contra o Estado (tanto na esfera civil como na penal), embora, uma vez apreciada pelo juiz, vá ter efeitos na esfera jurídica de outra pessoa: o réu ou o executado. Nega-se, portanto, que ela seja exercida contra o adversário isoladamente, contra esse e o Estado ao mesmo tempo, ou contra a pessoa física do juiz.
Modernamente, há uma tendência a considerar como ação penal uma série de pedidos feitos em juízo penal e que não têm caráter condenatório, como a prisão preventiva, a homologação de sentença estrangeira, a fiança, o habeas corpus, a revisão criminal etc. Por isso, utilizamos sempre a expressão ação penal condenatória, porque existem ações penais não condenatórias.
2. Das Condições da Ação Penal
2.1 Introdução
O direito de invocar o Poder Judiciário exige a presença de condições, requisitos para a existência não abusiva e de efetivo exercício da ação penal. “É como a situação de quem embarcasse em trem, sem bilhete de passagem. Depois de algum percurso, verifica-se que ele não tem direito ao transporte, nem meios de adquiri-lo. É posto para fora da composição. Não consegue a finalidade com que entrou no carro”.
Como já explicitado no item 1.2, o primeiro processualista a formular a teoria das condições da ação foi Chiovenda. Conceituava-as como condições necessárias para se obter um pronunciamento favorável. Para Chiovenda, as condições da ação são questões de mérito (concepção concreta). Tal posicionamento é, coloquemos assim, vencido atualmente pela concepção abstrata. Tal constatação é de suma importância para diferenciarmos as conseqüências, limites e fundamentos da carência da ação. Somente quando presentes as condições da ação é que se pode dizer que existe ação tecnicamente regular, surgindo para o juiz a obrigação de julgar o pedido procedente ou não.
As condições da ação no processo penal são três: possibilidade jurídica da acusação, interesse de agir e legitimação para agir.
2.2 Possibilidade Jurídica da Acusação
Haverá possibilidade de acusação se a causa de pedir se fundar em fato previsto como delito e o pedido for previsto e não defeso em lei. No processo civil, diz-se que a pretensão sobre dívida de jogo, v.g., é expressamente vedada, dizendo-se impossível juridicamente o pedido. Mas, o pedido, tecnicamente, é possível, qual seja, condenação a pagamento de quantia certa. Assim, a impossibilidade jurídica reside, precisamente, na causa de pedir e não no pedido em si. Faltando a previsão legislativa sobre o pedido – ou a causa de pedir -, no processo civil, não é causa de impossibilidade jurídica do pedido, pois o juiz decidirá mesmo assim.
No processo penal, a ordem jurídica deve prever a providência pretendida pelo interessado. A possibilidade jurídica da acusação é uma questão de tipicidade a ser observada no recebimento. Se há previsão, a causa de pedir – e não o pedido – é juridicamente perfeita e, atendendo-se às outras condições, é possível que se alcance a decisão de mérito. O pedido seria juridicamente impossível se pretendesse a prisão perpétua ou a pena de morte, por exemplo, já que vedadas pelo ordenamento.
Calmon de Passos, tratando do assunto no âmbito processual civil, critica a inserção da possibilidade jurídica do pedido como uma condição da ação. Para o insigne processualista, haveria a possibilidade jurídica sempre que a pretensão (substancial) não estivesse expressamente vedada pelo ordenamento jurídico, e não quando faltasse nele a previsão, em abstrato, da pretensão postulada.
No processo civil, a possibilidade se define negativamente (impossibilidade jurídica) quando o ordenamento jurídico não veda, em tese, o pedido (ex.: testamento de pessoa viva, contrato sobre dívida de jogo etc.). No processo penal, somente é possível o provimento se expressamente permitido, expressamente admitido, tanto no que tange a causa de pedir (típica, em tese) quanto ao pedido (típico e não vedado). No âmbito penal, o princípio da legalidade (nullum crimen nulla poena sine praevia lege scripta, stricta et certa) é reinante e absoluto, e não se faz juízo negativo, mas positivo. Isso porque essa condição da ação penal refere-se à pretensão expressamente prevista no ordenamento jurídico (causa de pedir). Assim, matar alguém é crime (art. 121 do CP (LGL\1940\2)). O órgão do MP denuncia pretendendo a aplicação da pena cabível e não proibida (pedido). Logo, há possibilidade jurídica da acusação e não, tão-somente, do pedido. Assim, se alguém comete um ato incestuoso próprio, haverá impossibilidade jurídica da acusação, levando o autor a ser carecedor da ação. Tal sistemática decorre mesmo da função garantidora do tipo penal, donde se conclui que a inexistência de possibilidade jurídica da acusação acarreta a carência da ação.
E se o juiz receber a ação penal na circunstância do incesto próprio, v.g.? Haverá carência de ação? Por evidência que não, se – e somente se – não constatar a impossibilidade jurídica da acusação no momento adequado, qual seja, no recebimento. É claro que não se deve esperar pela análise do mérito, em hipótese como essa. Deve-se, sim, decidir sobre a admissibilidade ou não da ação penal.
Não se obtém mérito sem processo e sem contraditório. O réu só toma conhecimento do processo após a citação válida. É concluir: só após o recebimento da ação penal, nunca antes. Se há processo, deve haver contraditório e ampla defesa (art. 5º, LV, da CF/1988 (LGL\1988\3)). Mérito no recebimento é concepção eminentemente concretista, o que a doutrina vem rechaçando.
O recebimento da denúncia (ou queixa) importa em cognição sumária; ou seja, o juiz não deve aprofundar no exame do mérito, pois seria verdadeiramente um julgamento antecipado. Todavia, caso o fato narrado evidentemente não constitua crime, i.e., a prima facie já se nota a atipicidade, desnecessário o processo, e a peça inaugural não deverá ser recebida e nem haverá julgamento do mérito. É somente no julgamento meritocrático que se analisarão os fatos provados. No juízo de prelibação, o juiz deverá renunciar a esse exame detido. Se há impossibilidade jurídica da acusação constatada no recebimento, o juiz deverá declarar o autor carecedor da ação (art. 395 do CPP (LGL\1941\8), modificado pela Lei 11.719/2008). É impensável que, por exemplo, um cidadão seja denunciado por fato atípico, e o juiz julgue o mérito em pleno juízo de prelibação, e, o pior, já se sabendo que, na hipótese, não poderia ter sido pedida a aplicação da sanção penal (já que se trata de conduta atípica). Se o juiz, num momento de dúvida, recebe a ação penal, que pede a condenação por fato atípico, temos aí uma nulidade. Se, persistindo o processo, alcançar a sentença tratar-se-á de decisão de mérito (art. 386, III, do CPP (LGL\1941\8)).
Ao juiz cumpre indeferir a inicial por carência, se averiguada no recebimento. Deve declarar extinto o processo sem julgamento de mérito, por nulo que é, se averiguada, a impossibilidade, entre o recebimento e a sentença. Há, todavia, julgamento de mérito se averiguada na sentença. Uma coisa é o julgamento das condições da ação (actionem esse fundatam) e outra a decisão do pedido (actionem esse probatam).
Por todos esses motivos, a inicial que é recebida, sendo a acusação impossível juridicamente, está a contrariar a legislação constitucional e infraconstitucional. Haverá flagrante abuso do poder-dever de acusar. O caminho do réu poderá ser dois: impetrar habeas corpus para trancar a ação penal por nulidade ou aguardar a decisão de mérito e pleitear absolvição com base no art. 386, III, do CPP (LGL\1941\8).
2.2.1 Condições de Procedibilidade
Existem, ainda, as condições especiais para o exercício da ação penal. São as denominadas condições de procedibilidade (ou de persegüibilidade), que nada mais são do que espécies da possibilidade jurídica da acusação.
As condições da ação se exigem sempre, mas as de procedibilidade somente quando a lei assim determinar. Exemplo: representação na ação penal pública condicionada. Sem esse pré-requisito, também haverá contrariedade aos mandamentos legais. A falta de condição de procedibilidade significa ilegalidade impediente na instauração do processo. Assim, faltando a representação do ofendido, há carência da ação pela impossibilidade jurídica da acusação. Se o juiz receber a ação, mesmo assim haverá nulidade manifesta e absoluta (art. 564, III, a, do CPP (LGL\1941\8)), por isso mesmo passível de HC (art. 648, IV, do CPP (LGL\1941\8)).
2.3 Interesse de Agir
Existe o interesse material de agir, bem como o interesse processual ou interesse de agir. O interesse material exige, para propor ou contestar uma ação, interesse moral ou vínculo familiar (representação, por exemplo) da parte de quem o faz. É interesse primário. O interesse processual é instrumental, secundário. É a aspiração a uma justa composição da lide, não o interesse em lide. É o interesse-necessidade de se recorrer ao Judiciário, que no processo penal é presumida, tendo em vista a impossibilidade de aplicar pena sem processo (nulla poena sine iudicio).
É perda de tempo o exame de mérito em pedidos que podem ser satisfeitos por outros modos que não uma ação judiciária ou que não revelam nenhum prejuízo ou resistência do réu na satisfação do direito que se lhe exige. Assim é no processo civil. No campo penal, é impensável aplicar pena sem o devido processo legal. Demandas que invocam leis em tese, questões acadêmicas, dentre outros exemplos, são questões que revelam a falta de interesse processual de agir. Antes de saber quem tem razão, o juiz tem de verificar se a demanda se justifica, independentemente do direito que as partes alegam ter, e se o tipo de processo pretendido é o adequado para a situação concreta.
Exsurgem do conceito os requisitos da necessidade, utilidade (uso das vias) e adequação (ao procedimento em contraditório), a fim de se atingir o interesse de agir. Para a maioria doutrinária, porém, quando observada pelo juiz, por exemplo, uma causa de extinção da punibilidade, haverá carência da ação por falta de interesse de agir, se observada no recebimento nos termos do art. 43, II, do CPP (LGL\1941\8). Tal se impõe até mesmo em obediência ao princípio da economia processual, pelo qual o processo deve ter o máximo de efetividade com o mínimo de procedimento e gasto financeiro. Assim, se já se sabe da impossibilidade de se aplicar pena a alguém pelo processo ser desnecessário ou inútil (interesse-utilidade), não deverá nem ao menos ser recebido, tal é o caso da prescrição retroativa. Desse modo, as causas extintivas da punibilidade (perempção, litispendência, coisa julgada, prescrição, decadência, dentre outras) se ligam ao interesse de agir. Há carência da ação, mas por falta de interesse, e não por impossibilidade jurídica da acusação. A extinção da punibilidade faz a causa de pedir inútil e sem necessidade.
Por outro lado, o processo penal é sempre necessário (interesse-necessidade) para a aplicação da pena, visto que o particular não pode fazer Justiça com as próprias mãos. O pedido deve ser idôneo a provocar a atuação jurisdicional em situação concreta; ou seja, deve ser útil. Deve satisfazer concretamente a pretensão do autor. O interesse de agir é essa ponte entre a situação concreta e a tutela jurisdicional. Se não há situação concreta ou se não há a necessidade da tutela, então a ponte que une os conceitos não existe.
Também se entende por interesse de agir a adequação entre a situação do fato e o provimento jurisdicional concretamente solicitado. Assim, por exemplo não se poderá impetrar MS para efetivar uma busca e apreensão (medida cautelar).
2.4 Legitimatio Ad Causam
Quando se fala em legitimação, surgem as clássicas definições de Alfredo Buzaid e Liebman, respectivamente: “A legitimidade é a pertinência subjetiva da ação, a titularidade na pessoa que propõe a demanda.”(…) é a pertinência subjetiva da lide nas pessoas do autor e do réu, isto é, o reconhecimento do autor e do réu, por parte da ordem jurídica, como sendo as pessoas facultadas, respectivamente, a pedir e contestar a providência que é objeto da demanda.” O tema se liga a quem promove a ação penal e contra quem. Legitimação diz conta às partes as quais a lei confere o direito de ação ou de defesa. Normalmente, quem tem legitimidade é o titular ou sujeito da relação jurídica que sofreu a lesão de direito (legitimação ordinária). Pode ocorrer, entretanto, a propositura de ação, em nome próprio, em defesa de direito de outrem (legitimação extraordinária ou substituição processual).
No processo penal, há uma legitimação genérica do MP. Somente quando a lei expressamente estabelece que a legitimação é do ofendido ou seu representante é que temos a legitimação extraordinária. Sendo as ações penais classificadas de acordo com critério subjetivo (diferentemente do processo civil, cujo critério é o objetivo), leva-se em consideração a titularidade do direito de ação penal condenatória, que poderá ser de iniciativa pública ou de iniciativa privada. Na primeira, o titular é o Estado; na segunda, o titular também é o Estado, mas o exercício da ação é concedido ao ofendido ou ao seu representante (legitimação extraordinária). Não pode o MP oferecer queixa em ação penal condenatória de iniciativa privada (salvo exceções) e nem o particular denunciar, salvo no caso da ação penal de iniciativa privada subsidiária da pública (art. 5º, LIX c/c art. 129, I, da CF/88 (LGL\1988\3)).
A legitimação para a causa aplica-se tanto ao autor quanto ao réu. Vincula-se ao direito de ação a determinado titular. Assim, temos que a ação penal condenatória pública deve ser proposta pelo órgão do MP (arts. 127 e 129 da CF/1988 (LGL\1988\3)). Tanto isso é verdade que se o órgão do MP não propuser a ação penal, no prazo que a lei determina, poderá fazê-lo a vítima ou o seu representante legal. É a denominada ação penal condenatória de iniciativa privada subsidiária da pública. Nem sempre, todavia, a ação penal condenatória será de iniciativa pública. Vezes há – raras, é verdade – que a iniciativa é privada (ação penal pública de iniciativa privada).
Excepcionalmente, ocorre que qualquer pessoa possui a legitimatio ad causam ativa. É o caso da ação penal não condenatória de habeas corpus, nos termos do art. 654 do CPP (LGL\1941\8). A legitimatio ad causam passiva refere-se ao acusado, ao réu, a quem se imputa o fato, que pode até mesmo ser uma pessoa jurídica, conforme for o caso. Se a parte for ilegítima, diz o art. 395 do CPP (LGL\1941\8) (modificado pela Lei 11.719/2008), a denúncia ou queixa será rejeitada. Na prática, como já dito, o juiz fará uma cognição sumária da legitimatio ad causam passiva, pois a grande questão é saber se o imputado é ou não autor do fato delituoso. Se o indiciado não participou da infração, não deve ser denunciado. Todavia, se a primeira dúvida persiste – “Será que o indiciado não participou mesmo do crime?” -, ou seja, havendo maior probabilidade de que a peça acusatória seja verídica, temos alegitimatio.. Na doutrina e na jurisprudência temos exemplos de casos de ilegitimatio passiva ad causam: a denúncia contra a testemunha ou contra o perito ou contra suspeito que se identificou com cédula de identidade que não era sua (STF, HC 74.941-1/SP). No caso, o juiz – consciencioso – deverá rejeitar a denúncia quanto a esses, pois numa cognição sumária, percebe-se que eles não participaram do fato. E essa decisão de rejeição da denúncia quanto à falta desta condição: é decisão de mérito? No processo civil, muitos entendem a decisão da ilegitimidade ad causam como mérito.
O juiz deverá, na decisão de prelibação do recebimento e, evidente, antes de receber a peça introdutória, verificar a presença dos pressupostos processuais e das condições da ação. Se o juiz verifica que o autor é carecedor da ação, não irá receber a ação. Não deverá analisar o mérito, pois: a) o próprio ordenamento processual determina a rejeição da denúncia quando “faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal” (art. 395, II, do CPP (LGL\1941\8)); e b) a teor do art. 564, II, do CPP (LGL\1941\8), o processo será passível de nulidade.
Não se pode falar em lacuna no caso. Pode até parecer estranho, por exemplo, que o órgão do MP denuncie equivocadamente o perito e que o juiz tenha que excluí-lo antes do recebimento, mas a verdade é que o perito não poderá alcançar sentença de mérito na oportunidade do recebimento, que não comporta cognição aprofundada. Teria de esperar, o perito, até o final da sentença para alcançar o julgamento de mérito, tentar inovar no processo penal, pedindo o julgamento antecipado da lide penal, ou impetrar HC, se o juiz, equivocadamente, houvesse recebido a ação penal. Observe-se, novamente, a melhor adequação abstrativista. Os defensores da teoria concreta certamente não concordarão com o posicionamento. Todavia, é preciso lembrar que quando discordamos dos civilistas estamos com olhos postos no processo penal. É claro que pela disposição do art. 267, VI, do CPC (LGL\1973\5) há a conseqüência – lá – do julgamento do mérito. No processo penal, entretanto, não se pode dar guarita à corrente que liga as condições da ação à situação de fato, que só pode ser afirmada e comprovada no processo após a instrução e a avaliação das provas. O art. 395 do CPP (LGL\1941\8) desvincula a legitimidade das partes do direito material.
Por outra, antes do recebimento da denúncia ou queixa não há processo e o juiz decide que, por falta da condição da ação, não poderá julgar o mérito. Sentenças que julgam o mérito sobre o fundamento de que há carência da ação não reflete técnica processual, pois o que existe é juízo de inadmissibilidade. A procedência ou não do pedido só é possível se presentes todos os pressupostos processuais e condições da ação. A carência, por sua vez, só existe, tecnicamente, até o recebimento. Claro que já nos posicionamos pela teoria abstrata da ação e por isso seguimos esse entendimento.
Na análise das condições, tem-se cognição sumária, tanto que no art. 395 do CPP (LGL\1941\8), diz-se que se rejeitará a denúncia ou a queixa se ausente qualquer condição da ação. Já no mérito: cognição exauriente. O problema é de intensidade, verticalidade, profundidade da cognição. Se ocorrer o recebimento da denúncia nos casos de réu injustamente denunciado, só restará impetrar HC para trancar a ação penal por nulidade (art. 564, II), segundo dispõe o CPP, ou aguardar sentença onde, só aí, se alcançará o mérito. De qualquer maneira, é-nos evidente que o problema da ilegitimatio ad causam passiva, como capaz de gerar a carência da ação, já estará superado para o juiz do processo de conhecimento, após o recebimento.
Temos, pois, por impossível a absolvição com julgamento do mérito (art. 386, IV, do CPP (LGL\1941\8)) no recebimento. Se falta um dos pressupostos, inexiste processo. Não se impede a ação que pode ser proposta em outro processo. Quando se fala em carência da ação, é porque falta uma das condições da ação. Se averiguada no momento processual adequado (no recebimento), ocorrerá a carência; caso contrário, poderá haver alegação e reconhecimento pelo juiz de nulidade ou a impetração de HC para trancamento. De todas as maneiras, é certo que a falta de pressuposto ou condição contraria o devido processo legal. Por isso mesmo, há abuso e ilegalidade do poder-dever de acusar.
3. A Justa Causa Penal e o Mérito
3.1 Conceito
O conceito da justa causa, assim como sua natureza jurídica, é tema polêmico na doutrina pátria, mesmo quando se trata de averiguarmos no restrito estudo das condições da ação. Faria parte do interesse de agir? Seria uma condição genérica da ação, um conjunto dessas condições ou uma quarta e autônoma condição? Seria mérito ou um controle prévio da admissibilidade do mérito?
Etimologicamente, a palavra justa tem sua origem no latim, do adjetivo justus ou iustus. Diz-se daquilo que é eqüitativo, daquilo que é legal. Já a palavra causa vem também do latim causa-ae (ou com variações para caussa e kaussa) e é um vocábulo filosófico e científico obscuro. No direito, esse vocábulo, possui inúmeros sentidos: motivo determinante, fim imediato, lide, ação etc.
O CPP (LGL\1941\8) também não é esclarecedor quanto ao significado desse vocábulo. Nesse Código, temos a justa causa como sinônimo de “motivo justo” (arts. 277, parágrafo único, 278 e 453), no sentido de excluir uma responsabilidade. Dessa forma, há quem conceitue a justa causa como causa legal, motivo legal, segundo os preceitos da lei, o motivo legítimo, o impedimento de evidente necessidade, o que está conforme a Justiça, a razão, o motivo para processos ou proceder etc.
Autores há, por outro lado, que identificam na justa causa uma quarta condição da ação penal. É o caso de Afrânio Silva Jardim, entendendo que às três condições clássicas da ação – possibilidade jurídica do pedido, interesse de agir e legitimidade ad causam - “acrescenta-se uma quarta: a justa causa, ou seja, um suporte probatório mínimo em que se deve lastrear a acusação, tendo em vista que a simples instauração do processo penal já atinge o chamado status dignitatis do imputado. Tal lastro probatório nos é fornecido pelo inquérito policial ou pelas peças de informação, que devem acompanhar a acusação penal (arts. 12, 39, § 5º, e 46, § 1º, do CPP (LGL\1941\8)) (…)”.
Alguns autores identificam o conceito de justa causa com aquilo que é legal ou conforme ao direito. Adotam, assim, um posicionamento mais amplo quanto ao conceito. É de se ver que tal identificação não pode ser tida como equivocada. Explicita e individualiza a natureza do instituto como um paladino, um fiscal, um equilíbrio entre os institutos processuais penais e a própria lei penal e constitucional.
Maria Thereza Rocha de Assis Moura conceitua o termo como “a causa conforme o ordenamento jurídico, ou secundumius“, ressaltando que é inviável definição absoluta, mas possível um conceito-limite.
Demonstrado, assim, o que temos apontado: o tema é amplo, complexo e longe de ser pacificado. Todavia, como parece claro e inconteste, a acusação não pode e não deve ser ilegal, abusiva, temerária ou leviana. Daí ter de vir lastreada em elementos probatórios (fumus delicti). Mas, isso, por si só, não erige, em absoluto, a justa causa a autônoma condição da ação. Tanto é assim que, em uma análise mais criteriosa – e a crítica aqui é construtiva e científica, não procurando desconsiderar os pensamentos destoantes -, o que se releva como quarta condição da ação seria a soma da possibilidade jurídica da acusação e do interesse de agir. A justa causa está em todas as condições da ação, e isso não a faz autônoma, senão mais vinculada. Por tudo isso, ainda ficamos com José Barcelos de Souza quando afirma que a justa causa não é e nem pode ser erigida à quarta condição da ação. Faltando uma das condições para o exercício regular da ação penal, falta a justa causa.
A justa causa expande-se em importância e realidade além das condições da ação a ponto de a conceituarmos como um pré-requisito universal da persecutio criminis. É que o iuslibertatis é valioso. Procedimentos fundados em devaneios ou em conjecturas abstratas, ilegalidades ou, ainda, em insuficiência investigatória contrariam o ordenamento jurídico. A ação penal, v.g., só pode e deve ser utilizada quando de sua real necessidade; caso contrário, afrontar-se-ia a CF (LGL\1988\3) e de nada valeria consagrar princípios reitores que protegem a liberdade individual. A finalidade da persecutio criminis deve ter uma justa causa provável, sempre, tanto no inquérito quanto no processo, ou na medida cautelar ou execução. Portanto, a justa causa não se limita às condições da ação.
A discussão se a justa causa estaria na possibilidade jurídica da acusação ou no interesse de agir ou se seria condição autônoma já é ultrapassada. A jurisprudência, inclusive, já está em outras discussões. Defende-se que a justa causa não se restringe mais ao interesse de agir ou à quarta condição de ação. É pré-requisito universal da persecutio criminis. O primeiro direito do indivíduo suspeito de crime é o direito de preservação de sua dignidade humana. Tanto a ação do Poder Executivo quanto do Poder Judiciário é limitada pela lei, essa mesma lei que protege a dignidade humana. Não se admite mais arbitrariedades – nem grandes, nem pequenas, nem sobre o manto cego do tecnicismo jurídico de diferenciar processo de procedimento e nivelar a liberdade do indivíduo por esse aspecto.
Esse direito de preservação da dignidade humana protege substancialmente nós cidadãos contra investigações irregulares sobre nossas pessoas e pertences. O que estamos defendendo é que a linha que separa o que é considerado legal – à luz da necessidade de investigar o crime em benefício da comunidade – do que é ilegal – à luz do direito de preservação da dignidade humana – é demarcada pela justa causa. Sem a probabilidade de que a causa seja justa, haverá espoliação do status dignitatisdo acusado. É dizer que, sempre, deve haver uma prisão necessária, um inquérito necessário, uma ação necessária, um processo necessário, uma medida cautelar necessária, um libelo-crime necessário e uma execução necessária, sendo certo que é a ação penal um grande filtro (a priori ou a posteriori) desses eventos.
Quando o Estado inicia a persecutio criminis, necessita, antes de mais nada, respeitar a liberdade e a dignidade moral do acusado. Sob esse aspecto, uma série de transigências viáveis foram sendo feitas através dos séculos, e hoje alcançam grandeza constitucional. Todavia, essas garantias não impedem a atuação do poder-dever de punir. Não impedem, mas limitam e exigem pré-requisitos. Uma vez estabelecido que é provável que a causa seja justa, pelo conjunto de elementos probatórios, as relações entre o acusado e o Estado alcançam o seu ponto crítico. É tão crítico que não é possível um julgamento válido sem defesa em nosso sistema acusatório misto.
A justa causa está para a persecutio criminis assim como o processo penal está para o Estado Democrático de Direito. Analogamente ao que disse Grispigni quanto ao bem jurídico, dizemos que a justa causa é a alma da persecutio criminis, o espírito de liberdade vivo no nosso Estado Democrático de Direito. A justa causa está presente além das condições da ação. É o próprio motivo para agir, seja em que quadrante do processo ou procedimento penal estejamos. É o escudo contra qualquer tipo de abuso do poder-dever de acusar ou qualquer ilegalidade.
3.2 Natureza Jurídica
Para o regular exercício do direito de ação, exige-se a possibilidade jurídica da acusação, o interesse de agir e a legitimidade das partes. São as condições genéricas da ação. Não são condições para a existência do direito, porque o direito à ação é abstrato e existirá sempre, mas condições para seu exercício legal, regular e não abusivo. A justa causa diz conta ao interesse de agir segundo doutrina clássica. Todavia, o significado da expressão justa causa ultrapassa os limites dessa condição e chega a ser fundamento da prisão, do inquérito policial, da medida cautelar, do libelo-crime acusatório, da execução penal e, mesmo, das outras condições da ação.
Como conceituar a justa causa de uma maneira genérica? O que é justa causa? Como identificar a falta de justa causa? O conceito de justa causa é tema afeto ao processo penal, lato sensu. Não há figura correlata no processo civil. Em sua história nunca houve consenso doutrinário quanto à sua conceituação e natureza jurídica.
Os tribunais também refletem a incerteza. A bem dizer, têm incentivado a dilatação do conceito, o que merece a nossa acolhida quando se percebe preocupação com a lisura e veracidade das prisões, inquéritos policiais, medidas cautelares, libelos, ações e execuções penais. A natureza jurídica da justa causa, da mesma forma, estimula grande discussão, e pelos mesmos motivos. Como se percebe, a expressão justa causa – ou falta de justa causa – é dotada de grande amplitude. Seu conceito doutrinário flutua de acordo com a percepção de cada autor. As variantes são muitas. Onde há acusação, em seu sentido mais lato, deve estar presente a justa causa como pré-requisito a uma acusação não abusiva. A cada prova produzida, a cada passo procedimental, há de se justificar o porquê da constrição imposta à liberdade do acusado.
Há a necessidade de se prever um controle sobre a justa causa, pois abusos ou ilegalidades devem ser evitados na imposição de qualquer tipo de restrição à liberdade do acusado, seja em sede de inquérito policial ou de processo ou de execução. A justa causa vem apresentada como uma idéia de garantia para a liberdade do cidadão e de limitação da intervenção estatal. Não se trata de pontuarmos a legalidade estrita, pois essa já existe nas letras da lei; trata-se de pontuarmos a eficácia legal, a existência prática e real de proteção no mundo real, e não no mundo das idéias. A justa causa, como entendemos, é a eficácia prática e amplificada do princípio da legalidade.
Quando dizemos que a justa causa se liga à legalidade e ao não-abuso do poder-dever de acusar, temos um conceito tão amplo quanto os casos em que caibam HC. É um ponto de partida, mas não definitivo, já que a enumeração do art. 648 do CPP (LGL\1941\8) não é exaustiva, e o conceito de justa causa deve ser até mais amplo, pois se liga à própria concepção de dignidade do acusado. Pontes de Miranda, Frederico Marques e Pimenta Bueno também dão ao tema a mais ampla extensão conceitual. Se faltam, pois, pressuposto processual, condição da ação, se não há prova material ou de autoria, se cabe HC, ou seja, se abarca o amplo e irrestrito conceito de ilegalidade ou abuso de poder ou de direito – ou do poder-dever -, diz-se que há falta de justa causa para a prisão, ou o inquérito, ou a ação etc. É nesse aspecto que, deveras, mais coadunam com o espírito da CF (LGL\1988\3) as hipóteses ampliativas que surgem na jurisprudência e os cultuados juristas retro-mencionados.
3.3 Prisão, Inquérito e Justa Causa
O Código de Processo Criminal do Império de 1832 – e os subseqüentes estaduais – ligava a expressão justa causa tão-somente à prisão ilegal.
Mesmo assim, a mais preclara doutrina da época não se rendia a conceito restrito de justa causa. Com a entrada em vigor do CPP (LGL\1941\8) de 1941, a previsão legal de justa causa passou a ser esculpida no art. 648. Elencam-se situações que configuram coação ilegal, ensejadoras da impetração de HC; ou seja, trata-se da indicação de possíveis fundamentos para o HC. Com a CF/88, a justa causa ganha amplo status constitucional. A prisão penal provisória exige estejam presentes os motivos autorizadores. Sem esses motivos, não há justa causa para a prisão. Pode ser, também, que exista um aparente fundamento para a prisão, decorrente de uma má interpretação dos fatos e/ou provas que levaram o julgador a decretar a prisão. Nesse caso, igualmente, faltaria justa causa.
Outros exemplos: a prisão em flagrante por fato atípico; o excesso de prazo no procedimento ordinário, quando o réu estiver preso; réu preso em virtude de sentença condenatória, havendo apelação quando o efeito é suspensivo etc.
O Poder Judiciário deve zelar pela legalidade da prisão e, por decorrência, do inquérito policial desde o início, impedindo ao máximo qualquer tipo de agressão ao status dignitatis do acusado. No art. 5º, III, X, XI, XII, XXXVII a LXIX, da Carta, temos o grau máximo de relevância e amplitude a que foi elevada a liberdade. Desse modo, concluímos que a justa causa é tema afeto também ao inquérito policial, pelo cerceamento à liberdade do cidadão. O princípio adotado é: onde há acusação deve haver justa causa para tanto. Para além, pois da prisão, é preciso a justa causa também no inquérito policial.
Além do constrangimento moral e social, o inquérito pode se desenvolver redundando em prisão temporária ou preventiva, medidas cautelares de busca e apreensão, quebra de sigilo bancário, telefônico e outras tutelas de urgência, como o arresto e o seqüestro de bens, o que, a toda evidência, agride o status dignitatis do acusado. O binômio justa causa – dignidade está para além do processo.
Não constitui, prima facie, abuso de poder ou constrangimento ilegal a investigação sumária dos fatos tidos como delituosos. Todavia, o inquérito policial poderá se apresentar como um constrangimento ilegal. Assim, se, por exemplo, o objeto do inquérito é irrelevante para a ordem jurídico-penal (art. 6º, do CPP (LGL\1941\8)), o vexame que suscita, com reflexos na ordem moral e na liberdade do indivíduo, poderá ser impedido, pois há ilegalidade. Cumpre ao órgão do MP opinar pelo arquivamento dos autos em tais circunstâncias – quando muito requisitar novas diligências – mas nunca denunciar. Há, como se sabe, inúmeras hipóteses de falta de justa causa para o inquérito policial. Por questão de direito (como a atipicidade do fato, falta de representação, falta de fundamentação para a abertura, não descrição da conduta, não apontamento do dispositivo teoricamente violado etc.) ou questões fáticas (como falta de provas). De qualquer modo, sem a justa causa o inquérito policial deverá ser trancado, pois macula a dignidade do cidadão.
Por outra perspectiva, é certo que do inquérito policial poderá nascer o processo. É que esse procedimento administrativo é um lastro inicial à acusação e fonte da peça inaugural. Por isso, deve nascer na legalidade estrita, a fim de evitar processo inútil, desnecessário ou abusivo. Por não outras razões é que o CPP (LGL\1941\8) exige que o juiz, ao tomar conhecimento do inquérito, verifique a fidelidade entre os fatos narrados com a classificação provisória, formulada pela autoridade policial, e conceda a liberdade provisória, com ou sem fiança, se pertinente. É que a acusação (em sentido lato) vai tomando forma cada vez mais embasada. A acusação que nasce na rua com o boletim de ocorrência policial vai ao delegado de polícia, há o auto da prisão em flagrante, a nota de culpa e o juiz toma conhecimento etc. Nessa persecução, o delito vai ganhando forma e força. Por isso, a importância da defesa no inquérito policial. Quando mais cedo se trabalha no inquérito, melhor para a Justiça.
Não raras vezes já nos deparamos com classificações provisórias feitas pelo delegado de polícia que vedavam a liberdade provisória. É o caso, por exemplo, da classificação da conduta como tráfico de drogas (Lei 11.343/2006), ou como crime hediondo (Lei 8.072/90), ou como crime de lavagem de dinheiro (Lei 9.613/98), ou mesmo como crime perpetrado por organização criminosa (Lei 9.034/95), o que impediria – em tese – a concessão da liberdade provisória. Todavia, como se trata de classificação provisória, o advogado deve pleitear, mesmo assim, pela concessão da liberdade, sob o fundamento de que a classificação não corresponde à realidade dos fatos. Portanto, o causídico não deve se render à classificação apurada no auto de flagrante delito; deve se prender aos fatos e à crítica da necessidade da prisão.
Observemos, pois, o gravame ignominioso imposto ao acusado neste caso: preso em flagrante por porte de drogas, com a classificação provisória como traficante. As conseqüências são nefastas para o acusado, tanto a título de liberdade como a título da propositura de uma ação penal infundada. Assim, sem a evidenciação ampla e fundada dos fatos no inquérito policial, há falta de justa causa, pois caracterizado estará o cerceamento a direito individual.
O inquérito policial não deve ser visto, apenas, como procedimento administrativo prévio e prescindível que visa a demonstrar existência material do crime e indícios de autoria destinados à propositura da ação penal. Nem pelo fato de ser o inquérito, conceitualmente, mero procedimento (e tecnicamente sem a amplitude do contraditório processual), não devemos simplificá-lo ao ponto de enxotá-lo das limitações do Estado Democrático de Direito. O inquérito policial, jamais, está alheio à realidade constitucional. Em outras palavras, dizer que o inquérito é só um procedimento administrativo não reflete a sua realidade. O inquérito policial também é uma forma de atuação política.
A ampla defesa e o contraditório devem existir no inquérito policial. Onde há acusação (e aqui nos referimos à acusação como exposto pela CF (LGL\1988\3), art. 5º, LV), deve haver contraditório e ampla defesa.
A unilateralidade da acusação nesse momento da persecutio coloca em risco o contraditório e a ampla defesa constitucionais. Na Carta, não está a excepcionar o inquérito ou a delimitar as garantias ao processo. Leia-se, também, procedimento. As conseqüências dessa inconstitucionalidade são muitas e graves. Vão além do amor à letra da lei. Violam a própria Justiça criminal. Fato é que o acusado tem o direito de tentar diminuir ou minimizar a acusação abusiva ou ilegal que, eventualmente, poderá ocorrer. Ninguém duvida que existam acusações no âmbito do inquérito policial levianas, infundadas e falsas (observemos o art. 339 do CP (LGL\1940\2) – crime de denunciação caluniosa). O acusado tem o direito de realizar diligências e de participar de todas as outras nesse sentido. Tem o direito, inclusive, de exigir a participação de advogado (art. 133 da CF/1988 (LGL\1988\3)), e se não tiver condições de arcar com essa despesa o Estado deverá nomear um defensor dativo para atuar no inquérito policial. A não participação de defesa técnica no inquérito policial, à luz da CF (LGL\1988\3), traz como conseqüência a imprestabilidade dos atos praticados, eis que não atendem ao art. 5º, LV, da CF/1988 (LGL\1988\3). Já é chegada a hora, passado mais de década, da leitura do CPP (LGL\1941\8) frente à CF, e não da CF frente ao CPP (LGL\1941\8). Qualquer forma de ilegalidade, ou abuso de direito, ou poder no inquérito policial deverá ser rechaçada pelo HC, heróico remédio que serve de voz aos acusados nesse procedimento.
4. Da Teoria da Asserção ao Mérito Abusivo
A aferição das condições da ação deve ser feita antes do recebimento. Após o recebimento, não é possível declarar o autor carecedor de ação. Poderá ocorrer, no caso, nulidade (art. 564, II, III, a, do CPP (LGL\1941\8)) ou se chegar ao mérito (art. 386 do CPP (LGL\1941\8)). Na decisão preliminar de recebimento, contrariando Chiovenda, não é possível fazer paralelos ao exame do mérito. A chamada teoria da asserção relaciona as condições da ação com a profundidade da cognição. No exame preliminar (quando do recebimento) não há uma análise aprofundada, mas tão-somente superficial, de modo que as condições da ação resultam da simples alegação do autor (ut si vera sint exposita).
Todas as condições da ação devem, assim, ser averiguadas. Mas como? Como saber se há possibilidade jurídica da acusação? Como saber da legitimação ad causam ou do interesse de agir? Simplesmente observando o que afirmou o autor. O juiz deverá aceitar, provisoriamente, as afirmações do autor. A cognição sumária, portanto, não deve se confundir com o exame do mérito. Esse sim, necessariamente de cognição aprofundada no processo de conhecimento. Se, prima facie, se observa a inviabilidade da pretensão do autor, não se tratará de julgamento de mérito, mas da falta, v.g., de uma das condições da ação, tratar-se-á de carência. Se presentes essas condições, nesse juízo de prelibação, só então estará autorizado, o juiz, a decidir o mérito, ou seja, se o pedido é procedente ou improcedente.
E se o juiz tiver dúvidas sobre uma das condições? Simplesmente deverá receber a peça vestibular (in dubio pro societate). É que qualquer necessidade de cognição não-sumária indica a exigência de instrução, e isso se traduz em análise do mérito. Se há exigência de averiguação mais aprofundada é caso de recebimento.
Daí podemos concluir que as condições da ação sempre serão analisadas em tese. Ou seja, se há possibilidade jurídica em tese, legitimação para agir em tese, interesse de agir em tese. Deve-se analisar, sempre, a probabilidade positiva de veracidade das alegações do autor.
Certo é que a ausência de qualquer uma das condições induz à carência de ação, mas se averiguado no recebimento. Após, só se poderá tratar de declaração de nulidade absoluta ou exame de mérito abusivo (ou não, caso adentre no mérito observando a ausência referente à condição). Após o recebimento, não há possibilidade de se considerar o autor carecedor da ação.
Na primeira oportunidade concedida ao réu após o recebimento, qual seja a defesa prévia, a inépcia da ação deverá ser alegada pelo réu, pois o seu silêncio acarreta preclusão, evidenciado sua capacidade de se defender. Nesse caso, há a possibilidade de se considerar inepta a ação penal após o recebimento, mas somente até a primeira fala do réu. Após a apresentação da defesa prévia, não existirá conseqüência jurídica, salvo se demonstrada a nulidade absoluta.
Já com a carência da ação é diferente. Uma vez recebida a ação penal, não há mais como considerar a carência, tecnicamente. Nem se o réu a alegar na defesa prévia. Após o recebimento, o instituto carência é impossível de ocorrer. A carência, tecnicamente, só pode existir até o recebimento da ação penal. É dizer que, presente a carência da ação, deve, o juiz, obrigatoriamente, não receber a ação penal. Se a receber, todavia, não poderá no curso do processo ou em sentença apontar a sua existência sob essa alcunha, senão apontar nulidade ou enfrentar o mérito.
E por que no recebimento é que o juiz deverá declarar o autor carente? É porque é esse o momento procedimental para se averiguar as condições da ação. A falta das condições da ação não impede – de maneira absoluta – o julgamento do mérito, pois, como já dissemos, poderá haver uma ação penal abusiva (ou seja, sem alguma condição da ação), e nesse caso poderá haver o julgamento do mérito – também abusivo (porque a ação não possuía uma das condições da ação). Não é verdade que existe a possibilidade legal de revisão dos processos findos de sentença “contrária ao texto expresso da lei”?
Decorrência desses pensamentos é que a carência da ação nunca será, tecnicamente, fundamento para a sentença. Buzaid põe as condições da ação como questões preliminares. São preliminares ao exame do mérito, porque são condições da admissibilidade do provimento sobre a demanda, ou seja, como condições essenciais para o exercício não abusivo da função jurisdicional em face do caso concreto. Haverá, sim, exercício da ação. Poderá haver julgamento, e de mérito, mas poderá ser abusivo se as condições não estiverem presentes. Essas condições referem-se ao exercício regular (não à existência) da ação penal. Não se confundem com os pressupostos processuais, que dizem conta – aqui, sim – da existência do processo e da validade da relação processual. Por isso mesmo, ausente uma das condições da ação, é possível ao autor (outrora carecedor) renovar o pedido.
Portanto, os julgamentos sobre os pressupostos processuais, sobre as condições da ação e sobre o pedido (mérito) não se confundem. O juiz, ao receber a ação penal, deve observar, na ordem, os pressupostos processuais, após as condições da ação, e, ao final, o mérito. Faltando os pressupostos processuais ou as condições da ação penal ou havendo julgamento de mérito abusivo, estar-se-á contrariando a lei processual e a Carta Magna (LGL\1988\3). Haverá abuso e ilegalidade do poder-dever jurisdicional nessa persecutio criminis.
5. Conclusões
a) O não-recebimento da ação penal por falta de condição da ação penal não pode ser entendido como decisão de mérito. b) Antes do recebimento, não há processo (citação válida). Sem o processo respectivo, não há sentença de mérito. c) A teoria abstrativista da ação explicita que o direito à ação é independente do fundamento ou da falta de fundamento da pretensão ou da intenção em que se traduz o direito material, a que é, porém, conectado. O direito à ação é distinto da relação jurídica material e trata-se de um meio, e não de um fim, que seria o direito a simples decisão. d) Mérito pressupõe um processo com todas as suas garantias inerentes, inclusive o contraditório e a possibilidade de defesa. No juízo preliminar do recebimento, isso não existe. c) Se a causa de pedir descreve fato atípico, não é correto dizer que há impossibilidade jurídica do pedido. d) Com ausência explícita de uma condição da ação é inadmissível prover o mérito. e) Se o magistrado entende que não há possibilidade jurídica da acusação, não há dúvida que denega o pedido, mas sob o fundamento de que inexiste no sistema jurídico o tipo de providência solicitada. f) A possibilidade jurídica da acusação envolve a causa de pedir e o pedido. g) Nem toda sentença é de mérito, encerrando sentença de admissibilidade a que conclui pela ausência de condição da ação. h) A decisão sobre condição da ação não faz coisa julgada material. i) Uma decisão não pode ser fundada na falta de condição, no recebimento, se ela é questão de mérito. j) A identificação das condições da ação com o mérito eleva a ação como direito ao provimento favorável. k) A falta de “indicação dos motivos de fato e de direito em que se fundar a decisão” constitui nulidade insanável. Se é impossível ao juiz referir-se aos artigos de lei que deve aplicar ao fato objeto do processo, porque inexistentes, é evidente a inadmissibilidade do recebimento da denúncia no que respeita a esse fato. l) A justa causa penal não é e nem pode ser erigida a quarta condição de ação penal. m) A justa causa penal está presente além das condições da ação. n) Exame de mérito em ação sem condição é provimento abusivo. o) A carência só existe até o recebimento. p) A carência de ação não pode ser – tecnicamente – fundamento meritocrático. q) Condições da ação dizem conta ao exercício regular da ação e não de sua existência. r) Julgamento sobre pressupostos processuais, condições da ação e mérito não se confundem. s) O julgamento de mérito abusivo é o reverso do julgamento de admissibilidade da ação penal. t) As condições de procedibilidade são espécies da possibilidade jurídica da acusação.