Teoria e Limites
do Direito Penal Transnacional[i]
Prof. Me. Warley
Belo
Advogado
Criminalista em MG
1)A globalização
a)Prever o futuro
Dentro de certos
limites é desejável, possível e até necessário prever o futuro. A previsão faz
parte de nossos estudos e conhecimento. Todos nós a fazemos com base no
conhecimento do passado. Devemos arriscar a fazer previsões, apesar de grande
parte do futuro ser absolutamente inacessível. Buscamos assim soluções prévias
para os problemas que se avizinham.
b)A globalização
econômica
Uma dessas
possíveis previsões é a de que em 2050 estaremos mais “globalizados” do que
hoje. Sendo, a globalização, um processo histórico essencialmente expansivo,
principalmente a partir da década de 1990, é perfeitamente viável entendermos
que esse processo dificilmente encontrará uma retração.
Essa expansão,
entretanto, encontra e encontrará também muitos desafios. Principalmente porque
existe uma diversidade cultural, histórica, política, religiosa, geográfica e
jurídica acentuada que impede uma unificação integral e absoluta dos valores
sociais, econômicos etc.
É claro que a
ciência econômica é a grande locomotiva desse processo expansionista, apesar de
todas as áreas do conhecimento também se encontrarem – em menor grau – em
processo similar. Mas a Economia é o ramo que mais se destaca.
Hoje é possível
produzir e consumir independentemente das fronteiras nacionais. Basta observar
que ninguém mais sabe onde se produziu a camisa que vestirmos, o carro que
usamos, a caneta que escrevemos. Comprar um Ford não significa mais que o mesmo
foi produzido nos EUA, assim como um FIAT na Itália ou um Citroën na França. Os
componentes destes veículos são produzidos em inúmeros países, às vezes a
montagem é em um terceiro país diferente e sua revenda é para um quarto país
que não participou desta produção.
A internet é outra
prova da globalização. Operações financeiras, transações, contatos em qualquer
parte do mundo em tempo real.O surgimento dos day traders faz de qualquer pessoa um potencial investidor de
qualquer bolsa mundial.
Todo esse
processo técnico de globalização exige uma padronização. Seja de valores, de
linguagem, de sistemas de telecomunicações e, evidente, do sistema jurídico. E
esse será o maior problema para os juristas nas próximas décadas.
Até que ponto
essa homogeneização é possível? Haverá reações?
Talvez não. No
campo dos transportes não vemos reações por termos os aeroportos padronizados.
A mesma língua, mesmos sinais, mesma estrutura, mesmas chamadas. Dificilmente
alguém saberia diferenciar uma fotografia de um saguão de um aeroporto de
Portugal, da Espanha ou da Alemanha.
Outra
constatação é que essa padronização é irreversível, independente da vontade dos
Estados que se encontram ameaçados de serem os atores principais desse fenômeno
global pelas grandes corporações financeiras e industriais. O papel do direito,
então, se faz cada vez mais presente porque urge a necessidade de acompanhar
essas significativas mudanças. Ao Direito não cabe lutar contra essas
modificações (nem nunca o caberia), mas adequar-se para minorar os eventuais
danos ao indivíduo, sociedade, Estados, meio ambiente etc.
Entretanto, sem
lei, esse processo poderia desencadear um sistema extremamente perverso,
desequilibrado, injusto. Talvez não, mas a lei ainda é uma garantia mínima de
que o fraco terá voz frente ao forte. Disso não se pode abrir mão. É o ponto
básico que se espera de uma sociedade minimamente organizada.
E são as leis
nacionais o ponto de partida. Mesmo com a economia em avançado grau de
globalização, a internet, os transportes etc. tudo precisa estar sob o manto da
lei, do direito. Sob pena do espaço estatal ser ocupado por uma força
internacional incontrolável, que, certamente, não se preocupará com os
miseráveis, com a fome, com as injustiças sociais, com o meio ambiente. Talvez
seria o caos. O risco é muito grande para deixarmos de exigir a subordinação às
leis dessa força globalizante.
Há assim a
necessidade dos Estados se organizarem e impedirem essa expansão impondo
limites ao poder econômico. Mas como ter esse controle global? Essa é a questão
a ser respondida.
Na Europa,
tenta-se controlar a economia transnacional com a formação de um consórcio de
Estados, como o é a União Europeia. No cone-sul, temos o Mercosul e assim por
diante. Não deixa de ser um modelo de reação ao poder globalizante econômico.
c)A globalização
jurídica
Esse processo
levará as culturas a se adaptarem umas às outras numa escala planetária com a
difusão global da cultura popular de massa. Já temos essa forte indicação
através dos filmes, música, futebol, celebridades, moedas circulantes, tudo é
mais ou menos o mesmo, vinculados que estão.
E o direito
penal?
2)Limites do
direito penal
a)Quais serão os
principais problemas do direito penal no futuro?
Haverá uma
construção teórica de grande alcance.
O direito penal
se depara, hoje, com outra realidade. Os crimes acompanham a rápida evolução
econômica e técnica. O terrorismo, o cyber
crime, os crimes ambientais, a biotecnologia pirata, os crimes ambientais
são só alguns expoentes primeiros desta vertiginosa mudança de paradigmas
criminais a exigirem uma mudança normativa.
b)Mudanças na
criminalidade
A atual
“sociedade global de risco” faz o crime mudar em dois aspectos primeiros: a
possibilidade do crime se tornar cada vez mais transnacional e, com isso, o
enfraquecimento do direito penal clássico, que passa de um direito de limites
estatais para um direito de intervenção máxima e antecipada.
Mas essa causa
não pode trazer como consequência este efeito deletério: a deslegitimação do
direito penal. Essa deslegitimação que passa essencialmente pela ruptura de seu
valor iluminista de ser um limite, uma proteção do indivíduo frente ao Estado.
A criminalidade
transnacional nasce da globalização por três motivos: técnicos, econômicos e
políticos.
Os motivos
técnicos dizem respeito à evolução de sistemas de computadores, frequentemente
violados através da internet que permite não só a prática de delitos (cyber crimes), mas também a comunicação,
a organização de entidades criminosas em vários lugares do planeta. A internet
também é muito importante no fluxo de dinheiro, arquivamento de segredos de
negócios, empresas, condução da produção de fábricas, distribuição de energia
elétrica, informações da polícia e militares etc.
Também nesta
seara técnica, a incrementação dos transportes faz aumentar o número de
pessoas, serviços e mercadorias entre os países diminuindo assim o controle nas
fronteiras.
Novos desenvolvimentos
técnicos como a facilitação de pesquisas com a energia nuclear, química,
biotecnologia potencialmente perigosas para o meio ambiente. Dentre essas se
pode desenvolver armas de destruição em massa, abuso de produtos dual-use (armas químicas), criação de
vírus e bactérias, como já ocorreu com os ataques da seita japonesa Aum e o envio de cartas com Antrax nos EUA.
Os motivos
econômicos levam ao cometimento de crimes ligados à lavagem de dinheiro porque
o mercado financeiro é cada vez mais rápido, mudando grandes quantias de
dinheiro virtual por todo o planeta numa difícil averiguação estatal de sua
origem lícita ou não. Neste aspecto, praticamente os Estados estão sem
controle.
A enorme demanda
nos portos com o aumento dos containers
também dificulta a fiscalização porque a economia exige menor tempo e os
Estados se sentem pressionados a liberarem cada vez mais rápido as mercadorias
sem uma fiscalização adequada. Tirando é claro, a incrementação dos mercados
internacionais ilegais com o tráfico de drogas, armas, pessoas, órgãos humanos,
pirataria de produtos etc. Com o surgimento dos grandes grupos econômicos e
fundos nacionais e multinacionais há o risco de submissão política dos Estados
através da corrupção, além das falsidades contábeis, crimes contra o meio
ambiente e a economia que poderiam afetar a todo o mundo.
Os motivos
políticos construíram as novas fronteiras Estatais. Houve uma expansão dos
limites territoriais. A Comunidade Europeia é exemplo. Assim, há um livre
trânsito de um cidadão português pela Europa ou de qualquer europeu a Portugal
sem maiores dificuldades alfandegárias, como era antes. Com essa maior
permeabilidade das fronteiras, é claro que se aumentam as possibilidades de
crimes transnacionais. Até mesmo a burla das legislações, como estava ocorrendo
com a liberalização da maconha na Holanda, o que levou este país a proibir a
venda da planta aos turistas nos coffeeshops,
a partir deste ano de 2012, exceto para os belgas e alemães, além, claro, dos
holandeses. Os motivos políticos também estão por trás do terrorismo, cuja
motivação transcende as ameaças do direito penal.
Tudo isso traz
como consequência uma complexidade muito grande quando se procura a resposta no
direito penal.
c)Os limites
territoriais do direito penal
Dificilmente o
direito penal de qualquer nação será aplicado a nível global. O que pode
ocorrer é a incrementação dos procedimentos que reconhecem a validade das decisões
em territórios estrangeiros. Essa cooperação entre os Estados é algo que tende
a ser aprimorado de forma que uma ordem de prisão de um juiz português seja
automaticamente validada por um tribunal alemão sem a necessidade de demorados
procedimentos.
É claro que isso
está longe de se formar um direito penal transnacional (“teoria da integração
internacional do direito penal”). Há inúmeros projetos na Europa para esse
modelo transnacional, mas a verdade é que ainda subsiste o outro sistema, o
outro modelo de abordagem penal transnacional: a da cooperação, onde se validam
as decisões de um país pelo outro. O desenvolvimento de um direito penal transnacional
europeu, por exemplo, só é encontrado esporadicamente como no combate à
formação de cartéis e na proteção dos interesses financeiros da Comunidade
Europeia.
É claro que o
modelo adotado de cooperação também encontra limites, como a legitimação supranacional,
o que coloca em risco as garantias processuais nacionais (voltadas ao direito
individual); o reconhecimento recíproco de decisões judiciais apoiada em
confiança mútua entre os Estados; as diferenças culturais entre os países que
pode fazer em um país ser crime no que no outro não o é.
3)Propostas
As propostas
para o combate às novas formas do crime têm apoio em duas vertentes: uma que
privilegia a “desfronteirização” do direito penal, seja através da teoria do
direito penal transnacional, seja através dos sistemas de cooperação, já
discutidos. A segunda proposta, na qual nos perfilamos, pugna pelo
desenvolvimento de medidas alternativas extrapenais.
Essas medidas se
referem à prevenção criminal através do controle social informal e controle jurídico
extrapenal em um amplo espectro de possibilidades.
Assim, o direito
médico deve trazer punições não-penais às pesquisas antiéticas; o direito
administrativo deve trazer formas de combater a corrupção; buscar formas de
minimizar as causas criminológicas do terrorismo e crime organizado;
incrementar as indenizações de direito civil; mediações entre o criminoso e a
vítima; a co-regulação entre particulares e Estados nas atuações pela internet;
ampliação dos códigos de condutas e códigos de ética.
Quer dizer, a
solução das novas modalidades criminosas não passa pelo direito penal, mas,
antes, encontram forte resposta em medidas preventivas extrapenais.
Assim teremos a
garantia da continuidade da estatização dos crimes pelo Estado com todas as
garantias processuais e individuais, com a legitimação punitiva, sem se falar
em censura e com uma possibilidade aumentada de punição extrapenal, pois a
resposta do direito penal exige efetivamente o respeito aos princípios
democráticos, coisa que passa ao largo das punições administrativas, como é o
caso da punição por suspeita de doping
pelas federações esportivas. Tudo isso para garantirmos que a parte mais fraca
(no caso o indivíduo) continue a ser protegido pelo Estado.
Não existe
sistema perfeito. O que se coloca é uma escolha que não tem nada de simplista e,
por isso, não pode ser bifurcada entre a busca da segurança ou a proteção da
liberdade. O mau uso da liberdade, entretanto, não serve de argumento para a
sua supressão. O risco que se corre protegendo a liberdade é, ainda,
infinitamente melhor do que o arrebatamento dos Direitos pelo Estado.
Bibliografia:
Hobsbawm, Eric
J. O novo século: entrevista a Antonio Polito. SP: Cia das Letras, 2009.
Sieber, Ulrich.
Limites do direito penal. Revista Direito GV no. 7, Jan-Jun 2008, p. 269-330,
São Paulo: s/d.
Zaffaroni,
Eugenio Raul. Apuntes sobre el
pensamiento penal en el tiempo. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, p. 192.
[i] Discurso proferido em Lisboa
(Portugal) no Encontro Internacional de Juristas em 13 de janeiro de 2012.
Comentários
Criminológicos sobre a Violência Juvenil.
Warley Belo
“...
pode-se escolher a vida – e desvalorizar seu aniquilamento – ou pode-se escolher
a valorização do sistema (com o conseqüente negativismo ou indiferença pelo
aniquilamento da vida humana e não humana), mas também pode-se escolher não
pensar e, em semelhante alienação covarde, cair no desprezível otimismo
irresponsável. Para nós, a decisão eticamente correta escolhe a valorização da
vida, apesar da coragem de pensar.”
(Eugenio Raúl Zaffaroni, Em busca
das penas perdidas, p. 157)
Introdução
O filme advém do romance
A Clockwork Orange publicado por Anthony Burgess em 1962. Burgess expõe o mundo
dos “droogs”, gíria em russo, que nos remonta à um grupo de jovens delinqüentes.
O trabalho cinematográfico possui um clima amedrontado e atormentado que
nos leva a muitas perguntas temáticas na moderna Criminologia: Se possível, como
a violência poderá ser erradicada da nossa sociedade moderna? Por que gangues se
formam e têm comportamentos extremamente violentos? Poderá, o Estado, privar um
indivíduo da sua livre vontade, transformando-o em um robô (ou um animal) que
admite programação (ou adestramento) mental? O que isso significa ao analisarmos
as tecnologias de modificação de comportamento de castigo contra o crime?
Essas são apenas algumas das indagações que procuraremos responder ao
longo desse trabalho que visa discutir, sim, a violência, mas quer ser também um
meio de troca de idéias entre um fascinado pelo Cinema e pela Criminologia.
Portanto, logo se avisa, o discurso não quer ser só técnico. Quer ultrapassar
essa fronteira e ser um texto “comentarista”. Quer interagir com o leitor. Desse
modo, ser-nos-á permitido fazer digressões à essa ou àquela doutrina ou corrente
de pensamento ou mesmo outras obras literárias sem o medo de incorrermos em
falhas metodológicas modernas a que os trabalhos científicos estão agrilhoados.
E não é só.
Tratamos da violência juvenil. Isso indica que não
trataremos da violência adulta e nem da criminalidade juvenil e / ou adulta.
O discurso é orientado para um determinado grupo de agentes: os jovens
adolescentes a que nos remonta o filme. É claro que, mesmo assim, não podemos,
aqui, pretensiosamente, assumir a descrição da violência juvenil como um todo.
Seguimos, nesse aspecto, a honestidade de Albert K. Cohen[1], no seu clássico
Delinquent Boys:
“The problem of the relationship between juvenile
delinquency and adult crime has many facets. To what extent are the offenses of
children and adults distributed among the same legal categories, “burglasy”.
“larceny”, “vehicletaking” and so forth? To what extent, even when the offenses
are legally identical, do these acts have the same meaning for children and
adults? To what extent are the careers of adult criminals continuations of
careers of juvenile delinquency?
We cannot solve these problems here,
but we want emphasize the danger of making facile and unprone assumptions. If we
assume that “crime is crime”, that child and adult criminals are practitions of
the same trade, and if our assumptions are false, then the road to error is wide
and clear. Easily and unconsciously, we may impute a whole hort of notions
concerning the nature of crime and its causes, derinedfrom on knowledge and
fancies about adultcrime, to a large realm of behavior to which these notions
are irrelevant. It is better to make no such assumptions; it is better to look
at juvenile delinquency with a fresh eye and try to explain what we see.”
Por outra, violência e criminalidade não são sinônimos. Necessário, pois
pontuar a diferenciação, a fim de delimitar o discurso. Rodrigo de Abreu
Fudoli[2] nos ensina o seguinte:
“Violência e criminalidade são
fenômenos diversos. O crime é apenas uma das facetas da violência, embora haja,
no discurso dominante, uma clara aproximação entre violência e crime,
identificando-se a ação individualizada da criminalidade convencional como
tradução da idéia de violência. Este falso e parcial pensamento conduz à
consideração do sistema penal como produto hábil a fornecer à sociedade a
proteção e segurança almejadas, como forma de desviar as atenções de fatos mais
danosos, e de permitir o terrorismo oficial, mantenedor da injustiça, da
desigualdade e da exclusão.”
No filme, essa dicotomia violência/crime
não é tão explorada, mas há, verdadeiramente, no discurso dominante, tanto lá na
ficção quanto aqui na realidade, a aproximação entre os conceitos de violência e
crime. O nosso maior temor é que se confunda esse discurso - voltado para a
violência – com um discurso que analisa a criminalidade juvenil. Seria um erro
crasso estudar o texto dessa maneira.
O ponto da discussão é, pois a
violência juvenil. Não obstante, abarcaremos também o tratamento behaviorista de
‘reeducação’ social tendo, sempre, por pano de fundo o filme, a doutrina
criminológica e o direito de apontarmos nossa visão pessoal.
O Autor de
“A Laranja Mecânica”: Burgess Anthony Burgess nasceu no dia 25 de fevereiro de
1917 e morreu em 25 de novembro de 1993. Era ensaísta versátil, lingüista,
tradutor, músico, e novelista cômico[3] cujo uso inventivo do idioma ‘Nadsat’ é
prova para paródia refletindo o interesse dele em James Joyce, sobre quem
escreveu em Re Joyce (1965). É reconhecido mundialmente pelo seu melhor romance
futurístico: “A Laranja Mecânica” (1962; filme, 1971).
Criado em
ambiente católico na cidade de Manchester, Inglaterra, estudou música e foi
também compositor. As suas formas musicais freqüentemente são usadas em sua
ficção, como Napoleon Symphony: Um Romance em Quatro Movimentos (1974).[4]
Depois de servir ao Exército britânico na Segunda Guerra Mundial, ele se
tornou professor e oficial de educação, primeiro na Inglaterra (1950-54) e então
no oeste americano (1954-59), onde escreveu Time for a Tiger (1956), seu
primeiro romance publicado.
Mandado de volta para a Inglaterra com um
tumor cerebral supostamente fatal, ele escreveu outros cinco livros em apenas um
ano.
Direção do filme: Kubrick A direção foi de Stanley Kubrick. Nasceu
em Nova Iorque no dia 26 de julho de 1928 e morreu em 07 de março de 1999. Era
escritor de filmes, diretor e produtor, cuja fama é virtualmente legendária[5].
É considerado um mestre da sétima arte.
Enquanto trabalhava ainda como
foto-jornalista para revista Life, Kubrick fez sua entrada de modo quase
imperceptível com o filme Fear and Desire (1953) e o Killer’s Kiss (1955).
Depois do seu “thriller” de crime The Killing (1956), os críticos começaram a
lhe notar. Mas foi com Paths of Glory (1957) que solidificou sua reputação como
diretor. Após, lançou Spartacus (1960), Lolita (1962), Dr. Strangelove, ou How I
Learned to Stoped Worrying e Love the Bomb (1964). No 2001:Uma Odisséia no
Espaço (1968) e na Laranja Mecânica (1971), ambos feitos na Inglaterra, gerou-se
uma intensa controvérsia da crítica, mas, agora, são amplamente aceitos como
marcos do cinema moderno. Seus filmes posteriores são Barry Lyndon (1975); The
Shining (1980); Full Metal Jacket (1987) e Eyes Wide Shut (1999).
A
Laranja Mecânica ganhou destaque na Associação de Filmes da América (AFI –
American Film Institute)[6] pela exploração da sexualidade e da violência de
forma singular, permanecendo hoje com o 46o. lugar no ranking daquela
organização. Tornou-se o segundo filme avaliado (depois de Midnight Cowboy) a
ganhar The Best Picture Academy Award. O primeiro lugar do ranking da AFI
pertence a Cidadão Kane.
Os críticos de Nova Iorque nomearam A Laranja
Mecânica o Melhor Filme de 1971, e Kubrick o melhor diretor. Ganhou quatro
nomeações ao Oscar, por Melhor Quadro, Melhor Diretor, Enredo mais Bem Adaptado
e Melhor Filme Editado.
Ameaças de morte por causa do filme O filme
causou um escândalo quando foi liberado na Inglaterra e recebeu a fama de ter
incitado vários atos de violência. Em 1973, Kubrick pediu à Warner Bros. para
remover o filme da Inglaterra. O filme ficou proibido de ser exibido no Reino
Unido de 1973 até o ano 2000.
Em uma entrevista após a morte de Kubrick,
sua ex-esposa Christiane, relatou as razões que motivaram o cineasta a impedir a
exibição do filme: ameaças de morte a ele próprio e à sua família.
Por
que “Laranja” e por que “Mecânica”? O que significa o título "Laranja Mecânica”?
Ao pé da letra, o título original (Clockwork Orange), significa “Laranja com
Mecanismo de Relógio”. O título alude, pois a um “mecanismo de relógio” -
clockwork – algo que nos remonta a uma visão mecânica, artificial, robótica,
programável.
Orange – laranja, nos leva, particularmente, a ver
semelhança, no inglês, com a palavra “orang – utan”, ou seja, um macaco (no caso
alaranjado, mesmo), uma criatura, um animal. No final das contas, seria uma
alusão ao procedimento behaviorista utilizado pelos cientistas do filme para
reintegrar à sociedade o jovem Alex, considerado como um “animal” e, por isso
mesmo, “domesticável”.
Existem também reminiscências[7] ao título
ligando-o à uma velha expressão londrina - tão esquisita quanto o título – que
significa: “muito estranho ou incomum”. Nesse aspecto, liga-se à visão do autor
sobre o comportamento dos jovens delinqüentes ou, mais corretamente, como já
apontamos, ao tratamento que o criminoso Alex fora submetido.
O Idioma
Talvez a coisa mais fascinante sobre o livro (e o filme) seja o idioma.
Alex pensa e fala no "Nadsat" (adolescente em russo, em analogia temos
“teen” do inglês. Também é a terminação das palavras russas que numeram os
números de onze a dezenove).
No princípio, o vocabulário parece
incompreensível: "You could peet it with vellocet or synthemesc or drencrom or
one or two other veshches". (“Você podia peet isto com vellocet ou synthemesc ou
drencrom ou um ou dois outros veshches"). Mesmo não se sabendo nenhuma palavra
russa e parecendo, à primeira vista, indecifrável o significado, compreende-se a
idéia ao se analisar o contexto da frase. Entretanto, há palavras que buscam ser
inteligíveis mesmo em se observando o contexto: quando Alex chuta um integrante
de uma gangue rival (Billyboy), caído no chão, ele diz que o chutou no
"gulliver". A expressão poderia fazer referência a qualquer parte do corpo
naquele contexto. Todavia, em outra cena, um copo de cerveja é servido com
“gulliver”. E quando o mesmo se recusa a ir à escola fica claro que “gulliver” é
dor de cabeça... De qualquer forma, a palavra pode ter sua origem remontada ao
russo: “golova”, que significa “cabeça”[8].
Anthony Burgess não usou
palavras russas sempre de forma mecânica[9]. Há passagens que se utiliza do
“Nadsat” com grande ingenuidade, como na palavra "gulliver" já referida. Outras
palavras são brilhantemente arquitetadas: khorosho (bom ou bem) como
"horrowshow"; iudi (pessoas) como "lewdies"; militsia (milícia ou polícia) como
“millicents”.
A "conversa codificada” (melhor do que gíria) inclui a
frase marcante de Alex “O my brothers" e palavras como "crark" (uivar?) e
“cutter" (dinheiro). A linguagem tem um som maravilhoso, particularmente em
abuso, quando "bratchny grahzny” soa infinitamente melhor do que "dirty bastard”
(“bastardo sujo"), além do que é um ponto central para a nossa análise
criminológica.
O capítulo fantasma de Clockwork Orange
O livro A
Laranja Mecânica foi publicado em Nova Iorque por W.W. Norton Inc. no ano de
1962 e também na Europa.
Na América do Norte, ao contrário do que
ocorreu na Europa, Norton - o presidente da Editora, insistiu que o livro
perdesse seu capítulo final[10]... Por que? Não nos pergunte! Não encontramos a
resposta.
Burguess concordou com esse procedimento, mas “não fiquei
contente”, pois “tinha estruturado o trabalho com muito cuidado. Havia dividido
em três seções de sete capítulos cada, figura numérica essa que, em numerologia
tradicional, significava o símbolo de maturidade humana.”, explicou Burguess a
um jornal londrino[11].
No mínimo, incomum a história.
Alex
termina o Capítulo 20, na edição americana, com a seguinte declaração: “eu
estava certo que tinha me curado". Ou seja, se “estava” era porque não
continuava... As edições americanas e européias são essencialmente diferentes.
Tem mais: Kubrick não teve notícias desse capítulo à tempo. A versão que
lhe chegou às mãos era a americana, sem o capítulo 21, e, mesmo o filme tendo
sido realizado na Inglaterra, só veio a descobrir o “capítulo fantasma” após o
término do trabalho cinematográfico. Nada muito relevante para Kubrick que se
disse satisfeito com o final da versão americana e que não a mudaria[12].
No capítulo final (capítulo 21 - ou capítulo 7 da parte III), Alex
aparece com mais idade, renuncia seus modos violentos, se casa e tem crianças.
Torna-se, assim um “indivíduo produtivo” à sociedade. Em linguagem simples, a
versão dos americanos transformou o romance em ficção e modificou, radicalmente,
a concepção sobre o behaviorismo, como veremos.
Descrição das cenas de
“ultra-violência” Prenuncia o cartaz do filme: “Being the adventures of a young
man whose principal interests are rape, ultra-violence and Beethoven.”
O
desordeiro e jovem Alex (Malcolm McDowell) tem seu modo particular de diversão:
dores, sofrimentos alheios e violência gratuita. O trajeto de Alex é de cunho
punk amoral o que nos leva a formar um arco dinâmico entre a visão futurística
de Stanley Kubrick e a visão de choque de Anthony Burgess em seu romance.
Permitido, pois sair da órbita terrestre para tecer comentários.
Imagens
agressivas, reforçadas pelos contrapontos musicais aliado ao “código” Nadsat
usado por Alex e seus camaradas, fazem do filme de Kubrick um quebra-cabeças
cujas peças se amoldam em um todo poético mesmo sendo um universo imensamente
controverso e violento.
A locação do filme é a Inglaterra em futuro
próximo. Ao fundo, toca música de órgão ao estilo gótico (Elegy in Death of
Queen Mary, de Pucell)[13]. A abertura possui uma imagem memorável: é uma
tomada, em foco, dos olhos azuis e face maliciosamente sorridente do jovem Alex
de Large, com um falso cílio (superior e inferior) adornando o seu olho direito.
Suas abotoaduras e suspensórios são decorados com um sangrento glóbulo
ocular.
Afastando a visão da câmara, os "droogs", possuidores de nomes
russos, são mostrados: Georgie (James Marcus), Dim [abreviação de Dimitri]
(Warren Clarke), e Pete (Michael Tarn).
Os nomes são simbólicos: o Alex
representa o Alexander, heróico e majestoso (Alex The Large, é o seu nome). O
Grande. Mas, nesse caso "A - lex", ou seja - um homem sem lei, o que já pode nos
trazer alguma referência sobre a anomia dos criminólogos.
Na frente
deles, e também formando um corredor em ambos os lados, aparecem formas
grotescas de trabalho de arte em um humor niilista e futurístico: esculpido em
branco higiênico - corpos de mulheres submissas em fibra estão em forma de
mobília, onde algumas estão ajoelhadas e outras em posição de quatro, como
mesas. As cores estão ausentes, exceto o orlon artificial das perucas. O filme é
narrado por Alex, o protagonista. Assim as primeiras palavras:
Alex:
There was me, that is Alex, and my three droogs, that is Pete, Georgie, and Dim,
and we sat in the Korova Milkbar trying to make up our rassoodocks what to do
with the evening. The Korova milkbar sold milk-plus, milk plus vellocet or
synthemesc or drencrom, which is what we were drinking. This would sharpen you
up and make you ready for a bit of the old ultra-violence.
No Korova
Milkbar, mistura-se bebidas “enriquecidas” com drogas (denominado "milk-plus").
Servida dos seios de uma manequim nua (uma “mãe” como fonte da violência, a
violência como instinto natural?) que é operada por moeda e que já sai
automaticamente com drogas para deixá-los prontos para o entretenimento: "the
old utra-violence". Eles esperam por uma noite com muita confusão, depredação,
agressão e estupro.
Possuem um padrão nas vestimentas: macacões
compridos e brancos, suspensórios brancos paralelos, botas de combate pretas e
corridas. Usam uma espécie de coquilha externa e bem à mostra, mas igualmente
branca, protegendo as genitálias.
A primeira atuação remonta um
espancamento a um bêbedo vagabundo que buscava refúgio abaixo de uma passarela
de pedestres. Cantava "Molly Malone"[14].
O velho bêbado ("filthy, dirty
old drunkie") os escarnece e é espancado severamente depois de ter lamentado o
estado da sociedade presente onde não há mais respeito e nem valores. Um mundo
que tem péssimo cheiro, onde nenhum jovem respeita os anciões.
Ao fundo,
música de violinos e instrumentos de sopro de madeira.
A cena passa para
uma casa de ópera (ou cassino ou teatro) abandonada - um símbolo da sociedade
contemporânea que se desmorona. São ouvidos gritos estridentes e música. No
palco, uma jovem mulher em luta contra alguns jovens que a molestavam. A vítima
de estupro tem suas roupas rasgadas ante os quatro furiosos delinqüentes de uma
gangue rival. Billyboy (Richard Connaught), e sua gangue, usa roupas que lembram
velhos uniformes nazistas:
Alex: It was around by the derelict casino
that we came across Billyboy and his four droogs. They were getting ready to
perform a little of the old in-out, in-out on a weepy young devotchka they had
there.
Alex e a sua gangue observam o preparatório para “the old in-out,
in-out”, e então - preferindo violência a sexo - os desafia a uma briga com um
insulto sexual: "How art thou, thou globby bottle of cheap, stinking chip oil?
Come and get one in the yarbles, if you have any yarbles, you eunich jelly
thou."
O prédio antigo serve de fundo para uma rápida sucessão de
imagens violentas executada harmonicamente, como em uma cena de balé. Os atos
violentos entram em uma sintonia, em uma leveza com a música de Rossini ao
fundo. Em estilo reconhecível por quase todo o filme a simbiose violência-música
nos mostra a briga entre as gangues de adolescentes onde aparecem lances de
arremesso de mobílias, janelas de vidro se estilhaçando, espelhos espatifados e
chutes cinematográficos. Corpos voam pelo ar em pulos e cambalhotas; cadeiras
esmagam cabeças. Quando, finalmente, a atuação é interrompida por uma sirena
policial. Alex e sua gangue fogem em um carro esporte roubado - um Durango/95.
Saem com o carro pela noite escura da zona rural dirigindo em alta
velocidade e despreocupadamente em relação aos outros carros e motos que vêm em
direção contrária. Em verdade, eles se jogam contra os outros veículos.
Divertem-se à custa do pânico e da excitação de forçar os outros carros a saírem
da estrada.
Chegam a uma residência opulenta marcada com um convidativo
indicador de “CASA” iluminado. É uma casa moderna. Uma tentativa imaginosa de
antecipar o design arquitetônico futurístico. Os quatros se dirigem para a porta
de entrada.
A casa é a residência dos Alexanders. O marido ancião,
escritor, bate à máquina de escrever (Kubrick não imaginava a revolução dos
PCs). A sua esposa, Sra. Alexander, usando uma roupa vermelha, lê em uma cadeira
de plástico branca - também com um suposto design futurista. Quando a campainha
toca (parece uma parte da melodia da Quinta Sinfonia de Beethoven!)[15] ela vai
à porta. Alex pleiteia - ao argumento de que houve "um acidente" terrível - o
uso do telefone da casa para chamar uma ambulância: “é uma questão de vida ou de
morte". Ela hesita: suspeita da visita noturna. Mas, o Sr. Alexander consente ao
pedido de socorro. Quando ela destrava a porta, a gangue invade a casa trazendo
à tona um início de um pesadelo para os moradores, mas que não passa do mais vão
dos entretenimentos para os quatro rapazes. Estão usando máscaras cômicas e
estranhas. Alex tem um grotesco símbolo fálico que lhe tampa o nariz. A Sra.
Alexander é segura à altura dos ombros por um dos comparsas e é afagada por
Alex. O Sr.
Alexander é chutado no chão por Alex que ironicamente pontua
rítmica e secamente - a pontapés - uma dança com a letra de "Singin in the
Rain". A cena é perturbadoras, pois há uma justaposição das letras familiares de
uma música brincalhona, alegre, feliz - de um filme clássico - com imagens de
brutalidade e de extremista “ultra-violence”:
I'm singin' in the rain,
Just singin' in the rain... What a glorious feeling, I'm happy again. I'm
laughing at clouds, so dark up above. The sun's in my heart, and I'm ready for
love. Let the stormy clouds chase, everyone from the place. Come on with the
rain, I've a smile on my face. I'll walk down the lane, with a happy refrain.
And I'm singin', just singin' in the rain.
Ambas vítimas são amordaçadas
com uma bola de borracha dolorosamente inserida em suas bocas e seguras ao redor
da cabeça por longas tiras de fita adesiva. Alex destrói a escrivaninha do
escritor, a máquina de escrever e a estante. Sr. Alexander é forçado, agora já
completamente rendido, a assistir ao despimento e estupro de sua esposa. Alex
começa cortando dois círculos ao redor dos seios da Sra. Alexander para
expô-los. Após, corta-lhe o terno inteiro. Então, com um movimento que lembra um
passo de dança, baixa as próprias calças e escarnece ao marido: "Viddy well,
little brother. Viddy well."
O grupo volta ao Korova Milkbar onde eles
se espreguiçam em contraste com as paredes pretas.
Há uma mesa perto
onde alguns técnicos de estúdio de televisão estão rindo e conversando. A mulher
do grupo segue seu instinto e canta uma seção curta da “Ode to Joy” de Schiller
no movimento de coral da Nona Sinfonia de Beethoven[16]. Para Alex, é um momento
de puro êxtase.
Depois da música, Dim ironiza a cantora. Alex o agride
nas pernas com uma bengala pela falta de respeito ("por ser um bastardo sem
modos"). É evidente que não se poderia falar mal do seu amado e favorito
compositor. Os ganidos de Dim parecem choramingos de criança e demonstram
descontentamento com a liderança de Alex: "eu não gosto que você faça isso
comigo. E não sou mais seu irmão e nem nunca o quis ser... Yarbles, grande
yarblockos de bolshy para você". Dim o ameaça, mas se recusa a lutar com Alex
quando esse aceita o convite.
Alex volta para casa (na Municipal
Flatblock 18a Linear North)[17] onde ele vive com seu pai e sua mãe.
O
salão de entrada do prédio está obstruído por lixo e sobras de materiais
demonstrando o desleixo dos moradores.
Em uma passagem, fica à vista um
mural enorme onde aponta-se a dignidade do trabalho, todavia está deformado por
uma pichação sexual obscena. A porta do elevador está quebrada e Alex tem de
subir pelos degraus. A parede dentro de seu quarto está enfeitada com um desenho
erótico, uma imagem feminina. Do outro lado, há um quadro de Beethoven. Ele põe
sua pilhagem da noite em uma gaveta já cheia de relógios roubados e carteiras.
Em uma segunda gaveta, ele confere a sua cobra python. Como "o fim" perfeito
para a "noite maravilhosa", Alex insere uma fita cassete da Nona Sinfonia de
Beethoven. Enquanto aprecia seu compositor favorito, no pedaço mais conhecido da
música, a cobra python explora a área onde está exposta a figura feminina na
parede. Durante um devaneio, ao tom de Beethoven, Alex delira: Formam-se quadros
alucinógenos em sonhos masoquistas de imagens com cortes rápidos de quatro
“Jesuses” de plástico dançando fora do crucifixo. Uma mulher vestida de branco
cai em uma armadilha e, pendurada pelo pescoço, vê homens olhando de soslaio.
Alex ri maliciosamente. Agora são imagens de uma erupção vulcânica. Depois uma
avalanche de pedras que esmagam homens neandertalenses primitivos.
A
manhã vem. Os pais de Alex parecem ser de classe média. É a impressão, ao menos.
O contexto social é muito importante para a análise que se segue. Por isso, à
frente, seremos obrigados a elaborar dois caminhos. O primeiro construindo uma
teoria de Alex num contexto proletário e o segundo sobre Alex numa situação
financeira de classe média.
Seu pai, Pee (que é uma gíria inglesa para
urinar), e sua mãe, Em, estão confusos, apologéticos e, aparentemente,
amedrontados pelo comportamento desviado do filho. Costumeiramente tomam o café
matutino e falam sobre Alex. O pai pergunta: “eu gostaria de saber, onde
exatamente ele vai trabalhar à noite?” A mãe responde: “Bem, como ele disse, são
coisas estranhas que ele faz, alguns biscates, ora aqui, ora acolá, como tem de
ser.”
Ao ser desperto pela mãe, alega pretensa "dor no gulliver".
Desculpa suficiente para lhe isentar a ida à escola. Quando seus pais já não
mais se encontram em casa, levanta. Apenas trajando uma cueca, é surpreendido
por um assistente social (ou um agente corretivo), Sr. Deltoid, já dentro do
apartamento, pois a chave lhe fora emprestada pela mãe de Alex a caminho do
trabalho. Depois de fazer Alex se sentar na cama, próximo a ele, põe o braço
afetuosamente ao redor dos ombros nus de Alex e fala em linguagem Nadsat para
ficar atento porque da próxima vez ele poderá ir para a prisão. Externa sua
suspeita do envolvimento de Alex na "sordidez" da noite prévia.
Em uma
flamejante boutique musical, duas garotas lambem fálicos sorvetes. Ouve-se sons
sintetizados do quarto movimento da Nona Sinfonia de Beethoven. Alex está
vestido estilisticamente. A cena é filmada em 360o. graus enquanto passeia pela
loja e examina as duas jovens. Depois de rondá-las, as indaga: "Um pouco
insensato, não é, minhas queridas?” e então convida-as para escutar música em
seu sistema moderno de hi-fi.
Já em seu quarto, há uma criativa filmagem
em alta velocidade de uma cena de orgia (a clockwork sex?) entre os três. A cena
foi filmada numa velocidade doze vezes superior a de um filme normal (a duas
armações por segundo). Levou uns 28 minutos atuais para filmar, mas dura, na
tela, apenas 40 segundos.
A gangue de Alex o está esperando no salão de
entrada do apartamento, quando o mesmo desce pelas escadas. Depois de
discordarem das ordens dele e da disciplina ditatorial exigida, um dos ‘droogs’
quer saber de "dinheiro grande, muito grande”.
Para satisfazer o desejo
dos amargos dissidentes, Alex oferece a eles uma trégua e para se reconciliarem
sugestiona uma rodada de bebidas ("moloko-plus") no milkbar de Korova. Eles
caminham ao longo de uma marina quando, em gracioso e lento movimento (é notável
o contraste com os movimentos de alta-velocidade da cena de orgia anterior) Alex
os agride e consegue manter o seu controle tirânico sobre os comparsas.
Daí, o filme continua com a invasão de um ‘spa’, cuja dona possui um
tanto de gatos, e é assassinada por Alex. Na saída, é surpreendido pelos
próprios amigos com uma garrafada de leite em sua face. Postado no chão, é preso
e levado à Delegacia.
Do Prazer, através da violência As cenas são,
deveras, nauseantes e é preciso mesmo ter “nervos de aço” para passar imune às
chocantes arbitrariedades. Entretanto, agora, podemos nos abstrair dessa
descrição detalhada e passarmos a analisar as cenas principais do filme,
lamentando – profundamente – não termos mais espaço para aprofundarmos e
expormos todas nossas idéias.
Como já indicamos no início do trabalho, o
filme quer tratar da violência juvenil e do tratamento imposto ao jovem Alex.
Começamos com uma afirmativa desconcertante: A violência é útil. A
violência é funcional para a sociedade.
Num primeiro momento, pode-se
pretender, a assertiva, como uma idéia reducionista ou evasiva das sangrentas
cenas descritas. Mas não é esse o ponto. Observemos. Não se tem notícias de
nenhuma civilização onde a violência não tenha existido. Carnificinas,
massacres, genocídios, fúria, ou seja, a violência em sua generalidade sempre
foi comum a qualquer conjunto de civilização. Não é uma coincidência. Trata-se
de uma estrutura constante do próprio fenômeno humano e tem, evidente, um papel
na vida em sociedade.
Emile Durkheim[18] nos traz essa concepção inicial
do utilitarismo de todos os fatos sociais:
“Classificar o crime entre os
fenômenos da sociologia normal não é apenas dizer que constitui fenômeno
inevitável, embora lastimável e devido à maldade incorrigível dos homens; é
afirmar que é um fator da saúde pública, uma parte integrante de toda sociedade
sã. Este resultado é, à primeira vista, tão surpreendente que nos desconcertou
durante muito tempo. Todavia, uma vez dominada a primeira impressão de surpresa,
não é difícil encontrar as razões que explicam esta normalidade e,
concomitantemente, a confirmam. (...) o crime é normal porque seria inteiramente
impossível uma sociedade que se mostrasse isenta dele.”
Mais
recentemente, Maffesoli[19], expôs:
“A violência, a crueldade, a
desordem, a perda são somente aspectos da vida cotidiana levadas ao seu extremo,
e esse limite é a condição de um reabastecimento dessa mesma vida cotidiana. O
“reabastecimento” de que acabamos de falar exprime, aos nossos olhos, esse
processo lógico, orgânico que une a monotonia à intensidade, a partir do momento
em que cada um é aceito enquanto tal, como elemento de um conjunto.”
Temos por certo que a violência também ocupa status de normalidade em
nosso contexto civilizatório, assim como o crime. Logo, a violência é funcional,
exerce função na sociedade, é importante enquanto violência. O problema é
desvendarmos o ‘modus operandi’ desse processo.
Zaffaroni e
Pierangelli[20] nos chama a atenção para um aspecto da funcionalidade da
violência:
“É claro que a tese de Durkheim peca pela ingenuidade, mas é
a primeira formulação moderna de uma visão macrossociológica do delito que
abarca a reação social. O delito já não é um corpo estranho, nocivo à sociedade,
mas que cumpre uma função positiva em nível macrossociológico, ou seja, estaria
integrado “fisiologicamente” à sociedade, seria um elemento “funcional” da
mesma. Não é uma posição anti-organicista, mas uma mudança dentro da abordagem
organicista.”
A crítica de Zaffaroni e Pierangelli à Durkheim refere-se
à moderna crítica da Criminologia ao Direito Penal positivo, cuja análise não
adentramos por motivos já expostos. Fica, todavia, a citação e o pioneirismo de
Durkheim para o estudo da violência não centrada no indivíduo em si, mas, sim,
numa nova visão macrossocial e compreender isso é essencial para interpretar o
filme. Por isso, fazemos uma reformulação: a violência tem sua funcionalidade
inserida em contexto macrossocial.
Lançamos outra aresta para o
discurso: a heterogeneidade gera a violência e a homogeneidade gera a
passividade, mas é potencialmente mortífera. Assim as vestimentas dos jovens
delinqüentes. Visualmente, eles são iguais nas roupas, calças compridas brancas,
suspensórios brancos paralelos, botas de combate pretas e corridas e uma
coquilha protetora dos órgãos genitais. Não se trata de emergimos uma “visão
lombrosiana das vestimentas”. Queremos reforçar o argumento de um identificação
primária, visual.
Esse comportamento, de se homogeneizar ao outro traz
em si, também, a heterogeneidade. No caso, em relação a todos os demais da
sociedade e agravado em relação a outros grupos rivais (gangues). Trata-se de um
“estruturante” coletivo. Um limiar de águas: o nós e o resto.
A
identificação visual é um mecanismo de compartilhamento de valores. Todos se
vestem iguais, todos tomam (e gostam) do “milk-plus”, todos cultuam a
“ultra-violence”. Não há liberdade fora dos parâmetros apontados por essa
tirania. Até o ruim individualmente passa a ser bom se o grupo assim rotula. Há
uma igualdade de pensamentos, um só modo de ser, de falar, de gostar, etc..
Becker aponta-nos exemplo final ao expor situação análoga, ao tratar dos
usuários de maconha. Diz nem sempre ser a primeira utilização da substância
prazerosa. Os efeitos químicos, não raramente, são náuseas, falhas de percepção
no tempo e no espaço e vômitos. Mas, o indivíduo “aprende” a ligar esses efeitos
ao significado de prazer principalmente porque os “outros” assim o entendem. Há
uma interiorização desses valores. Mais: a opinião do grupo é tomada como ideal
para a opinião pessoal. Becker[21] denomina de aprendizagem “step by step”:
“One more step is necessary if the user who has now learned to get high
is to continue use. He must learn to enjoy the effects he has just learned to
experience. Marihuana-produced sensations are not automatically or necessarily
pleasurable. (...) The user feels dizzy, thirsty; his scalp tingles; he
misjudges time and distances. Are these things pleasurable? He isn’t sure. If he
is to continue marihuana use, he must decide that they are.”
A partir
daqui podemos fazer junções entre esses fatos e alguns teóricos.
Albert
K. Cohen, cuja obra já citamos, desenvolve a teoria das subculturas dos bandos
juvenis. Esta é descrita como um sistema de crenças e valores, cuja origem é
extraída de um processo de interação entre rapazes ocupantes de posições pares
na estrutura social. Esta subcultura representa a solução de problemas de
adaptação, para os quais a cultura dominante não oferece soluções satisfatórias.
O primeiro momento da teoria é a idéia da total democratização do chamado
american dream: tanto os jovens das classes com posses como os jovens das
classes baixas interiorizam e começam por aderir à ética do sucesso da sociedade
ocidental-capitalista. Essa ética, todavia, se revela discriminatória, pois
possui mecanismos de exclusão de grupos sociais e critérios típicos da classe
média: racionalidade, autodisciplina, ambição, qualificação técnica, cortesia,
cultura acadêmica, etc. Alex pode ter sido educado nesse meio, pode ter sido
socializado com essa concepção culturalista da classe média e, normalmente,
deveria seguir, reproduzir o modelo dos próprios pais. Quando o corretor de
menores chega à sua casa fica claro que as condições sócio-familiares de Alex
são típicas da classe média, mas também ficou claro, na mesma cena, que Alex não
relevava importante a “ética da responsabilidade” apresentando a dias uma
suposta “dor de gulliver” para não ir à escola. Esse dado é importante, pois a
escola espelha a ideologia democratizante (Cohen) e meritocrática (Alessando
Baratta[22]) da sociedade global.
Parsons[23] já fala em youth culture,
caracterizada pela irresponsabilidade e cujo aparecimento atribui-se às “tensões
nas relações entre os jovens e os adultos” por decorrência dos comportamentos,
valores e exigências da sociedade industrial. Lembra da facilidade, nas
primeiras décadas do século passado, de um jovem, antes mesmo de completos os
dezoito anos, se integrar ao mercado de trabalho. Era possível, assim uma
inserção, sem traumas, para a vida adulta e para a cultura dominante. Já na
década de cinqüenta e sessenta (época em que foi escrito e filmado o “Clockwork
Orange”) é imprescindível a qualificação técnica mais apurada para a
integralização ao sistema sócio-econômico. Dessa forma, transferiu-se da idade
média de dezessete para vinte e quatro anos a entrada para o mercado de
trabalho. O que altera significativamente as fronteiras de valores e
relacionamento entre as gerações. Ora, esse distanciamento temporal (cerca de
sete anos) abriu um vazio na vida desses jovens emergindo uma “teen-ager
culture” (England) uma vez que esses jovens ficaram sem definição social clara.
Como se não bastasse, e no filme vimos isso, a estrutura familiar vem em
contínua desestruturação. Sofre grandes transformações com reflexos evidentes na
formação moral e educacional dos jovens, principalmente na classe média. Alex,
por exemplo, possui pais totalmente desvinculados de sua vida social, não sabem
sequer se o filho “trabalha” à noite e nem se esforçam por saber.
Nesse
sentido, Figueiredo Dias[24]:
“(...) se fosse possível sintetizar as
inovações introduzidas na educação das novas gerações, poderíamos falar em
abandono do monismo moral e do monismo profissional-acadêmico. A educação deixou
de se realizar predominantemente em casa e na atmosfera da severidade puritana.”
Veja-se, pois a ambigüidade da criação desses jovens: de um lado há uma
cultura tradicional, convencional com comportamentos virtuosos, de
responsabilidade, trabalho[25], estudo, mas, ao mesmo tempo, retiram-lhes a
função produtiva-econômica. São convocados à uma vida acadêmica, mas são
desprovidos das gratificações financeiras desse estado. Há um contra-senso desse
“duplo vínculo” sociedade-jovem.
Daí surgem crises de identidade cuja
superação encontra terreno fértil dentro das subculturas dos jovens. Buscam o
prestígio entre si, o status, a “dominação” mesmo dentro do seu universo jovem.
Acaso não é isso que Alex procurava com seus “droogs”? A todo momento se impor
coercitivamente quanto aos outros?
A partir de todo esse desenho
macrossocial, alcançou-se certo grau de solidariedade entre o grupo. Iniciou-se
a prática coletiva de violência e ilegalidade: condução do automóvel, uso de
drogas, vandalismo, furto, roubo, estupro, infrações às normas ou padrões
sexuais. Tudo em contraste frontal com a cultura dominante.
Logo, já se
percebe, a formação do grupo tem duplo movimento: destrói e constrói. Revela,
também, uma desestruturação social manifesta. Vamos lembrar, rapidamente, que os
pais de Alex são ausentes, relapsos. O prédio onde Alex mora está abandonado e
sujo. Tais circunstâncias, evidente, por elas mesmas, não são os únicos motivos
para a constituição da gang. Não se trata disso. Mas é um fator importante. Deve
ser visto com relevância. Nesse pensar, a violência no filme pode ser analisada,
ao mesmo tempo, em relação a uma institucionalização de valores (Becker),
adaptação social (Cohen) e estresse social (Parsons).
Essa é a análise
superficial e limitada ao aspecto macrossociológico. Entrementes, forçoso é
concluir a necessidade em averiguarmos, ainda, o porque da formação da “gang” e
o aspecto individual de Alex nessa estrutura social.
O crime (aqui posto
em paralelo à violência a fim de prosseguirmos no discurso) é comumente
associado, de forma necessária, a efeitos socialmente disfuncionais, negativos,
perturbadores. Hobbes via no crime uma ameaça à sociedade. Tais efeitos são,
sim, irrecusáveis. Provoca danos materiais, medo, cerceia a convivência social,
põe em risco valores sociais, etc. Mas há seu lado positivo (Durkheim). Esse
efeito positivo também foi abordado por Merton, além de Coser, Cohen, Erikson e
Scott.
Robert Merton desenvolveu a chamada teoria funcionalista da
anomia tendo por base a negação da concepção patológica do desvio, àquela época
já superada por Durkheim[26]. Seguindo Figueiredo Dias[27]:
“O conceito
de anomia de Merton situa-se expressamente no desenvolvimento da idéia
durkheimiana de ausência de normas. Apesar da diversidade de formulações
utilizadas, ele acaba por privilegiar idéias de ‘desmoralização’ ou ‘ruptura da
estrutura cultural’. O grau de anomia de um sistema social mede-se pela extensão
em que há ausência de consenso sobre as normas julgadas legítimas, com a
conseqüente insegurança e incerteza nas relações sociais. As pessoas são
confrontadas pela anomia substancial quando, como um dado de facto, não podem
esperar com elevada probabilidade que o comportamento dos outros se conforme com
os padrões que comumente consideram legítimos.”
Na concepção de Merton,
pois permite-se interpretar o desvio como um produto da estrutura social,
absolutamente normal, assim como o comportamento adaptado às regras sociais.
“Isso significa que a estrutura social não tem somente um efeito repressivo, mas
também, e sobretudo, um efeito estimulante sobre o comportamento
individual.”[28]
Num primeiro momento defrontamo-nos com a
desestruturação oculta (ou semi-oculta) dos “droogs”. As fissuras, como já
apontadas, são relativamente importantes e relativamente aparentes, mas não são
menos importantes e podem nos servir de meio revelador da especificidade daquela
violência gerada. Com a agregação pode-se concluir que há um “enfraquecimento
dos vínculos sociais” (Durkheim) que acarreta uma desagregação social. Ou seja,
há um escambo de valores. A anomia é manifesta. Esse mecanismo, segundo
Durkheim, caracteriza a acmé de uma civilização. Nos interessa a conclusão, cujo
fundamento desse mecanismo é o de normatizar. A adoção de normas (e aqui é
explícito: os “uniformes”, tanto do grupo de Alex quanto do outro grupo, os
Billyboys, o “Nadsat”, o ritual do “milk-plus”) cria uma integração da qual os
membros são partes. Os outros estão excluídos, já apontamos.
A
consciência individual ou mesmo coletiva nada tem a ver com esse processo. Essas
gangues não se formaram conscientemente. Estamos tratando de rebeldia, cujo
objetivo é destruir a inércia, a quietude. Estamos no plano da resistência. Na
guerra contra uma moral estreita e conformista. A violência dos “droogs”, pode
ser analisada, como uma introspecção de um simbolismo alinhado a um desejo de
viver social, talvez como resposta à não permissão de uma vida voltada para a
produção numa sociedade dominada pelo trabalho e pelo isolamento. Como dissemos,
não há esse espaço para os jovens entre as idades de dezessete a vinte e quatro
anos.
Nesse vasto movimento, o ‘grupo de rejeitados’ é revestido de um
novo contexto político. Tornam-se criadores ou reformadores de uma nova
estruturação social.
A violência nos remete a um instinto, quase que
perceptível, de recusa, resistência, insubmissão. O preso rebela porque se
recusa a ter determinado tratamento penitenciário, o povo rebela porque não lhe
é prestada a devida assistência, há violência porque é a forma de se externar
algum tipo de inconformismo. Falamos de desejo de viver fora dos parâmetros
impostos, falamos de resistência ao padrão do comportamento social.
A
marginalidade, portanto, acabamos de mostrar, é supostamente anti-social, mas,
de fato, trata-se de uma pára-sociedade (Maffesoli) avalista, no final das
contas, do bom funcionamento do conjunto social.
Daí trazermos à tona a
seguinte conclusão: a “ultra-violência” dos “droogs” é lógica e serve de
equilíbrio social. São cúmplices do sistema que lhes oprimem e que eles próprios
desejam se libertar. É necessário que alguém faça esse papel para que o sistema
continue coeso como está. Certamente, a conclusão não é original, todavia, no
contexto do filme é uma constatação assombrosa. Observemos que é o próprio
“Ministro da Justiça” quem vai ao encontro de Alex para saber de seu pronto
restabelecimento de saúde no hospital depois que esse se joga pela janela. O
Ministro (leia-se poder dominante) interessado na recuperação do delinqüente, em
especial daquele delinqüente, que havia rompido com o velho tratamento de
recuperação e iniciado um novo tratamento.
Ralf Dahrendorf[29] expõe,
coadunando com o pensamento lançado, que
“as sociedades e as
organizações sociais não se mantêm unidas pelo consenso, mas pela coação, não
por um acordo universal, mas pelo domínio exercido por alguns sobre outros.”
Na seara do indivíduo Alex, os psicanalistas sucessores de Freud dizem
que não há essência da sociedade e nem do indivíduo[30]. A psicanálise vem se
firmando no sentido da sociedade se confundir com a cultura. Isso quer dizer,
simplesmente, que a sociedade é uma construção humana, assim como a cultura.
Portanto, ela terá todos os aspectos das construções humanas, inclusive alguns
elementos complexos: amor, ódio, beleza, ética, etc.. O indivíduo não tem como
essência a repressão de si mesmo. Se se pode falar em essência (em Freud) é a
presença determinante do inconsciente. E o inconsciente não se confunde com o
reprimido, porque o inconsciente é mais. No caso de Alex, a concepção de si e do
outro é muito ruim, muito rígida, daí o seu comportamento em tônica
individualista até em relação aos seus “droogs”.
Não temos competência
para nos lançar na psicologia, entretanto é certo que o processo final do novo
mecanismo utilizado pelo Estado contra o delinqüente é um processo de “conter o
indivíduo”, visando o estabelecimento e a manutenção do equilíbrio social como
um todo. Observemos, então que se Alex morresse, antes ou depois do tratamento,
seria muito pior para o sistema do que com ele vivo, distribuindo violência
antes e se mostrando “domesticado” após o tratamento.
A individualidade
de Alex - talvez possamos compreender assim – nos revela uma insatisfação com
sua própria vida. Procura se satisfazer fugindo, ao máximo, do padrão que lhe é
apresentado como correto e que lhe cabe adequar-se, apenas. Não aceita. Foge,
luta, se rebeldia, agride a sociedade de todas as formas: faz uso de narcóticos,
rouba, estupra, mata. O que quer Alex? Qual o seu objetivo com essa violência?
Agredir a sociedade, é verdade, mas, dessa forma, acaba sendo co-réu do sistema.
Ele é meio, fim e causa do sistema excludente. Freud[31] nos dá uma visão
interessante sobre a violência que podemos ricamente incluir nesse trabalho:
“Voltar-nos-emos, portanto, para uma questão menos ambiciosa, a que se
refere àquilo que os próprios homens, por seu comportamento, mostram ser o
propósito e a intenção de suas vidas. O que pedem eles da vida e o que desejam
nela realizar? A resposta mal pode provocar dúvidas. Esforçam-se para obter
felicidade; querem ser felizes e assim permanecer. Essa empresa apresenta dois
aspectos: uma meta positiva e uma meta negativa. Por um lado, visa a uma
ausência de sofrimento e de desprazer; por outro, à experiência de intensos
sentimentos de prazer. Em seu sentido mais restrito, a palavra “felicidade” só
se relaciona a esses últimos. Em conformidade a essa dicotomia de objetivos, a
atividade do homem se desenvolve em duas direções, segundo busque realizar – de
modo geral ou mesmo exclusivamente – um ou outro desses objetivos. (...) Somos
feitos de modo a só podermos derivar prazer intenso de um contraste, e muito
pouco de um determinado estado de coisas.”
A violência de Alex parte da
sociedade, ganha reforço individualista pela sua auto-concepção de pessoa na
sociedade e, no final das contas, acaba sendo de utilidade para essa mesma
sociedade. O círculo se fecha.
Tratamento: domesticação O tratamento
consiste em uma lavagem cerebral na qual o delinqüente não consegue cometer os
atos a que foi condicionado a não fazer. Tem ânsias e vômitos, sente dores e
vertigens. Alex não pode mais roubar, estuprar e nem ouvir a nona sinfonia de
Bethoveen. Mesmo que queira. É uma das caricaturas mais expressivas que se tem
notícia de submissão: o sistema venceu, redundantemente.
Alex foi
adaptado à uma situação que, se não tivesse cometido os atos de ultra-violência,
não seria possível a aplicação do novo modo de “reincerção social”. Lembremo-nos
que o “Ministro da Justiça”, em revista ao pátio onde Alex estava preso,
julgou-o petulante, violento e anti-social, portanto apto à nova versão de
tratamento. Aí está o aspecto utilitário, social, planificado, adaptado da
violência individual de Alex.
Não nos passa desapercebido um ciclo de
violência: Alex contra a sociedade e a sociedade contra Alex. Assim, podemos
concluir certa a nossa afirmação anterior de que a violência é funcional. No
caso, há uma identificação dos valores da sociedade contra os atos de Alex e uma
renovação (ou inovação) no mecanismo de “domesticação do criminoso”. Não estamos
ainda discutindo sobre o método ali utilizado, estamos apenas expondo que uma
das conseqüências apontadas dos atos de “ultra-violence” praticados por Alex
redundaram, queira-se ou não, em uma renovação. O sistema de recuperação de
delinqüentes, se modificou por decorrência de Alex. A violência é ambígua: cria
e destrói.
Já havíamos externado uma versão para o significado do título
do filme. “Orang-e” = “Orang-utan”. Isso nos fez remontar a animal e,
conseqüentemente, à domesticável. Essa domesticação é a finalização de um longo
ciclo. É o que M. Foucault chama “a história da racionalização utilitária da
particularidade na contabilidade moral e no controle político”. Essa citação cai
bem na interpretação do filme porque se refere a uma análise da educação.
Àquele tratamento behaviorista, há uma certa ingenuidade na crendice de
ser, o homem, condicionável tal e como os animais. É óbvio que somos passíveis
de condicionamentos, mas não se tem notícias científicas sobre a possibilidade
da propositura de métodos, ditos em psicologia “condicionamento operante”, para
o controle comportamental.
No livro, com o capítulo vinte e um, o
behaviorismo é vitorioso porque Alex se vê reintegrado à sociedade. Ou seja, o
tratamento “funcionou”. No filme, ocorre justamente o contrário. Há uma crítica
ao condicionamento, no caso, inoperante...
Observamos semelhanças, no
aspecto, com o clássico “Admirável Mundo Novo”, de Adous Huxley. Todavia, a
determinação da existência há a posteriori, no caso da “Laranja”.
Conclusão É evidente a dificuldade em se reduzir a violência à uma
estrutura utilitarista. Nem o tentamos. Sempre tivemos olhos postos no filme.
Adverte-se porque é clara a inaceitabilidade da incompreensível, excessiva e sem
finalidade, violência gratuita. É, por isso mesmo, inquietante. Mas é fácil
perceber que a violência acaba sempre por reforçar valores e / ou iniciar uma
nova ordem, seja essa ordem de que esfera for: política, artística, literária,
filosófica ou, como no caso, correcional.
Aqui não se defendeu a
violência. O estudo é analítico, tão somente. É claro que não somos
“indiferentes” à violência, compreendida essa indiferença no seu sentido de
defesa social, onde “relegitimadora do exercício de poder do sistema penal”
(para usarmos as palavras de Zaffaroni[32]), mas é lógico que busquemos
“racionaliza-la” a fim de atrelar o filme à vida real. É bem isto que se
procurou no trabalho: apreciar a violência nos limites do contexto proposto.
A própria “relegitimação” é simplista: nosso tempo é subversivo e o
poder deve controlar, organizar, dividir em seqüências controláveis os agentes
da violência. O problema é limitar os contornos desse lema. Lembremos Maquiavel
quando ressalta os fins e não se importa muito com os meios... É dizer: “Isso
irá diminuir a violência no futuro”, então a sociedade responde: “Ah, tudo bem;
é para a alegria dos nossos filhos”. Todavia, essa ordem estabelecida traz
ínsita a transferência para um futuro (próximo ou não) a segurança da sociedade.
Tira-se hoje para se ter no amanhã. Limita-se hoje para ser abundante amanhã. Há
uma transferência do próprio prazer para “o amanhã”. Só há um problema aqui:
essa “subversão” da sociedade sempre existiu! Não importa a época. Imaginemos:
Na época de Cristo. Na Idade Média. No período da guerra fria. Enfim... A
realidade da sociedade é sempre um mister entre a fantasia e a objetividade em
se alcançar a paz num futuro indeterminado. É uma “realidade” que propugna por
estruturas sociais dominadas, controladas e crê num futuro de paz. Sem essas
violências ou atrocidades, não haveria porque abrir mão de direitos para o
Estado.
Ao buscarmos a paz estaríamos lidando com uma utopia, então?
O modo de ver utópico nos revela, conceitualmente, de que há uma “boa
causa” a ser alcançada e que devemos trabalhar para alcançá-la.
No
filme, a visão é pessimista. O futuro, cujo niilismo se expande com a violência
gratuita, é pior do que o presente. Há uma irresignação impotente, fatalítica,
cataclísmica. É uma posição, à toda prova, pessimista. Há, pois uma contradição
entre a idéia “utópica” de uma “boa causa” e a idéia do filme “pessimista”
quanto ao futuro. Estamos, pois em uma bifurcação: utópicos ou pessimistas?
Nós não perfilamos o pessimismo, já nos adiantamos. Permitimo-nos
procurar soluções para a violência.
Dir-se-á, quem sabe os
apocalípticos, que o homem é naturalmente mal, avesso à paz e irracional. Não
discordamos, mas temos a convicção de que o homem, mesmo hoje chamado de
irracional, um dia, tornar-se-á racional, conhecerá o caminho da paz e procurará
o bem. Ademais, uma provocação: chamar o homem de irracional não é um sinal de
que não somos tão rígidos assim? Esse discurso não é um discurso natimorto? Eis:
somos positivistas, não utópicos.
De qualquer forma, acreditamos que o
caminho para a paz vai de encontro com o que afirma Marshall B. Clinard[33]:
“Studies of such delinquent groups in middle-class communities, suburban
areas, and cities and rural areas of various sizes and types are needed. With
this information, sociologists could move far beyond mere generalities to
specific knowledge of the effect of gangs on members. Undoubtedly it will be
found tha gang can be typed according to differences in structure and function.
Moreover, more detailed research on gangs may help us to integrate some
psychiatric thinking with sociology. For example, gang that commit particularly
violent and brutal offenses may have a member with a disturbed our sadistic
personality who, because of his positions of leadership, exercises undue
influence on other members of the gang, causing them to become involved in
offenses which they not ordinary commit.”
O “inimigo”, hoje, é mais
complexo do que se imagina, mas, nem por isso, invencível. Sabe-se de uma
multiplicidade de opressões, de resistências, de agentes e, mesmo assim, quando
se descobre um fator que gera a violência por detrás desse fator há outros
inúmeros fatores e assim sucessivamente. E o que está por trás acaba por estar
também à frente, acaba por ser um fator desencadeante de violência.
Tomemos, pois, o filme, como uma metáfora da vida que passa
freneticamente exigindo-nos conhecer algo ignorado, mas sejamos conscientes,
pois esse ‘dique’ da ignorância é insuficiente para reter o sonho de um novo
futuro.
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[1] COHEN, Albert
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Ltd., 1956, p. 25. Grifos nossos.
[2] FUDOLI, Rodrigo de Abreu. O
Fenômeno Violento: Fatores Condicionantes e Propostas para Redução de sua
Incidência, Revista do CNPCP, Brasília, 1 (11): 95-112, jan./jun. 1998.
[18]DURKHEIM, Emile.
As Regras do Método Sociológico. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 6a. edição,
1972. p. 58. Grifos nossos.
[19] MAFFESOLI, Michel. Dinâmica da
Violência. São Paulo: RT, Ed. Vértice, 1987, p. 55.
[20] ZAFFARONI,
Eugênio Raúl e PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro –
Parte Geral. São Paulo: RT, 1997, p. 312.
[21] BECKER, Howard S..
Outsiders – Studies in the sociology of desviance, The Free Press, NY, 1991, p.
53. Grifos nossos.
[22] BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e
Crítica do Direito Penal. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2A. ed.,1999, p. 181.
[23] DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia:
O Homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2a.
Reimpressão, 1997, p. 343 e ss.
[24] DIAS, Jorge de Figueiredo e
ANDRADE, Manuel da Costa. Criminologia: O Homem delinqüente e a sociedade
criminógena. Coimbra: Coimbra Editora, 2a. Reimpressão, 1997, p. 304.
[25] O trabalho, no filme, tem também essa função de adestramento, ou
função disciplinar, como o diz Michel Foucault (FOUCAULT, Michel. Microfísica do
Poder. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 14a. ed., 1999, p. 223). Se os jovens não têm
o trabalho, logo, uma das conseqüências pode ser a desagregação social.
[26] Todavia, uma grande distância separa Durkheim de Merton, pois esse
louva-se do caráter sistemático da sua teoria, é dizer que oferece uma
explicação de todo o comportamento desviante em geral, enquanto Durkheim analisa
o comportamento desviante individualmente. Também Merton não entende que o homem
é natural e necessariamente ilimitado e insaciável como Durkheim aponta. Para
Merton todos os estímulos potenciadores da ação humana são socialmente
induzidos.
[27] DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa.
Criminologia: O Homem delinqüente e a sociedade criminógena. Coimbra: Coimbra
Editora, 2a. Reimpressão, 1997, p. 322.
[28] BARATTA, Alessandro.
Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal, Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2A. ed.,1999, p. 62.
[29] DAHRENDORF, Ralf. Out of Utopia: toward a
reconstruction of sociological Analysis, in "The American Journal of Sociology",
LXIV, p. 126.
[30] DIAS, Jorge de Figueiredo e ANDRADE, Manuel da Costa,
op. Cit., possuem visão diferente.
[31] FREUD, Sigmund. O Mal-estar na
civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1997, p. 23 e 24.
[32] ZAFFARONI,
Eugênio Raúl. Em Busca das Penas Perdidas. Rio de Janeiro: Revan, 1999, 4a. ed.
[33] Criminological Research, in Sociology Today, vol. II, p. 528.
Grifos nossos.