A Retificação Judicial da
Denúncia Antes do Recebimento
Warley Belo
Mestre em Ciências Penais / UFMG
Advogado Criminalista
O juízo, antes de se manifestar
pelo recebimento ou não da denúncia, provoca o Ministério Público para aditar a
acusação incluindo, por exemplo, uma causa de aumento da pena. Tal manobra é
juridicamente aceitável?
No nosso sistema processual, o
Estado-acusador manifesta a pretensão ao Estado-juiz. São funções claramente
distintas. A ação penal pública é privativa daquele a quem se atribui acusar
não cabendo colaboração de quem possui o múnus decisório. Assim, o juízo, no
sistema acusatório constitucional, não pode manifestar-se sobre a denúncia
aconselhando expansão[1]. O juiz não deve intervir na pretensão inicial do
Ministério Público, salvo para coibir abusos[2]. Daí o significado do adágio ne
procedat iudex ex officio. É exigência que o juízo mantenha-se equidistante das
partes a fim de preserva-se imparcial.[3]
A imparcialidade[4] é princípio
medular do processo. Quando o julgador prevê acusação mais dilatada e, pior,
arvora-se em promovê-la, existe um explícito “pré-juízo”. O fato de o juiz
aconselhar o órgão acusador a incluir na denúncia causa de aumento de pena, por
exemplo, antes do recebimento viola a garantia da imparcialidade tanto em seu
aspecto objetivo quanto subjetivo[5], além de macular a separação de funções. O
juiz deve se afastar de qualquer atividade acusatória sob pena de se inclinar
subjetivamente à condenação gerando nulidade[6].
Exceção alegada ao incremento
acusatório pelo juízo seria através dos institutos da emendatio libelli ou
mutatio libelli (artigos 383 e 384, CPP) o que, em analogia, permitiria a
manobra criticada. Mas, não é bem assim. A redação desses artigos não
estabelece em qual momento processual seria adequado para a mutação. Bem se vê,
entretanto, situarem-se no Título destinado à sentença sendo de todo congruente
seu processamento somente após a instrução[7] em comezinha interpretação
sistemática. O emprego dos institutos em momento alternativo romperia o due
process of law pela absoluta imprevisibilidade. Há ainda teimosia sistêmica de
exclusividade na iniciativa acusatória à cargo do órgão acusador, inclusive
quando da mutatio libelli[8]. Certo é que a aplicação dos institutos ex
officio, em sede de recebimento e de forma unilateral, é verdadeira trama
teratológica.
A atividade típica das partes não
pode se confundir com a atividade judicante em nenhum momento dentro do sistema
acusatório constitucional. Se o juízo, no recebimento, emite valor sobre a
tipificação para ampliá-la age inquisitivamente e fulmina a imparcialidade e o
devido processo legal de maneira intransponível.
[1] Artigo 129, I da CF e artigo
8º., 1, Pacto de São José da Costa Rica.
[2] Artigo 41, 395 e 396, CPP.
[3] “Além disso, a garantia da
imparcialidade encontra condições de possibilidade de eficácia no sistema
acusatório, mas, para tanto, é necessário que o juiz se abstenha de ampliar
(...) a pretensão acusatória.” JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal,
São Paulo: Saraiva, 2016, p. 898.
[4] Artigos 5º., XXXVII e 95,
caput, CF.
[5] Artigo 254, IV, CPP.
[6] Artigo 564, IV, CPP.
[7] Colecionamos os seguintes
julgados dos Egrégios TRF3 e TRF1: Sentença. Mutatio libelli. Ocorrência antes
do término da instrução. Inadmissibilidade, mesmo que a mudança do delito seja
para declarar a prescrição. Violação ao princípio do devido processo legal. –
“Fere o princípio do devido processo legal a ocorrência de mutatio libelli
antes do término da instrução, pois, ainda que efetuada a mudança do delito
para declarar a prescrição, não pode se sobrepor a tal princípio
constitucional. (TRF 3ª. R – 1ª. T – Rel. Sinval Antunes – RT 742/733). Momento
inadequado para aplicar a emendatio libelli. “Dar ao fato definição jurídica
diversa da que constar da queixa ou da denúncia, o juiz só poderá fazê-lo na
fase do art. 383 do CPP, ou seja, quando da sentença, até porque a errônea
qualificação legal do crime poderá ser corrigida, a qualquer tempo, pelo
Ministério Público, até a prolação da sentença. (...)” (TRF 1ª. R – 4ª. T –
Rel. Eustáquio Silveira – DJU 12031998, p. 124)
[8] “A iniciativa do aditamento
deve ser inteiramente do Ministério Público, não cabendo ao juiz (como
costumavam fazer, a partir de uma míope leitura do antigo artigo 384) “invocar”
o acusador para que aditasse. À luz do sistema acusatório constitucional, não
cabe ao juiz invocar a atuação do MP, sob pena de completa subversão da lógica
processual regida pela inércia do juiz. O juiz é quem sempre deve ser invocado
a atuar, jamais ter ele uma postura ativa de pedir para o promotor acusar e ele
poder julgar... Isso conduz a uma quebra do sistema acusatório e, dependendo da
situação, fulmina com a imparcialidade do julgador, diante do “pré-juízo”.
Logo, a iniciativa do aditamento deve ser do próprio Ministério Público.”
(LOPES JÚNIOR, Aury. Op. Cit., p. 231, 232). Para “realizar qualquer modificação
é imprescindível observar-se os princípios da inércia (e sua vinculação ao
sistema acusatório) (...)”(JUNIOR, Aury Lopes. Direito Processual Penal, São
Paulo: Saraiva, 2016, p. 898). “Se fosse admitida tal hipótese, tratar-se-ia de
um indevido prejulgamento, tornando parcial o juízo, além do que a titularidade
da ação penal é exclusivamente do Ministério Público ou do ofendido, conforme o
caso.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal.
4ª. Ed., São Paulo: RT, 2008, p. 212).