Estudo em livro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais faz paralelo entre o pensamento do filósofo Zygmunt Bauman e o sistema penal brasileiro.
A Pós-Modernidade da Justiça Líquida: um estudo preliminar entre a filosofia de Zygmunt Bauman e o atual caos sistemático da justiça penal
Warley Belo
Advogado Criminalista
Mestre em Ciências Penais – UFMG
Professor de Direito
“Felicidade se
acha é em horinhas de descuido.”
Guimarães Rosa
Resumo:
Zygmunt Bauman (1925-2017) foi um dos principais sociólogos do mundo. Bauman
abordou o tema insegurança, tópico diretamente relevante para a criminologia e
a justiça criminal.
Palavras-chaves:
Direito; Sociologia; Criminologia; Sistema; Justiça Criminal; Zygmunt Bauman;
Crime; Advogado; Advocacia; Insegurança.
Abstract: Zygmunt
Bauman was one of the world’s leading sociologists. Bauman adresseded as theme
the unsafety, a topic that are directly relevant in criminology and criminal
justice.
Key words: Law;
Sociology; Criminology; System; Criminal Justice; Zygmunt Bauman; Crime;
Lawyer; Advocacy; Unsafety.
1.
Introdução 2. A ilusão de um sistema penal atemporal 3. A justiça penal 4. A
advocacia pós-pandemia 5. O sistema jurídico visto por este advogado frente à
filosofia de Bauman 6. A literatura e a visão pós-moderna 7. À guisa de
conclusão 8. Bibliografia referida e consultada
1.
Introdução
A
ideia central de Bauman, em apertada síntese, é a de que nada é feito para
durar e estamos em uma corrida extrema, mas ninguém sabe para quê ou para onde.
Com base na leitura de alguns de seus livros, ousamos traçar paralelo entre a
sua filosofia e o mundo jurídico-penal atual.
O
conceito de liquidez da pós-modernidade assola de maneira literal uma
biblioteca de Direito não só em seu contexto sociológico, mas também realístico.
É uma lei atrás da outra e aqui já podemos perceber uma similaridade entre os
dois universos a serem discutidos.
O
professor de direito, antes de ministrar a sua aula, assim como o advogado,
antes de adentrar à audiência, obrigatoriamente, devem investigar a lei para
ver se na madrugada anterior não houve alguma modificação, sob pena de atuar em
defasagem.
Isso
é o retrato do mundo pós-moderno que explicita Bauman. É algo, até certo ponto,
introjetado no contexto da advocacia brasileira.
Vamos
além, entretanto. Essa vertiginosa produção legiferante alia-se à tecnologia
desenfreada que faz os aparelhos e os programas obsoletos de um ano para o
outro.
Isso nos coloca em um mundo incerto,
rápido e complexo porque o que eu estou defendendo hoje em um tribunal, amanhã
poderá ter uma modificação tal que não poderei mais alegar e terei que
modificar o pensamento no meio de uma jornada processual.
Assim, temos o “direito líquido” - com a
permissão de Bauman para lançar o jargão - que faz, permite e produz uma “justiça
líquida”, em anologia:
“Liquid life is a precarious life, lived under
conditions of constant uncertainty.” (Bauman, 2005)
O absurdo limite do conceito metafórico
de liquidez, entretanto, ainda não foi apreendido em sua inteireza por nós
juristas.
O foco no crime e na lei criminal que
pugnam pela segurança jurídica individual e sua propriedade está, sem sombra de
dúvidas, sob o pálio da precariedade.
Num primeiro momento, a impressão é que
as ideias não serão bem-vindas.
A perspectiva da liquidez é oposta à
perspectiva prevalente jurídica de conceitos “sólidos” como os princípios e as
regras, a classificação e a pirâmide kelseniana colocando a Constituição no
topo do sistema.
Na nossa primeira interpretação, esses
conceitos não possuem guarita na pós-modernidade a não ser em uma interpretação
inocente das relações e eventos sociais imaginados como estáticos. Talvez, uma
das coisas mais difíceis de explicar ao homem moderno é a de que o mundo pode
ser diferente do que ele criou em sua fantasia mental.
Para onde a pós-modernidade nos levará? Será
o fim da estrutura positivista?
2.
A ilusão de um sistema penal atemporal
Sistema,
etimologicamente, significa um conjunto de elementos organizados. É um todo
onde agrupamos várias informações, princípios e regras, para uma melhor
compreensão.
Esse
sistema já partiu do idealismo jurídico tendo como origem Deus, depois a
Natureza, a Religião, a Racionalidade... Com inúmeras influências, tivemos o
forte surgimento das teorias formalistas, normativistas que, até hoje, em
verdade, estamos inseridos. Esse sistema seria correto se a nossa sociedade
fosse fria ou sem história (Miaille) ou a-histórica. É muito mais um esforço de
se imaginar o que deveria ser, do que o quê realmente é.
A
ideia na qual ou você se encaixa ou é considerado inimigo, em maior ou menor
grau (Jakobs), decorre de um sistema no qual exige que você faça
pré-julgamentos porque ele quer identificar a realidade, a verdade e fazê-la
subsumir naquilo que se entende melhor, o mais justo ou o correto trazendo por
base estruturas ditas estáticas. Entretanto, não é preciso ser sociólogo para
compreender que essas estruturas se movem para manter o status quo, qual seja, aquilo que o sistema encontra, momentaneamente,
estabelecido como “verdade”.
Desta
forma, é ilusório pensar que um sistema de justiça penal, ou qualquer tipo de
sistema pré-concebido, seja atemporal, mesmo no mundo jurídico-positivo. Kelsen,
em sua teoria pura do direito, propõe a ideia de uma norma pensada. É uma
concepção idealista e, por assim dizer, moderna. Parece-nos, num primeiro
nível, conflitante com o pensamento pós-moderno. É claro que Kelsen pressupôs a
mutabilidade da Grundnorm, mas
entendemos que essa mutabilidade está próxima da sua inexistência. O que há é o
direito positivo. A norma fundamental é o não-haver. Bauman substituiu essa
comezinha essência à incerteza. É hercúleo trabalho para os filósofos do
Direito.
O
sistema, esse conjunto de fatores, verdades, princípios e razões, constrói,
para nós do Direito, uma imagem de uma pseudo-liberdade dentro de uma
fatalidade sócio-política incontrolável.
É
uma ilusão, tanto numa visão macro, quanto micro, acreditar num sistema de
garantias, numa estabilidade legal, assim como também é uma ilusão qualquer
tipo de certeza que se construa. A certeza é mutável, é líquida, com muito mais
facilidade podemos apontar que o sistema penal também o é. O que era crime
ontem, poderá não sê-lo amanhã e o normal de hoje poderá ser criminalizado.
Parece
evidente, pois que se o sistema pressupõe estabilidade, esse conceito é falho e
ilusório.
Lentamente
vamos construindo teorias causalistas, finalistas, funcionalistas para adequar
à realidade amorfa que nos rodeia já prevendo que esse sistema é temporário e
não com balizas imutáveis, como se pugnava inocentemente na modernidade.
Crimes
que eram ditos vexaminosos para a vítima como o estupro ao se estabelecer o streptus iudicii ao ponto de elencá-lo
como ação de iniciativa privada, passou depois a condicionado à representação,
em determinados pontos, e hoje é completamente público (Lei 13.718/18).
Os
ideais políticos, filosóficos e jurídicos da modernidade eram críveis como
dogmas, cernes fixos e ditos como verdades absolutas. A pós-modernidade impõe
observar que esses valores são irreais e nenhum algoritmo seria capaz de
estabelecer equilíbrio e segurança pretendidos pelos modernos. Uma consequência
já prevista, aliás (Ulrich Beck).
As
concepções da construção de um sistema penal são funcionalistas e dialéticas. Nele são congregados aspectos históricos, políticos,
sociais e econômicos, mas momentâneos e cada um desses universos com indizíveis
variáveis. Ao mesmo tempo, quer consolidar saberes críticos, reflexivos e
transformadores da sociedade através de seu principal instrumento que é a lei.
Esse instrumento, concebido previamente, para regular fatos posteriores a fim
de se estabelecer uma sociedade de paz e equilíbrio.
A ciência jurídica tem, assim e em última análise, um propósito
de descobrir regularidades empíricas... é analogamente postulável que o
objetivo único da ciência é a premeditação, não só aos fatos, mas às
consequências da punição desses fatos, mormente à estrutura da teoria da
prevenção geral negativa da pena, como forma de coerção e controle social.
Para ter esse objetivo, nós juristas,
temos que o Direito deva ser por pressuposto atuante num mundo de estruturas e
relações imutáveis e, portanto, predizível. E isso é uma ilusão romântica
moderna se analisarmos a filosofia de Bauman.
O
mundo é volátil, a segurança é irreal e inalcançável. Não há o sistema moderno,
o sistema é ontológico (Heidegger), imprevisível, portanto no pós-moderno o que
há é o não-sistema. A compreensão da ontologia
é muito para nós.
Qual
a função da justiça penal neste “sistema” se levarmos em consideração esse
pressuposto?
3.
A justiça penal
Como
corolário decorrente do que aponta Bauman, a justiça penal é e sempre será
mutável. Nenhuma novidade até aqui.
Não
se pode predizer como será o amanhã, quando muito temos ideia remota do que foi
o ontem porque o passado não existe. Não é possível remontá-lo. É velhíssima e
ultrapassada a discussão de verdade real quando já sabemos que isso não existe
porque não se sabe nem o que é a verdade e muito menos o que é o real... de
qualquer modo, quando se pugna numa audiência trazer provas, é no sentido de se
remontar o passado. Real? Não, nunca. Um passado reconstruído através de uma
perspectiva do advogado, ou do promotor de justiça, simplesmente para convencer
psicologicamente o juiz de que se está com a melhor razão, que se tem o melhor
direito e, por isso, se deve efetivar a “justiça” nesta vertente.
Se
formos parar para analisar, isso é uma alucinação.
Nós,
advogados, sabemos como é mágico dizer a verdade, a nossa verdade, diga-se,
porque o advogado não tem compromisso com a justiça, tem compromisso com o seu
cliente. Quem não suporta essa verdade, com arroubos de moralismo, deve cerrar
fileira em outras frentes, não tem tino causídico. Esse é um universo do
microcosmo (Foucault) da justiça que talvez permaneça por uma miríade temporal.
Uma exceção ao conceito pós-modernista.
Mas,
não restam dúvidas, a justiça penal é mutável.
Ela
que surgiu como vingança privada, passou pela blutrache, como diriam os alemães, onde se poderia punir descendentes
do criminoso de maneira puramente objetiva, até que o Estado passa a sequestrar
o conflito penal (Zaffaroni). Hoje, entretanto, parece inaugurar passos para
uma justiça restaurativa (Leis 9.714, 9.099, Acordo de Não Persecução Penal, etc.),
que seria, de fato, um retorno ao início com a relevância da palavra da vítima,
de uma justiça negocial.
Contraditoriamente,
nas relações privadas entre os casais, notamos o inverso, qual seja, a mulher
que detinha o poder de escolher processar ou não o marido por uma lesão
corporal, hoje se vê tolhida em seu direito porque o Estado a entende incapaz
dessa escolha substituindo sua vontade pela a dos agentes estatais e
ordenando-lhe o processo (STF, Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.424/DF). Retira
direito da mulher sob a alcunha de protegê-la...
Como
se pode observar, a justiça penal é amorfa, assistemática e com graves
problemas estruturais.
Ao
mesmo tempo em que traz o acordo de não persecução penal para crimes de até 04
anos, em um de seus requisitos (artigo 28-A, Lei 13.964/19), o retira das
relações de violência doméstica (art. 28-A, parágrafo 2º., IV). Ao mesmo tempo
em que dá passos largos para a autocomposição, para alternativas à justiça
punitiva, retributiva, ataca de maneira mortal a ideia restaurativa na celula mater ao não permitir uma
descentralização da justiça penal para outras instâncias extrajurídicas como a
psicologia, psiquiatria, educação etc. Ao mesmo tempo em que pugna pelo
respeito e autonomia das mulheres (Lei Maria da Penha), retira o direito da
mulher escolher ou não processar quem lhe agrediu...
É
um non sense absoluto demonstrando,
assim, que a justiça penal está afeita a movimentos rápidos, pontuais, com uma
vertiginosa proliferação de leis penais, entretanto não dentro de um esforço
inteligente de avanço porque há inúmeros retrocessos escondidos em subterfúgios
de micropoderes (Foucault) ideológicos de menor validade. A sociedade que
deverá trilhar até o fim o “caminho” para se aperceber que não era por ali que
se deveria ter caminhado porque era uma trilha calcada em ideologias rasas.
E
isso é ruim? É errado? Não, claro que não. Em verdade, como aponta Bauman em
sua filosofia, não há um caminho certo e nem há esperança que saibamos tomar um
caminho que seja melhor do que o outro. O que fazemos é criticar os caminhos
tomados, apontando-lhes os erros, os equívocos de pensamento e procurando tomar
prumo a nau do Direito.
As
ciências assim chamadas auxiliares, não de modo depreciativo, evidentemente, ao
Direito Penal como a Criminologia e a Política Criminal ficam subjugadas.
A
par delas não se entenderem em muitos pontos, como as difíceis questões sobre
droga, crimes econômicos, aborto, dosimetria das penas dentre outros relevantes
temas, num contexto geral, as instâncias legislativas penais são mais influenciadas
pela mídia ou movimentos adolescentes de internet
do que por estudiosos dessas áreas.
É
evidente que o arroubo momentâneo de um crime grave contra uma pessoa, um
animal ou a natureza como um todo são fatos de grande comoção e não poderia ser
mesmo diferente. Entretanto, até que ponto se deve submeter toda uma sociedade
à uma lei quando a criação dessa lei nasce de uma ideia emocional?
O
artigo 273, do Código Penal é um exemplo marcante quando a falsificação de
medicamentos foi apenada com reclusão de 10 a 15 anos, sendo que o homicídio
simples é de 6 a 20 anos...
É
claro, evidente, que a falsificação de um medicamento é grave e pode até trazer
a morte de muitas pessoas, mas objetivamente, esse crime não poderia ter sido
apenado com pena maior do que um homicídio doloso quando alguém deliberadamente
se propõe a matar outrem.
Essas
distorções estão por toda parte desde a sua primária formação legislativa,
passando pelo Poder Judiciário e indo desaguar no Poder Executivo quando uma
grande massa carcerária é vilipendiada em seus direitos estabelecidos por esse
mesmo Estado penal.
Como
podemos observar, o mundo pós-moderno não é tão ficcional para nós. Ele apenas
está sendo desnudado e desromantizado.
E
que elementos podemos inferir desses fatos expostos para o futuro da advocacia
nesse mundo líquido?
4.
A advocacia pós-pandemia
A
COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e provoca uma
pandemia, já que redijo este artigo em julho de 2020, que parece ter encerrado o
convívio social desde março neste corrente ano. A par de essa consequência ser
extrema, poderíamos encontrar alguma vantagem deste quadro? Quais as principais
mudanças que haveremos de vivenciar?
Essas
indagações são correntes e, por certo, não temos como averiguar objetivamente
quais as principais mudanças que existirão. Há um ano, ninguém imaginaria que
seríamos obrigados a andar de máscaras pelas ruas, as praias estariam
completamente vazias e os bares fechados.
Como
já é perceptível à inteligência pós-moderna, a incerteza é a única certeza.
De
qualquer modo, podemos apontar algo que sobressalta: o fator tecnologia.
De
um dia para o outro fomos obrigados a sermos um técnico em internet, lives, aulas
remotas, várias redes sociais, fazer consultas com clientes via salas virtuais,
sustentações orais nos tribunais à distância... uma infinidade de atividades
que tínhamos noção de sua existência, mas que, com a paralisação dos serviços
presenciais, houve uma demanda irrefreável. Obrigaram-nos a sermos conhecedores
e utilizadores diários dessas ferramentas.
Acreditamos
que cerca de 5 anos foram antecipados.
Já
estávamos numa fase de digitalização processual nas searas criminais (a
execução penal era a mais adiantada), mas com o evento sanitário, tivemos um
incremento recorde.
De
um modo geral, isso indica o que sempre soubemos: o profissional da advocacia
não poderá, jamais, parar de estudar.
As
exigências, entrementes, distam do estudo das leis.
Agora,
somos obrigados a termos máquinas modernas, celulares, e-tokens e saber operá-los.
Como
é posto sabido, a advocacia criminal é a que mais exige o estudo
interdisciplinar. Não são raros os casos em que nos debruçamos sobre a engenharia,
medicina, psicologia, economia... agora também somos obrigados a estudar e sermos
bons conhecedores (e os professores replicadores) de conhecimentos de
informática e comunicação digital.
E
estudar por conta própria, sozinhos.
Nesse
quadro, o advogado hodierno se vê na contingência de aprender dados analíticos,
logaritmos, marketing digital,
inteligência artificial... a multidisciplinaridade para além do Direito é uma
exigência para o novo advogado pós-moderno. Aprender essas habilidades passou a
ser questão de necessidade num mundo moderno anterior no qual elegia esses
conhecimentos como hobbies. Já se
disse alhures que bastava ao advogado criminal a Bíblia e o Código Penal. Tempo
idos. Hoje o estudo é uma constante e a cada dia que se deixa de estudar, se
torna menos advogado (Couture). O mundo dos especialistas, assim, tende a
acabar. A generalidade retornará à tônica. Não só no universo multidisciplinar
do direito, mas num sentido mais amplo, saindo para outras áreas do
conhecimento como a tecnologia, medicina ou matemática.
Talvez
nasçam daí duas categorias de profissionais do Direito.
Os
operadores do direito que seriam reprodutores da ordem dada, estudantes de
resumos, youtubers jurídicos,
copiadores de modelos, sujeitos à complacência e simples busca do capital para
sobreviver e outra classe, a pensante, que se indigna com a burocracia, exige tratamento
igualitário, não prescinde de liberdade crítica e se utiliza de maneira
preeminente dos novos instrumentos tecnológicos de que dispõe. Não é
simplesmente uma questão de querer opor embargos de declaração. Mas, saber
manejar os instrumentos tecnológicos capazes de fazer com que aqueles embargos
alcancem o seu devido fim.
E
qual das duas classes é a melhor?
Nem
uma e nem outra.
Numa
visão pós-moderna não há o certo ou o errado.
Cada
qual tem seus benefícios e malefícios a partir de um determinado ponto de
vista. Talvez até o melhor partido seja a união das duas em um só
profissional...
Desta
forma, a única certeza neste momento é a de que será necessárias novas
habilidades, estudar novas matérias, ter a capacidade de raciocínio afiado, ser
dinâmico e tudo isso sem estresse e tendo a consciência de que amanhã será tudo
diferente.
Talvez
a questão maior então seja de adaptabilidade (Darwin) à esse novo modelo de
vida pós-moderno de mudanças rápidas e estruturais.
Nada
obstante, como toda a dificuldade da vida, há, por trás, uma oportunidade.
E
a oportunidade surge com o marketing
digital, que é legal e autorizado com limites pelo Código de Ética, assim como
aulas remotas.
De
forma que não ficamos completamente espantados ao sermos consultados em um caso
de falsa acusação de crime ocorrido em outro Estado da federação. Consulta essa
com pauta e objetivo. Assim também como foi enorme prazer proferirmos palestra
com amiga de São Luís do Maranhão, estando em Belo Horizonte. Também fizemos
sustentação oral em tribunal fora do Estado e a cultura dos tribunais é uma
cultura presencial...
Qual
não é outra conclusão se não a de que não interessa onde você está, mas,
fundamentadamente, o que você pode fazer.
O
lugar é líquido, não importa mais. Você pode fazer uma sustentação oral no
TRF-1 de dentro de seu carro em Capitólio, por exemplo. É indiferente. É um
conceito de fast full justice. Não
importa mais o onde, mas o quê você pode resolver.
A
pandemia fez um mundo digital. O processo de aprender, desaprender e aprender
novamente diferente é algo que estamos vivendo e talvez, dessa trilogia, o mais
difícil seja desaprender o que aprendemos que era o certo.
Temos
assim um mundo muito mais simples porque a informação é ilimitada e ao toque de
uma tela por todos, mas, ao mesmo tempo, muito mais complexo, paradoxalmente,
porque todo excesso esconde uma falta e o excesso de informação significa escassez
de raciocínio.
É
dizer, na perspectiva docente, há cada vez mais importância o ato de
transformar muita informação em conhecimento. Conhecimento é a informação
organizada e útil para ser aplicada na prática. De nada adianta você ter um
celular com toda a legislação e jurisprudência brasileira se você não souber
equacioná-la.
Desta
forma, não basta ter acesso às informações. Como antigamente não bastava também
decorar súmulas e textos de lei se você não fosse capaz de fazer o raciocínio
num contexto, ligar a letra da lei aos fatos. Ou seja, não basta saber de leis,
jurisprudência, súmulas se você não sabe raciocinar o Direito. A defesa
criminal nunca foi um panegírico de citações bonitas, de demonstração de
erudição de textos filosóficos ou doutrinadores. Isso até é bonito, mas a
advocacia é, sobretudo, cotejo analítico. Decorar é diferente de ter
criatividade em uma defesa aliando-se ao conhecimento da multidisciplinaridade.
Há
facilidades, mas isso não indica que será mais fácil.
5.
O sistema jurídico visto por este advogado frente à filosofia de Bauman
A
modernidade impôs uma ideia de que a lei mudaria a realidade social.
Entretanto, não é tão simples assim. Agora o sabemos no mundo pós-moderno. A
inocência acabou.
A
adaptação é dificultada porque vivemos num mundo pós-moderno, com problemas do
século XXI, mas nossa educação está fundada na modernidade, em fórmulas
pré-concebidas, rígidas.
Não
há uma solução final para o Direito. E isso, certamente, não é novo. Mas,
observamos que a partir da década de 80, a filosofia passou a recusar teorias
muito longas e complexas porque na modernidade houve o fracasso das utopias
complexas. Na pós-modernidade, há um despertar de um sonho não para a
realidade, mas para um pesadelo. Como na caixa de Pandora, por mais que haja
pesadelos, a esperança sempre estará presente, no fundo da caixa, como querem
os modernos. Os pós-modernos sabem que perder a esperança é o único caminho
para a liberdade. E quem se aventura?
Não
somos mais pessoas que dormem como apontam Bauman (Modernidade e Holocausto), e
de maneira incrivelmente similar Hannah Arendt (A Banalidade do Mal). As
pessoas faziam seus misteres e não se enxergavam como peça de uma grande engrenagem,
viviam e faziam suas atividades normalmente sem uma reflexão moral. Hoje, nós
não podemos mais fazer isso porque estamos despertos para a realidade moral.
Certamente,
a advocacia atravessa um deserto e não um jardim florido.
Mas,
não deve ter sido diferente com os advogados em outras épocas como a do
holocausto, da escravidão, em regimes de exceção, quer dizer, a dificuldade da
advocacia sempre esteve presente e exigiu acuidade, combatividade para a
mudança do mundo, para a evolução social. Só que hoje temos a consciência de
que, sim, continuamos com a combatividade, mas o mundo pós-moderno nos impõe
uma realidade: não há um destino, não sabemos para onde ir porque de fato o
caminho se faz é na caminhada. Não há um ponto final, um ponto de chegada do Direito
ou da lei. Isso nunca existiu e nunca existirá. Estaremos eternamente
condenados à aperfeiçoar o que já sabemos de antemão que é imperfeito e que
produz injustiças e desfuncionalidades sociais.
Na
modernidade, que teve início nos idos de 1500, propugnava-se transformar o
mundo pela ciência. Era alvissareiro objetivo, de propostas concretas de
visualização no horizonte. Foi assim até o século XIX. No século XX,
percebeu-se que isso não existe que não há fórmulas imutáveis. E agora, no
século XXI, estamos tomando consciência disso. Da necessidade de nos refazermos
como profissionais a cada semana, a ter consciência de que as coisas sempre
mudarão e isso é o novo normal. A ideia de imutabilidade tão cara aos
princípios penais é irreal, não há nada concreto porque tudo é líquido, escorre
pelos dedos, é temporário.
Na
modernidade sólida, havia uma ideia de que uma justiça racional calcada em
princípios imutáveis resolveria problemas, traria segurança jurídica e paz
social. O Estado iria garantir isso. É a ideia do garantismo (Ferrajoli). Hoje
se observa que o Estado mais atrapalha do que ajuda, é ineficiente no trato da
execução penal, os altos índices de reincidência e a violência do sistema penal
demonstram que não existe garantia nenhuma do Estado, a não ser nos livros de Direito.
Com isso, o Estado vai cada vez mais terceirizando funções e a ideia de mercado
livre vai tomando conta desde o Direito até o que se entende por amor nos
relacionamentos.
Qualquer
caminho que tomarmos não será mais ou menos ruim. Será um caminho. Você poderá
até imaginar que se fosse para o outro lado, talvez, mais à frente, encontraria
uma paisagem mais arbórea, quem sabe até um oásis onde poderia, finalmente,
refrescar-se. Essa forma de pensar é a forma de pensar moderna, do homem
antigo, do passado. Nesta pós-modernidade, acreditamos na lei, mas sempre à
espreita de uma melhor, sempre procurando aperfeiçoá-la e então nos
desapegaremos da antiga, da arcaica para esse novo modelo que parece melhor
porque mais útil e funcional. Entretanto, já sabemos de antemão que essa
novíssima lei vai durar muito pouco porque ela também é imperfeita e em
brevíssimo espaço de tempo será obsoleta.
Assim,
o direito tradicional, o direito moderno, apoiado na racionalidade positiva de
Kelsen, na sociologia dura de Max Weber, na estrutura filosófica de Beccaria,
que acredita que o Direito tenha uma função social, de produzir “segurança
jurídica” como, por exemplo, na criação de um princípio da legalidade, numa
expectativa de estabilização do sistema, encontra hoje uma autoconsciência de
que o Direito é autônomo, temporário e não sabe para onde está indo. É como um
bombeiro que apaga um incêndio aqui outro acolá, e você o entrega um extintor mais
potente para que ele resolva o problema da queimada definitivamente, mas já tendo
a consciência de que essa queimada acontecerá também nos anos vindouros. Querer
extirpar as queimadas da realidade não existe, é uma quimera. É antinatural. Não
há esperança de isso acontecer e nem sequer que isso aconteça porque a queimada
é também um movimento natural que traz inúmeros benefícios ao bioma. Sua
extirpação completa seria um grave erro, por evidência. Então, somos aqueles
que temos consciência. Ser pós-moderno é ter consciência do transitório, do
impermanente, da insegurança.
6.
A literatura e a visão pós-moderna
A
literatura já se digladiou com o tema e podemos lançar alguns exemplos. Peço
permissão para uma rápida e apertada análise comparativa com alguns clássicos,
já em toque de conclusão.
Os
homens modernos ficam a esperar Godot (Esperando Godot, Brechet). A esperança
dele de encontrar algo, que ele mesmo não sabe que não sabe. Mas, espera.
Inocentemente. Docilmente. Sua vis’ao moderna é no sentido de que tem
esperança.
Em
O Processo (Kafka) é inelutável se rebelar contra a realidade posta. Não adianta
lutar. Joseph K. também era um homem moderno, ele lutava, procurava se
defender. Ele já tinha uma consciência que era inútil, mesmo assim lutava.
Ao
contrário de Meursault (O Estrangeiro, de Albert Camus). Esse, sim,
essencialmente um homem pós-moderno. Um homem do “tanto faz”, qualquer caminho
dará sempre no niilismo (Nietzsche). Essa ideia de ser inútil lutar contra uma
fatalidade dada é uma ideia essencialmente pós-moderna. A ideia do absurdo é
você esperar ou lutar se rebelando contra o teatro do absurdo.
Não
se é livre, não se caminha para lugar nenhum. É uma corrida sem sentido. Talvez
em círculos, como camundongos em rodas. E aí, por evidência, um professor de
biologia seria mais competente para explicar do que um jurista o porquê o
animalzinho continua a correr.
Por
outro lado, a sociedade do espetáculo que estamos inseridos (Vargas Llosa) com
a multiplicação da brutalidade, da coisificação do sujeito, de pessoas sendo
execradas ou mesmo linchadas por boatos de internet
nos traz um cenário distópico nem mesmo imaginado em 1984 (George Orwell) ou em
Admirável mundo Novo (Huxley). Talvez mesmo estejamos mais próximos de O
Alienista (Machado de Assis) e de seu personagem Simão Bacamarte... Esse
personagem ainda teve a consciência de se internar ao final demonstrando assim
toda a sua modernidade. Ao homem pós-moderno, isso pouco importa. O que existe
é uma realidade dada, que mudará.
A pós-modernidade é a consciência de
que ninguém tem conhecimento e nem é capaz de apontar o melhor caminho. Isso
significa que todos perceberam que O Rei Está Nu (Andersen), quer dizer, o
Direito não sabe para onde vai, não tem certeza de suas políticas. É cheio de
dúvidas e pressuposições completamente erradas e estamos apontando isso.
Exatamente
nesse contexto, a passagem literata que mais resume a pós-modernidade talvez esteja
presente em Alice no País das Maravilhas (Carroll): para quem não sabe para onde
vai, qualquer caminho serve.
7.
À guisa de conclusão
Apesar de não sabermos para onde, não
podemos parar. É no caminhar que temos o equilíbrio. Entretanto, o ceticismo é consciente.
Nada do que façamos, como indivíduos ou sociedade, irá trazer uma solução final.
Será sempre algo temporário, um paliativo. E isso é atormentante para o homem
moderno que pensa de maneira racional, classificatória, em soluções estanques.
Esse homem moderno busca a segurança na lei, nos contratos, nas suas relações
amorosas, até em seu medo. Mas, a pós-modernidade lhe infringirá a terrificante
consciência de que a liberdade é não se prender à segurança nenhuma.
O sistema penal pode e deve ser
diferente do que temos discutido que ele seja. A realidade social, por
evidência, não poderá nunca ser apreendida por ideias positivistas. Como temos
construído, na esteira de Bauman, há um “bogus of positivism”. A concepção
moderna de positivismo não é mais habilitada para capturar a necessária
resposta que se espera do Direito. A construção de um novo modelo de Direito
passa necessariamente por um “funcionalismo líquido” visto que ideias estanques
e imutáveis com princípios e regras parecem encontrar resistência significativa
no mundo pós-moderno.
8.
Bibliografia referida e consultada
Bauman,
Zygmont. Modernidade e Holocausto. Tradução Marcus Penchel. São Paulo: Zahar,
2008.
Bauman,
Zygmunt. Identidade. Entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução Carlos Alberto
Medeiros. São Paulo: Zahar, 2005.
Bauman,
Zygmunt. Modernidade Líquida. Tradução Plínio Dentzien, São Paulo: Zahar, 2017.
Beccaria.
Dos Delitos e das Penas. Tradução Ridendo Castigat Mores.
http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/eb000015.pdf, acessado em 29 de
julho de 2020.
Beck,
Ulrich. A Sociedade do Risco. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: 34,
2010.
Brecht,
Samuel. Esperando Godot. Tradução Flávio Rangel. São Paulo: Abril, 1976.
Camus,
Albert. O Estrangeiro. Tradução de Valerie Rumjanek. São Paulo: Record,
Carrol,
Lewis. Alice no País das Maravilhas. Tradução de Monteiro Lobato. SãoPaulo: TT,
2009.
Daems,
Tom; Robert, Luc. Crime and Insecurity in Liquid Modern Times: An Interview
with Zygmunt Bauman. (2007) Contemporary Justice Review. 10(1). p.87-100.
Foucault,
Michel. Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1979.
Freud,
Sigmund. O Mal-estar na Civilização. Tradução de José Octávio de Aguiar. Rio de
Janeiro: Imago, 1997.
Huxley,
Aldous. Admirável Mundo Novo. 5ª. Edição. Tradução de Vidal de Oliveira. Porto
Alegre: Globo, 1979.
Jacobsen,
Michael Hviid; Walklate, Sandra. Liquid Criminology: Doing imaginative
Criminological Research. London: Routledge, 2016.
Kafka,
Franz. O Processo. Tradução Torrieri Guimarães. São Paulo: Abril, 1979.
Machado
de Assis. O Alienista. 14ª. Edição. São Paulo: Ática, 1988.
Miaille,
Michel. Introdução Crítica ao Direito. 2ª. Edição. Tradução de Ana Prata.
Lisboa: Estampa, 1989.
Orwell,
George. 1984, 27ª. Edição. Tradução de Wilson Velloso. São Paulo: Cia Editora
Nacional, 2002.
Santos,
Boaventura Souza. Epistemologies of the South: Justice againt Epistemicide.
London: Routhleadge, 2016.
Zaffaroni
Apuntes sobre El piensamiento penal in el tiempo. Buenos Aires: Hamurabi, 2007.