Conto em homenagem a Edgar Alan Poe ficou em primeiro lugar no certame e segue para leitura dos interessados.
BERENICE
Warley Belo
Ainda não passava da meia-noite. O vento
frio daquele outono atípico intensificava a angústia que emanava da casa. Sob o
muro baixo, havia uma grade com desenhos de flores de crisântemos pintadas todas
de branco, cuja altivez o tempo roubara. Pelo portão da frente da casa, da
mesma altura do muro, e que seguia os mesmos desenhos geométricos, avistava-se
um corredor que partia do passeio externo, cortava o pequeno jardim e terminava
em dois degraus. A grama bem aparada possuía do lado direito uma faixa de
lisiantos que exalavam um cheiro ligeiramente enjoativo. No canto direito do
jardim, junto à parede, duas pequenas estátuas de duendes verdes com gorros roxos
pareciam encarar quem passasse por ali. A varanda, cujo piso vermelho se
contrapunha a duas cadeiras pretas, era ornamentada com uma pequena árvore seca
num vaso que tampava sem sucesso uma das duas janelas da frente da casa. A outra
janela estava entreaberta e, vez por outra, a cortina que a compunha se enchia,
descompassada e suavemente, em um balé rítmico, deixando transparecer a silueta
de uma mulher que observava fixamente a rua.
''Ele não vem mesmo", pensou
Berenice tentando imaginar o que fazia Pedro residente a poucas quadras dali.
Desde os tempos de sua infância em
Bauru, onde seu falecido pai exerceu o mister de policial militar, Berenice
tinha um comportamento fechado. Aversiva socialmente, adquirira hábitos
caseiros compatíveis à sua personalidade. Berenice, em verdade, era uma criatura
tão sensível e insegura a tal ponto de pensar, não raras vezes, em por termo à
sua própria existência. Mudara de ideia por consequência de uma extraordinária
força até pouco tempo desconhecida: a paixão. Deveras, aquela menina
introspectiva desabrochara como uma mulher notoriamente feliz. Todavia, há dois
ou três meses, uma grande ansiedade vinha lhe tomando por inteiro em
decorrência das rupturas do relacionamento por infundadas acusações e agressões
verbais. A tão almejada felicidade que Pedro lhe prometera, agora, parecia
dilacerar-lhe a alma.
Sua mãe, sentada à mesa, insistia em
fazê-la deitar-se visto o adiantar das horas. Entretanto, Berenice não proferia
palavra. Permanecia imóvel, impassível às súplicas. Sua mãe oprimiu-se por tão
grande sentimento de impotência e observava aquela menina, cuja dor moldava sua
áurea de escuridão. Um calafrio percorreu todo o corpo daquela senhora e uma
irreprimível compreensão invadiu-lhe a alma. Recostando-se vagarosamente na
cadeira, como se houvesse altruísta e maternalmente se apropriado da dor de sua
filha, permaneceu exausta, a respiração estertora, os olhos cortantes na palidez
do rosto da menina intensificada pelos cabelos lisos e negros que lhe tampavam parte
da face. Os olhos vítreos pareciam só pupilas. Aquela imagem mórbida, por si
só, para D. Clara, significava o primórdio de sombrios acontecimentos. Uma
sensação de aflitiva de tristeza oprimiu-lhe o espírito porque se percebia que não
era passível de nenhum remédio ou cura. A roda do destino estava inexoravelmente
em movimento. O desfecho avizinhava-se trágico. O abismo da dor sugou por
completo D. Clara e esse sentimento agônico fez-lhe sorrir maliciosamente por
um instante. O pensamento da inelutável ciranda da vida atravessou-lhe o espírito.
Pulsava sua consciência mesmo diante da imagem severa de desolação e de terror.
Ao ser encontrado o cadáver, ficou
evidente tratar-se de um assassínio. O corpo morto estava quase a metade para fora
da cama. Um dos pés descalços tocava o solo. Semicoberto por um roto lençol, as
manchas de sangue se confundiam com os vestígios de mãos que agarraram o corpo
após a morte como num último abraço. O quarto era pequeno e a luz fraca oprimia
ainda mais a devassidão da cena. A polícia já estava no local e tomava
apontamentos com os familiares preocupados com os preparativos do sepultamento.
À mãe de Pedro era difícil entender o
macabro episódio, mas, naquele momento, só lhe vinha a mente dar o último adeus
ao filho querido. Vagarosamente, com uma sensação nauseante, pôs-se a caminhar,
pé ante pé, até a cama. Todo o quarto cheirava a morte, mas não se tratava de
cheiro característico de um matadouro. Na realidade, o odor deletério de ferrugem
produzido pelo sangue se misturava ao cheiro de velas queimadas, já que os
familiares acenderam três e as colocaram no criado mudo fazendo do ambiente um
local asfixiante. O odor era tão insuportável que expulsou os familiares e os
policiais, exceto um, para se verem livres da perniciosa influência mortuária e
para respirarem aliviados. O policial remanescente pôs-se a abrir a janela
enquanto pensava: “Parece crime passional... seis tiros...” Para a mãe de Pedro,
não lhe restava força para fugir do local, seus joelhos tremiam, sentia fortes
vertigens e, em certo momento quando foi retirado o lençol de cima do corpo,
teve de ser amparada pelo detetive para não ruir ao chão: o cadáver ainda tinha
os olhos abertos, petrificados. Num momento de desolação, a mesma pensou ter
visto os olhos do cadáver espasmarem em sua direção como que querendo pedir
ainda socorro pela vida. Afastou-se de costas e com o olhar fixo no filho morto.
Esgueirando-se pelas paredes, cambaleante, virou-se e saiu daquele quarto de mistério,
terror e morte.
Durante
a instrução criminal, o juiz de direito designou a presença de um especialista
psiquiátrico, acompanhado de seu relatório sobre as condições da ré. Tal
procedimento foi atendido e, em uma parte do documento, dizia: "Após estudos
cheguei à conclusão de estarem as condições neuro-psíquicas da ré, com uma
sintomatologia clara de atímicos portadores de psiconeurose emotiva de Duprê. Quanto a causa, ou causas,
poder-se-ia dizer afirmativamente ser a somação de frequentes choques
emocionais."
A
defesa indagou ao médico se teria a paciente praticado o ato delituoso
inteiramente incapaz de entender, ao tempo da ação, o caráter criminoso do ato
ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. O eminente doutor
respondeu: "Tendo em vista ser ela portadora da afecção mencionada, entendendo
ter sido, a referida pessoa, levada à realização do ato criminoso pelo
mecanismo de uma impulsão irrefreável, pois a insuficiência do controle
volitivo e da capacidade de frenação constituem sintomas daquele quadro
mórbido. Nestas condições, ela era inteiramente incapaz de determinar-se, ao
tempo da ação, de acordo com o entendimento sobre o caráter criminoso do seu
ato."
Berenice parecia começar a despertar
de um sonho tenebroso, cujas lembranças tangenciavam uma quimera. Ela já havia
percebido a aurora, todavia não tinha nenhuma compreensão clara, positiva, do
lúgubre período intermediário. Ela sabia ter realizado algum ato, mas qual?
"O que foi que eu fiz, meu Deus?"
D. Clara tinha o hábito de
levantar-se cedo, mesmo porque naquela noite não dormira bem, tendo pesadelos
medonhos. Foi até a sala onde, ainda, se encontrava sua filha praticamente no
mesmo local e com o mesmo olhar lúgubre para o portão. Num ato de solidariedade,
D. Clara, acariciando-lhe a fronte, retirou-lhe a mecha do cabelo que ocultava parte
da face. Foi então patente a mudança da feição daquela mãe. Mudara de carinho
ao mais puro pânico. Sem tirar os olhos de Berenice, afastou-se pálida como um
habitante do túmulo. Seu aspecto era de extremo pavor e tentava, em vão,
comunicar-se com Berenice. Todavia, sua voz embargada grunhia ante a
dificuldade de respirar. D. Clara, então, num lento movimento apontou para as
roupas e depois para o rosto de sua filha: estavam manchados de sangue
coagulado. Berenice nada falou. Apenas deixou cair pesadamente sobre o assoalho
o revólver que segurava em sua mão esquerda.
Agradeço ao presidente da OAB Contagem Dr. Sanders Augusto, amigos e colegas que prestigiaram a premiação do Concurso Direito, Contos e Poesia. Foi realizado pela Comissão de Cultura da OAB/Contagem presidida pela Dra. Marianne Patrícia, a quem muito devo a gentileza e iniciativa do concurso. A festiva ocorreu no dia 6 de dezembro de 2018 e fui agraciado com o 1o. Lugar. Meu conto vencedor, “Berenice”, do gênero terror, é esse acima. Uma explícita homenagem à Edgar Allan Poe. Trata-se de um assassínio em decorrência de abusos de relacionamento motivados pelo narcisismo materno. Só gratidão
