Nesse artigo, faço estudo paralelo ao pernicioso e moderno "ativismo judicial".
Deixo, o artigo, à disposição em meu blog, mas recomendo acesso e cadastro na Revista Fórum que tem excelentes trabalhos publicados e de forma gratuita em seu portal (https://www.forumconhecimento.com.br/conheca/).
Uma curiosidade sobre esse artigo é que ele foi a base de uma palestra que ministrei na Grécia, na Embaixada Brasileira de Atenas, por ocasião de encontro jurídico presidido pelo Doutor Léo da Silva Alves.
Na capital grega - é claro que não perderia a oportunidade como penalista - visitei o local onde Sócrates permaneceu preso por 30 dias até beber cicuta.
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Parte da cena da morte de Sócrates imortalizada pelo pintor francês Jacques-Louis David (1748 – 1825), na tela “A morte de Sócrates”, de 1787. |
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Ministrando a palestra na Embaixada Brasileira em Atenas. |
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No local onde Sócrates permaneceu preso há quase 2.500 anos. |
O Direito e a Política na Condenação de Sócrates
Law and Politics in the judgment of Socrates
Warley
Belo
Presidente
da OAB/MG – Subseção Venda Nova
Mestre
em Ciências Penais - UFMG
Advogado Criminalista
Professor
de Direito Penal
Title of work:
Law and Politics in the judgment of Socrates
Summary:
Historical, textual and interpretative questions creeps in the trial and
execution of the aged philosopher Socrates in 399 BC. The majority of the
jurors chosen by lot voted to convict Socrates of the two charges. After, voted
to determine his punishment, and agreed to a sentence of death to be executed
by Socrates’s drinking a poisonous beverage of hemlock. Were the Athenians
really holding a political trial, and did they not care about Socrates?
Key-words: Law´s
History; Socrates; Atenas; Law and Politic.
Introdução
Um
paradoxo pode ser definido como uma contradição que, neste texto, nada tem a
ver com o paradoxo da filosofia socrática. O problema aqui é decorrente de uma condenação
criminal ter sido consumada no berço da democracia ocidental por opinião política
destoante.
A
hipótese é a de que a condenação de Sócrates foi política e injusta. Observe-se
que Atenas, sendo uma cidade "democrática", levou a julgamento e
morte um ilustre filho por fazer justamente aquilo que a democracia mais
defende: a liberdade de expressão. O risco desse paradoxo só foi possível por
influência política.
A
abordagem é qualitativa, pois traz como alicerce os estudos de historiadores e
juristas sobre o tema do julgamento de Sócrates. A pesquisa é de natureza
básica, pois a preocupação é teórica. O procedimento utilizado é bibliográfico
e de estudo do processo de Sócrates.
O
método é eminentemente dialético, pois é necessário confrontar teses
contextualizando-as em seus momentos históricos próprios. Sua investigação mais
avançada nos leva a um objetivo geral que é responder se, no berço da
democracia, onde a liberdade de expressão era alicerce basilar, um homem foi
condenado por ter posição política distinta.
A
justificativa é a de que o julgamento de Sócrates é atemporal e de alto interessante
histórico. Esse processo só perde para o julgamento de Jesus em termos de fama
e importância histórica no ocidente. O seu estudo é parte obrigatória das
cadeiras de Direito e o debate pode servir de fundo para questionamento acadêmicos
sobre os limites da influência política nas decisões judiciais.
Para
tanto, distinguiremos democracia e liberdade de expressão da Grécia antiga e
hoje, traremos elementos (a maiêutica e o daimon)
que permeavam a filosofia de Sócrates e que acreditamos ter contribuído com o
desfecho, se pesquisará sobre a acusação, a sentença e sua condenação. Após, a
conclusão.
Democracia e Liberdade
de Expressão
Aquilo
que se chamou democrático na Grécia em pouco se assemelha ao que hoje chamamos
Democracia. O sistema, que surge com Clístenes no século IV antes de Cristo, se
restringia ao voto dos homens, maiores de idade, nascidos na cidade-Estado de
Atenas. Esse era o conceito de cidadão. Existiam os indivíduos que propunham,
votavam as leis e julgavam diretamente, mas também existiam os escravos. A
opinião das mulheres, escravos, menores, estrangeiros não interessavam. Hoje, o
voto é universal - para maiores de 18 anos até os 70 anos, obrigatório - sem
critério de sexo, religião ou profissão e representativo. A diferença central,
pois, é a de que não havia igualdade, tal qual a entendemos. Nada obstante,
isso não nos exime de traçarmos algumas digressões entorno do tema e sua
vinculação com o atual momento político no Brasil, mormente com olhos no
ativismo judicial.
Por
outro lado, não há dúvida de que os atenienses gozavam de liberdade de
expressão, aqui entendida como o direito de expor ideias, pensamentos, crenças.
Realmente era um princípio básico da democracia ateniense. Citamos o discurso
de Péricles:
"Nós
(atenienses) somos os únicos, de fato, a considerar que um homem que se
desinteressa da coisa pública não é um cidadão tranqüilo, mas antes um cidadão
inútil; pois a palavra não é, para nós, um obstáculo à ação; ao contrário,
consideramos perigoso passar à ação antes de nos termos suficientemente
esclarecido pelo debate". (apud COMPARATO, 2001, p. 156)
Essa
liberdade de se expressar era uma das características marcantes da democracia
ateniense de forma que é espantoso a condenação de Sócrates. Para
compreendê-la, julgamos necessário o conhecimento de dois conceitos
preliminares: maiêutica e daimon.
Maiêutica
Maiêutica
é um processo de conhecimento construído pelo filósofo que consistia em
fazer-se compreender sem conhecimento e, posteriormente, criar uma concepção
distinta da primária. Sócrates utilizava-se de sua maiêutica para reavaliar as
ideias de seus oponentes, nem sempre de maneira cortês. Através de perguntas
sobre diversos aspectos, fazia seu interlocutor entrar em contradição. Entendemos
que esse método, foi um dos componentes a lhe traduzir inimizades, por isso o
relevamos. Seria como se Sócrates fosse um médico obstetra a retirar a verdade
do interior do ser humano, tirar o conhecimento, como se fosse um parto. A
analogia é também pertinente no contexto do nascimento ser algo simples, mas
que inaugura um mundo completamente complexo e pode ser muito doloroso. Del
Vecchio aduziu:
Discutia
Sócrates de modo peculiar, multiplicando as perguntas e a elas dando respostas
de maravilhosa e concludente simplicidade. Ao contrário dos Sofistas, que tudo
afirmavam saber, declarava ele nada saber. Molestava-os com a sua ironia, e
confundia-os, interrogando-os (ironia - pergunta, interrogação) sobre questões
aparentemente simples, mas, no fundo, muito difíceis. Deste modo,
constrangia-os, indirectamente, a darem-lhe razão. (DEL VECCHIO, 1979, p. 37).
Então,
construía pergunta sobre pergunta até que seu interlocutor ficasse sem saber a
resposta demonstrando assim desconhecer, na verdade, o assunto. O famoso aforismo “só sei que nada sei” decorre exatamente disso.
Sócrates queria demonstrar que ninguém tinha conhecimento, nem mesmo ele. Tanto
que ele não conceituava absolutamente nada. Só refutava os outros. É uma
técnica de se colocar num beco sem saída. Não responde nada e, ainda, destrói o
que foi construído. Entretanto, ele, ao menos, sabia que não tinha conhecimento
sobre os assuntos. Era o máximo do insulto a pretensão de destruir todo o
argumento do interlocutor e se dizer ignorante. É como se dissesse: “Você sabe
menos do eu, mas eu nada sei.” Desta forma, Sócrates demonstrava que o
conhecimento seria intangível, até mesmo para ele (STONE, 2005, p. 61).
Esse
método atraia lhe fez angariar muitos inimigos porque se sentiam humilhados
publicamente e se chocava com o valor ateniense de sabedoria intrínseca ao
homem. Certamente sua atuação social com a maiêutica era desconfortável e
antipática para seus opositores sofistas e influenciou seu julgamento no
aspecto subjetivo.
Daimon
Além
da maiêutica, outro importante elemento a se ter conhecimento para analisar o
contexto social de Sócrates com os sofistas e atenienses em geral, era o
denominado daimon. Tal questão nos
leva a investigar se Sócrates deixou-se levar pela acusação para sair
vitorioso, ao final, da querela.
Para
Hegel (2001, p. 244), Sócrates foi uma personalidade histórica imbuída em
respeitar a sua própria consciência acima de tudo. Essa, que ele denominava daimon. Sua concepção de liberdade
individual, em algum momento, encontrou sólida barreira na visão ateniense de
ser um cidadão livre dos preceitos religiosos. Se não fosse assim, não haveria
o processo e muito menos sua condenação por desrespeito às entidades sagradas.
Esse daimon - que grosseiramente
traduzimos como intuição - acompanhou o filósofo desde tenra idade e era sua
voz interior que lhe orientava. Considerava-a favorável como se fosse seu
protetor e guia. Em alguns momentos, parece que Sócrates interpretava o daimon como seu destino, como mensageiro
dos deuses.
Aqui
um importante ponto porque Sócrates parece aceitar com naturalidade seu daimon condenatório, no ponto, um objeto
de investigação neste artigo. Sócrates sabia que poderia construir uma
sólida argumentação contra as vagas
acusações recebidas promovendo, assim, sua inocência. Entretanto, opta claramente por outro caminho, o
de se silenciar e fazer uma defesa pífia... Talvez, o filósofo tenha
observado que sua eventual
vitória no processo colocaria os atenienses com a razão e ele errado. Assim
sendo, Sócrates teria imposto sua própria consciência em conflito com a ação de
todos os demais e a própria concepção de democracia.
Ele
criou um ambiente de condenação e deu aos atenienses toda razão para
desprezá-lo, mas não o suficiente ou fundamentalmente para condená-lo à morte.
A democracia ateniense, assim, teria cometido um crime e seu móvel era a
intolerância com um pensar político diferente. A armadilha de Sócrates alcançou
posteriormente também seus acusadores: os atenienses se arrependeram e
condenaram Meleto à morte e expulsaram Ânito e Lícon da cidade logo após a
execução de Sócrates. Com sua “derrota” processual, Sócrates atingiu de morte o
conceito de democracia ateniense.
A procura deliberada por uma autocondenação explica
muitas situações desse processo, entrementes não justifica a
desproporcionalidade dos valores envolvidos. É tênue, assim, a linha de
separação entre um Sócrates herói trágico shakespeariano de um Sócrates
ranzinza com uma incompreendida vontade de morrer.
A Acusação
A
historiografia do julgamento de Sócrates encontra-se narrada em 4 diálogos
produzidos por Platão: Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton
e Fédon. O relato do julgamento feito por Platão (428-348 a.C.) - em
a Apologia de Sócrates - é tido por I. F. STONE (2005) como bastante fiel aos
fatos.
Ele narra que no ano de 399 antes de Cristo, em Atenas
(Grécia), Sócrates, considerado o pai da filosofia moderna, um dos maiores
pensadores da História e o homem mais inteligente do mundo pelo Oráculo de
Delfos, era sentenciado à morte. Deveria beber cicuta.
Diante
do tribunal popular, Sócrates foi acusado pelo poeta Meleto, pelo rico curtidor
de peles, influente orador e político Anitos, e por Lícon, personagem
desconhecido. A acusação era de conspirar contra o Estado por “não conhecer os
mesmos deuses da cidade, de introduzir novas divindades e de corromper a
juventude” (PLATÃO, 2019, p. 26). Naquela época, qualquer um poderia apresentar
uma ação criminal, disposição assim moldada desde a época de Sólon, um século
antes. É neste sentido que comenta Platão (2019, p. 28): "As acusações
consistem mais ou menos no seguinte: Sócrates é um malfeitor por corromper a
mocidade e não crer nos deuses do Estado, mas em outros seres
espirituais".
Em
cima de tais acusações, o jornalista estadunidense I. F. STONE discorre:
As
duas acusações específicas são igualmente vagas. Não são mencionados atos
concretos contra a cidade, mas os ensinamentos e as convicções de Sócrates. Nem
na acusação nem no julgamento foi mencionado nenhum ato concreto de sacrilégio
ou desrespeito aos deuses da cidade, nem nenhum atentado ou conspiração contra
as instituições democráticas atenienses. Sócrates foi levado a julgamento por
causa do que ele disse, e não por nada que tivesse feito. (2005,
p. 236)
Sócrates
nunca escreveu uma linha porque dizia que as suas ideias não eram permanentes.
Suas palavras, entretanto, se eternizaram pelos trabalhos de Platão, seu
principal discípulo, e Xenofonte, um amigo do filósofo. Por isso mesmo, a
interpretação do que teria defendido Sócrates encontra certa dificuldade neste
contexto.
Parece-nos
inconteste, todavia, que Sócrates defendia o governo de um só: um sábio. Mas,
Sócrates, de Xenofonte, propõe reis dentro dos limites das leis; enquanto
Sócrates, de Platão, não admitia nenhuma limitação ao rei-filósofo (STONE,
2005, p. 16). De qualquer modo, achava ridícula a ideia do voto.
Seu
pensamento, em linhas gerais, era que não titubeávamos a procurar um sapateiro,
um médico ou um costureiro para exercerem tais misteres profissionais porque
eles se prepararam para tais fins. Entretanto, para governar uma cidade,
escolhemos na sorte pelo voto. O correto seria, analogamente, procurar alguém
preparado adrede para exercer a nobre função. Essa posição parecia mais como
uma volta à monarquia o que deveria ser considerado muito excêntrico e
provocativo. Seria como se defendesse hoje a monarquia nos Estados Unidos
(STONE, 2005, p. 31). Sócrates rebatia afirmando não defender tal sistema de
governo e sim uma nova forma de governo de um só indivíduo, de um perito em
governar e não escolhido aleatoriamente. Uma visão incômoda para o equilíbrio
da cidade naquele momento histórico ainda mais quando dois de seus discípulos
incorriam pela busca do poder: Alcibíades e Crítias.
A Sentença
A
organização judiciária de Atenas iniciou-se com Sólon e foi seguida por Drácon, que redigiu um código de leis no final do século
VII, a.C..
Admite-se pensar que até o
século V a.C. tenha se mantido muitas dessas leis (MOSSÉ, 1989, p. 100). Com
efeito, no julgamento de Sócrates se utilizou do tribunal popular (Helieia)
formado por seis mil juízes sorteados ao acaso anualmente. O número de cidadãos
convocados para julgar era variável de 201 a 2501 de acordo com a importância
do caso. O número era sempre ímpar para se ter certeza de que
haveria maioria. Com o fim dos
debates, marcados por um relógio d´água, os juízes deveriam depositar uma pedra
em uma das urnas em frente à tribuna. No julgamento de um crime em Atenas, o
júri votava duas vezes: para condenar ou absolver e depois, no caso de
condenação, para aplicar a pena.
Sócrates
foi considerado culpado por 280 dos 501 jurados escolhidos por sorteio entre os
cidadãos de Atenas. A margem de 30 votos para mudar o veredicto deixou até
mesmo Sócrates surpreso (STONE, 2005, p. 229), pois tentara demonstrar que ele
tinha razão e a democracia ateniense estava errada (STONE, 2005, p. 236). Se
ele fosse absolvido, Atenas sairia fortalecida porque o voto teria escolhido o
caminho justo, correto e Sócrates pretendia provar exatamente o contrário, ou
seja, que o voto, a democracia, essa forma de administrar não era a melhor...
Mesmo
estando diante dos juízes e dos ouvintes do seu julgamento, Sócrates, com um
tom de ironia, desconhece as acusações e não pede sua absolvição e tampouco sua condenação. Para ele, mesmo se as acusações
fossem verdadeiras, não haveria por que mudar sua atuação.
A Condenação
Como
era de praxe, após o veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar
sua pena. Meleto havia pedido a pena de morte. Dentro do quadro da acusação de
somenos gravidade, dos 221 votos absolvendo-o, parece - aos historiadores - que
o condenado não teria obstáculos em transmutar a pena máxima em qualquer outra
punição. A Assembleia dividida se sentiria até mais confortável por uma
condenação sem grandes consequências. Seus amigos sugeriram a pena de multa.
Mas, Sócrates respondeu que deveria ser recompensado com alimentação gratuita
pelo resto de sua vida no Pritaneu (local nobre onde se recebiam os vencedores
olímpicos e estavam fixadas as leis de Sólon). Na segunda parte da Apologia,
Platão descreve esse momento:
"Ora, o
homem (Meleto) propõe a sentença de morte. Bem; e eu, que pena vos hei de
propor em troca, Atenienses? A que mereço, não é claro? Qual será? Que sentença
corporal ou pecuniária mereço, eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu
que, negligenciando o de que cuida toda gente - riquezas, negócios, postos
militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na
política, coisas em que me considero de fato por demais pundonoroso para me
imiscuir sem me perder -, não me dediquei àquilo a que, se me dedicasse,
haveria de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei à
procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que
declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar
menos do que é seu do que de si próprio, para a ser quanto melhor e mais
sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo, adotado o mesmo
princípio nos demais cuidados? Que sentença mereço por ser assim? Algo de bom,
Atenienses, se há de ser a sentença verdadeiramente proporcionada ao mérito;
não só, mas algo de bom adequado a minha pessoa. O que é adequado a um
benfeitor pobre, que precisa de lazeres para vos viver exortando? Nada tão
adequado a tal homem, Atenienses, como ser sustentado no Pritaneu; muito mais
do que a um de vós que haja vencido, nas Olimpíadas, uma corrida de cavalos, de
bigas ou quadrigas. Esse vos dá a impressão da felicidade; eu, a felicidade;
ele não carece de sustento, eu careço. Se, pois, cumpre que sentenciam com
justiça e em proporção ao mérito, eu proponho o sustento no
Pritaneu." (PLATÃO,2019, p. 25)
Evidentemente
que tal pretensão soou provocativa colocando os juízes em difícil escolha de
acatar a jocosa proposta de Sócrates ou o radical pedido de Meleto. Sócrates
sacramentava, assim, sua última ironia em vida.
É
claro que ele era inteligente o suficiente para compreender as consequências de
seu atuar. O fez consciente. Impossível para a Assembleia voltar atrás, desfazer
a condenação, inocentando o acusado. Do mesmo modo para Sócrates, que não renunciaria
a sua consciência.
A Execução
Críton
e outros amigos de Sócrates tentaram ainda, em vão, convencê-lo a fugir.
O
hercúleo esforço, entretanto, era natimorto: para quem se recusara a se
defender de maneira eficiente e permutar a pena de morte pela pena de multa,
perquirir sobre uma vexaminosa fuga era realmente longe de qualquer paragem.
Sócrates pretendia, assim, obedecer às leis e à democrática cidade, mesmo entendendo-se
inocente. Ponto esse relevante para reforçar a concepção de seu daimon: a vitória eterna e contumaz lhe
custaria a vida...
A
sentença não foi imediatamente aplicada, porque era proibido aplicar execução capital
durante o período de comemoração da luta vencida por Teseu contra Minotauro
(MOSSÉ, 1989, p. 126). Desta forma, demorou um mês até que chegou a ordem para
beber a cicuta que lhe foi entregue em uma taça por um escravo. Junto dele
estava Xantipa, sua esposa, e o mais jovem de seus filhos, ainda criança.
Xantipa se pôs a chorar e a gritar e Sócrates pediu aos escravos para levá-la
para casa. Bebeu o veneno sem perder a calma e suas últimas palavras foram a
Críton: “Críton, devemos um galo para Asclépio, não se esqueça de pagá-lo.”
(PLATÃO, Fédon, 2019, p. 68).
Como
se observa, Sócrates não desrespeitou as leis, nem o funcionamento da justiça e
se submeteu ao voto e à democracia. Claro que havia as
especificidades do contexto
sócio-político. Fosse outra época, não teria ocorrido a sua condenação em
Atenas, tanto que Platão continuou suas aulas sem ser perturbado. De qualquer
maneira, parece claro também aos estudiosos que Sócrates não lançou mão de
todos os argumentos possíveis, facilmente apreensíveis para ele. Esses
elementos nos levam a crer que ele aceito e provocado a sua condenação como
prova da ineficiência da democracia e sua razão em assim pensar.
O Contexto
Sócio-Político
O
componente político no contexto histórico foi essencial. E aqui não tem
absolutamente nada a ver com o daimon
socrático.
Devemos
rememorar que havia acabado de acontecer a guerra do Peloponeso que durara
longos 25 anos, bem mais do que pensava Péricles, onde Atenas havia sido
derrotada por Esparta em batalhas sangrentas. Atenas perdera ¼ de sua população
(cerca de 10 mil homens). Além disso, sofria com uma epidemia de “peste”, ficara completamente
arruinada financeiramente, seus vinhedos foram destruídos, oliveiras queimadas,
rebanhos dizimados. Os camponeses representavam 5/6 do corpo cívico (MOSSÉ,
1989, p. 25) e eles estavam em absoluta penúria. Tais fatos
afugentavam os comerciantes e paralisavam a atividade mineira. Estátuas de prata e de ouro
foram fundidas para se obter o metal precioso. Houve aumento de impostos. Uma
guerra civil iniciou-se após a derrota para Esparta numa verdadeira caça a quem
conspirasse contra a democracia ateniense. Dentro desse contexto trágico de pós-guerra,
Sócrates desvalorizava a democracia ateniense e elogiava a política espartana.
Conclusão
Conclui-se
que a hipótese foi confirmada. O julgamento de Sócrates teve fundo político com
sua própria contribuição (maiêutica, daimon)
que evitou fazer uma defesa consistente. Foi um processo político, por causas
políticas, com um julgamento e condenação políticos.
O
fim - limitar politicamente Sócrates - estava acima dos meios, tanto que
Sócrates foi condenado à multa, não aquiescendo em sua condenação e
rebelando-se contra seu papel de “politicamente incorreto”, foi condenado à
morte. Inevitável dentro de um composto político onde o objetivo (fim) era
silenciá-lo. E isso seria inadmissível conceitualmente num regime democrático.
A
morte de Sócrates confirmou que a democracia ateniense não admitia críticas.
Essa questão nos remete à uma atual indagação política: executando os
intolerantes, erradicamos a intolerância?
I.
F. Stone assim conclui:
Quando
Atenas processou Sócrates, a cidade se traiu. O paradoxo, a vergonha do julgamento
de Sócrates é o fato de uma cidade famosa pela liberdade de expressão nela
existente processar um filósofo que não era acusado de outra coisa senão
exercer o direito de se exprimir livremente. (2006,
p. 235)
O
paradoxo da condenação de Sócrates é que ele foi condenado por algo que disse
(não por algo que fez) numa cidade que se orgulhava de dizer que todos eram
livres para expor suas ideias. A liberdade de se expressar era uma das
características marcantes, senão central, da democracia ateniense. Observe-se
que Atenas, sendo uma cidade "democrática", levou a julgamento e
morte um ilustre filho por fazer justamente aquilo que a democracia mais
defende: essa liberdade de expressão. Nenhuma lei foi desrespeitada e o
julgamento foi político, num momento em que eram eminentemente assim as
atividades judiciais. Sócrates não se utilizou dessas argumentações basilares
em sua defesa - o que lhe seria facilmente apreensível - trazendo uma convicção
de que Sócrates tenha pagado
com a sua própria vida a defesa de seus ideais políticos.
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