sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Crime e Liberdade de Expressão: Proposta sobre Limites

 


 Se está confortável em defender sua pauta política, você não é mais o oprimido. Você integra o sistema.
 

Warley Belo

Advogado Criminalista

Mestre em Ciências Penais / UFMG

Presidente da OAB/MG – Subseção Venda Nova

 

 

Resumo: O tema liberdade de expressão é abordado, destacando a necessidade de estabelecer critérios objetivos. Analisa-se fatores questionando o "politicamente correto" como hermenêutica subjetivista criminal, independente do caráter polêmico das palavras. Examina-se o discurso de ódio nas redes sociais, defendendo a importância de combater ideias com ideias e discutindo parâmetros doutrinários e jurisprudenciais acerca da tipicidade dos crimes contra a honra e da injúria racial. Alerta-se sobre a liquidez do "politicamente correto" e o chilling effect. Conclui-se que a liberdade de expressão não é absoluta e deve ser exercida dentro de limites, mas esses limites devem ser objetivos, como a não incitação direta à violência e crimes contra a honra.

 

Palavras-chave: Liberdade de Expressão; Limites; Crime; Politicamente Correto; Discurso de Ódio; Redes Sociais; Crimes contra a Honra; Contexto Jurídico; Tolerância; Teoria do Dano Iminente; Injúria; Injúria racial.

 

Introdução

 

Explorar o tema da "liberdade de expressão" é desafiador, pois além de sua complexidade, há um observado componente político onde vozes em conflito buscam silenciar os seus oponentes, gerando equívocos, abusos e confusões. Desde o início, pois torna-se crucial uma advertência: a defesa da liberdade de expressão não implica, necessariamente, apoio ao conteúdo específico do discurso em foco. Por exemplo, respaldar a "marcha da maconha" não pressupõe a militância na legalização da maconha. A promoção da liberdade de manifestação alheia é, assim, uma causa totalmente independente do objeto da manifestação.

No âmbito jurídico, a atuação de um advogado ao defender alguém que tenha cometido um crime proferindo, por exemplo, ofensas, não o torna automaticamente cúmplice ou concordante com o teor dessas palavras. Infelizmente, essa observação se torna necessária diante do limitado cenário cultural.

A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, inciso IV, assegura o pleno direito à liberdade de expressão, destacando a proibição do anonimato. Paralelamente e no mesmo sentido, o Pacto de São José da Costa Rica, em seu artigo 13, estabelece a liberdade de expressão e pensamento. Contudo, esse direito também tem seus limites, não se trata de um direito absoluto. Quais seriam os limites para se expressar e defender ideias?

 

Politicamente correto

 

A liberdade de expressão defende a crítica e a discordância independente das palavras serem polêmicas, nojentas, politicamente incorretas, desagradáveis, atrevidas, chocantes ou insuportáveis porque – senão – não haveria a necessidade do princípio e nem se desenvolveria a sociedade. Ideias que ontem eram reprovadas, mudaram exatamente por causa da liberdade de expressão[1].

Ideias para reformular os valores sociais possuem enorme dificuldade de surgirem sem a liberdade de expressão porque via de regra são “politicamente incorretas” em algum grau de ingerência com o establishment. O tempo é outro e o “politicamente incorreto” também. Por isso, passeatas hoje defendendo o aborto e a legalização da maconha[2] – por exemplo - são consideradas legais pela liberdade de expressão mesmo o objeto sendo crime. O grande problema ocorre a partir do instante em que as pessoas aprovam a liberdade de manifestação para as suas pautas políticas, mas reprimem o direito de manifestações de pautas contrárias às suas (viés de grupo)[3].

A distópica ficção 1984 de George Orwell[4] é exemplo preciso quando da atuação do “Ministério da Verdade”, órgão responsável por tudo o que era publicado, seguindo a lógica de que o partido representava o bem. Quando alguém questionava as “verdades” do partido, era processado por “crimideia”, ou seja, o crime de ideia. A “Polícia do Pensamento” deveria reprimir o indivíduo que ousou pensar fora do que lhe era permitido pelo Grande Irmão. Relembre-se que o Estado chegou ao absurdo de pretender controlar os sentimentos das pessoas tendo torturado os protagonistas até a final confissão recíproca de relacionamento amoroso.

Outro grave problema do “politicamente correto do momento” imposto é o que os americanos chamam de chilling effect ("efeito inibidor" ou "efeito amedrontador") que seria algo como a autocensura de falar o que se pensa por medo de ser processado[5]. Isso limita a democracia que é feita de embates e discussões constantes. Você só permite uma parte falar, a outra é silenciada.

Assim, a ideia central do tema é a de que o combate a ideias deve ser com ideias e não com a censura, com indenização e/ou prisão.

A liberdade de expressão, como qualquer outro direito - exceto a proibição da tortura e da escravidão - não é e nem pode ser um direito absoluto, devendo ser exercido dentro de certos limites. Os limites da liberdade de expressão estariam em dois pilares: a) num aspecto pessoal – na agressão à honra ou à dignidade da pessoa e b) no aspecto coletivo – na incitação direta à violência.

 

Discurso de ódio nas redes sociais

 

Não se deve condenar todos os pensamentos “politicamente incorretos” nas redes sociais. Todavia, não é assim que parece caminhar a sociedade. O discurso é cada vez mais punitivista[6] e expansivo do Direito Penal[7]. Mas, antes de criar novos crimes e aumentar as penas dos crimes – novamente - devemos ser racionais, evitar excessos e garantir a liberdade. Restrições excessivas podem prejudicar o livre fluxo de informações e a diversidade de opiniões comprometendo a democracia.

Portanto, é preciso ter cuidado com as generalizações, a despeito de algumas ideias serem moral e socialmente reprováveis para alguns, como por exemplo o aborto, não se pode afastar a liberdade de expressão por razões extrajurídicas fundadas exclusivamente na moralidade. É clara a importância de reconhecer a influência dos valores éticos e morais na criação e interpretação da lei, assunto esse de longa discussão na filosofia do direito (onde se destacam Kelsen[8] e Jellineck[9], mas aqui não vem ao caso). O desafio prático está em equilibrar o respeito à liberdade de expressão com a proteção contra discursos que possam incitar danos imediatos ou violar direitos fundamentais.

Nesse contexto, o combate a qualquer discurso (de ódio ou não) deve ser antecipado com o bom discurso, com a criação de um ambiente hostil às ideias perniciosas.

É para essas opiniões e manifestações polêmicas, desagradáveis, ofensivas que o princípio se torna importante. Para o discurso “politicamente correto” não há nenhuma necessidade de se defender a liberdade de expressão. Quem está confortável em defender sua pauta política, não é mais o oprimido. Se a liberdade de expressão tem alguma valia é exatamente no ponto de ultrapassar e provocar as convicções estabelecidas como verdade, mesmo que traga desconforto ou repugnância. Desse mote, o discurso de ódio que merece proibição é aquele que incita diretamente à violência social ou viola direitos individuais, indo além da simples expectativa moral. Em situações outras, é infinitamente melhor engendrar uma contra-argumentação. Do contrário, a sanção terá um caráter moral, subjetivo e isso significa insegurança jurídica.

Portanto, na prática, se alguém expressar a opinião de “odeio os Caios, e o mundo seria melhor sem eles”, embora seja uma opinião ofensiva, é lícita dentro do escopo da teoria do dano iminente, conforme analisaremos. Trata-se apenas de uma opinião. No entanto, se alguém incitar à violência, como na declaração "vamos matar os Caios", essa verbalização seria proibida, representando uma restrição legítima ao direito de expressão.

 

Honra pessoal

 

A legislação brasileira prevê punições para crimes contra a honra, como calúnia, difamação e injúria, no Código Penal, além da Lei dos Crimes Raciais (Lei 7.716/1989) que estabelece penalidades para atos resultantes de preconceito de raça ou cor, tudo com base constitucional (artigo 5º., XLI, XLII, CF).

A Lei nº 14.532, de 11 de janeiro de 2023, modificou a Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 (Lei do Crime Racial), passando a vigorar a injúria racial como crime de racismo[10]. Com isso, a pena tornou-se mais severa com reclusão de dois a cinco anos, além de multa, não cabe mais fiança e o crime é imprescritível. Essa mesma novatio legis incluiu na injúria o chamado “racismo recreativo[11].

O racismo é limitar o direito, qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida[12].

Quem dirigir a terceiro palavras ofensivas referentes à religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência responderá por injúria qualificada (art. 140, § 3º, CP), cuja pena é de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa.

Também os Estatutos da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010) e da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) complementam a legislação ao protegerem grupos minoritários contra manifestações discriminatórias confundidas erroneamente com liberdade de expressão.

Essas limitações à chamada liberdade de expressão existem se a intenção da pessoa não é expor uma ideia, mas agredir a honra de outra. O dolo, como dizemos, é atingir a honra da pessoa, não é de corrigir, de brincar, de criticar ou de chamar atenção. O elemento subjetivo é sempre determinante. A intenção de prejudicar conscientemente a reputação de alguém não se confunde meras críticas ou opiniões legítimas, como a crítica de um patrão sobre o trabalho do empregado ou do jornalista sobre um livro lançado. Precisa observar o propósito do emissor[13].

Da mesma forma, quando há discussão acalorada nos grupos de whatsapp ou facebook há ausência desse dolo porque exige-se a intenção dolosa de ofender a honra alheia, consubstanciada, respectivamente, no animus caluniandi, diffamandi e injuriandi, o qual não resta evidenciado quando proferidas no momento de discussão porque sem controle dirigido à honra alheia. A intenção é de desabafar, de vencer a contenda, de extravasar a raiva[14].

O objetivo de quem profere tais impropérios é de colocar a raiva para fora, exteriorizar um descontentamento. Há uma finalidade de “ganhar” a discussão, fazer “paralisar” o outro no que faz, de se sentir superior... mas nunca de “querer” manchar a honra alheia. É um fato limitado, de momento, de objetivo interno na contenda e não externos objetivos fora daquela discussão pontual. Há remansosa doutrina[15] e jurisprudência[16] nesse sentido.

É essencial, pois, compreender o contexto[17] e não se restringir ao seu conteúdo abstrato ou a uma análise meramente semântico-formal.

Encontrar um equilíbrio entre proteger a reputação, definir o que é crime, permitir críticas legítimas e combater o racismo é desafiador como se observa.

 

No contexto geral

 

A princípio, não existe um direito amplo, abstrato, genérico de não ser ofendido por uma opinião abstrata ou uma manifestação genérica de pensamento. Palavras atingem o ego, indignam, opiniões desagradam e provocam sentimentos de repulsa e senso de errado. Mas essa reação psicológica, por si só, não constitui justificativa para a restrição da liberdade de expressão.

O limite do que pode ou não ser expresso num contexto público possui duas teorias. A) Teoria da Tendência Negativa: A restrição à liberdade de expressão é justificada quando há uma tendência clara de que o discurso levará a consequências prejudiciais no futuro. Antecipa o potencial de violência ou dano decorrente do discurso e proíbe-o como medida preventiva, visando evitar danos. B) Teoria do Dano Iminente: A proibição do discurso é justificada apenas quando há uma ameaça imediata e concreta de violência que não pode ser evitada por meio do contraponto de discursos. Centra-se na iminência do dano, exigindo que a ameaça de violência seja imediata e não passível de ser neutralizada por meio da expressão de pontos de vista contrários.

Essas teorias delineiam perspectivas distintas sobre quando e como a restrição à liberdade de expressão pode ser justificada em nome da prevenção de danos à sociedade. A ideologia punitivista, expansiva do Direito Penal defende a teoria da tendência negativa.

Há uma diferença entre “eu acho que é preciso matar todos os Mévios” e “vamos matar os Mévios agora”. No primeiro caso, é uma ideia abstrata, no segundo, concreta. Acreditamos que se o dano não é iminente, o discurso deve ser combatido com discurso, educação, orientação, criação de ambiente hostil à ideia, debate e não com punição estatal (civil ou criminal). De outra forma, qualquer discurso pode ser facilmente conectado a um dano futuro imaginário. O que se defende é um limite claro à liberdade de expressão que seria a iminência da violência, portanto, somos pela teoria do dano iminente.

Como se observa, encontrar o equilíbrio certo entre a proteção da liberdade de expressão e a prevenção de danos é também um desafio contínuo nas sociedades democráticas, mas é o preço que se paga para se ter a liberdade de expressar seus pensamentos sem a repressão estatal.

 

Conclusão

 

Não há dúvidas que o tema liberdade de expressão é uma questão muito polêmica, difícil e longe de consenso numa sociedade tão polarizada como a brasileira onde um grupo quer silenciar o outro e se acha totalmente com a razão moral. Mas, sem uma legislação explícita sobre os limites do que é ou não aceitável, cai-se no perigoso terreno da interpretação subjetivista.

O rigor da lei deveria, assim, ser dirigido de forma mais objetiva ao discurso de ódio extremo[18], entendendo-se por aquele que incita diretamente à violência ou à lesão individualizada de alguém. Não podemos cair na falácia de criminalizar o discurso politicamente incorreto aos preceitos líquidos[19] de hoje, mesmo que seja um discurso desagradável ou inapropriado.

 

Bibliografia

 

ANDRADE, André. Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2020.

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 2: Parte Especial: Dos Crimes Contra a Pessoa. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

DÍEZ RIPOLLÉS, José Luis. "A racionalidade das leis penais. Teoria e prática." Tradução: Luiz Regis Prado. São Paulo: RT, 2005.

DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade. Coleção Justiça e Direito. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

GLASSNER, Barry. "The Culture of Fear." New York: Basic Books, 2009.

JELLINECK, Georg. Teoría General del Estado. Tradução: Fernando de los Rios. Buenos Aires: Albatrós, 1954.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: J. Baptista Machado. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984.

MAULTASCH, Gustavo. Contra Toda Censura. São Paulo: Avis Rara, 2022.

MIRABETE, Julio Fabrini. Código Penal Interpretado. 6. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007.

MOREIRA, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.

ORWELL, George. 1984. Tradução: Wilson Velloso. 27. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.

SILVA SANCHEZ, Jesús-María. La Expansión del Direito Penal: Aspectos de la Política Criminal en las Sociedades Postindustriales. 2. ed. Madrid: Civitas, 2001.

 

Artigos em Periódicos:

 

DEL ROSAL BLASCO, Bernardo. "¿Hacia el Derecho Penal de la postmodernidad?" Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2009, núm. 11-08.


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[1] Exemplos: 1. Casamento entre pessoas do mesmo sexo; 2. Direito de voto das mulheres; 3. Despenalização da homossexualidade; 4. Lei da Ficha Limpa; 5. Direitos dos trabalhadores; 6. Proteção ambiental; 7. Direitos dos consumidores; 8. Leis antirracismo; 9. Leis de combate à discriminação de gênero; 10. Leis de proteção à infância e adolescência; 11. Descriminalização do jogo de capoeira.

[2] ADPF 187 - Marcha da Maconha.

[3] Como se expressa  Maultasch: “É fácil tolerar a censura quando ela atinge os nossos adversários, ou quando atinge pessoas que tenham opiniões claramente vis e repugnantes; o problema é que isso não apenas cria precedentes, como nos acostuma com o papel do Estado censor, com o papel da burocracia definir o que pode e não pode ser dito; e é assim que, aos poucos, cada vez mais setores da sociedade passam a aprovar, ou pelo menos a aceitar resignadamente, a intromissão do Estado na liberdade de expressão.” (Maultasch, Gustavo. Contra toda censura. São Paulo: Avis Rara, 2022, p. 21)

[4] Orwell, George. 1984. Tradução: Wilson Velloso, 27ª. ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2002.

[5] GLASSNER, Barry. The culture of fear. New York: Basic Books, 2009.

[6] DEL ROSAL BLASCO, Bernardo. ¿Hacia el Derecho penal de la postmodernidad? Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2009, núm. 11-08.

[7] SILVA SANCHEZ, Jesús-María. La expansión del derecho penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2.ed. Madrid: Civitas, 2001.

[8] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. J. Baptista Machado. 6. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1984.

[9] JELLINECK, Georg. Teoría general del Estado. Trad. Fernando de los Rios. Buenos Aires: Albatrós, 1954.

[10] Art. 2º-A Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional.

[11] MOREIRA, Adilson. Racismo recreativo. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

[12] Está descrito no artigo seguinte: Art. 20, Lei 7.716/89. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.

[13] Colecionamos um caso que não foi considerado racismo mesmo com palavras abstratamente assim consideradas: AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ESPECIAL. CRIME DO ART. 20, § 2º, DA LEI 7.716/89. TIPO PENAL QUE EXIGE A PRESENÇA DE DOLO ESPECÍFICO. CONCLUSÃO DAS INSTÂNCIAS ORDINÁRIAS PELA AUSÊNCIA DE ELEMENTO SUBJETIVO ESPECÍFICO. NECESSIDADE DE REEXAME DE PROVAS. SÚMULA N. 7 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA - STJ. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. Para configuração do delito previsto no art. 20 da Lei Federal n. 7.716/89 exige-se, além do dolo, o elemento subjetivo específico consistente na vontade de discriminar a vítima. 2. As instâncias ordinárias, após minucioso exame do conjunto fático-probatório contido nos autos, concluiu que não restou demonstrado o dolo específico na conduta da agravada. Para desconstituir o aludido entendimento, seria necessário o reexame de provas, incidindo o óbice contido na Súmula n. 7/STJ. 3. Agravo regimental desprovido. (STJ - AgRg no REsp: 1817240 RS 2019/0160866-3, Relator: Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, Data de Julgamento: 24/09/2019, T5 - QUINTA TURMA, Data de Publicação: DJe 27/09/2019)

[14] É nesse sentido que deve-se interpretar a passagem legal que, embora dirigida à injúria, pode-se trabalhar o raciocínio para outros casos: “Artigo 140, § 1º, CP - O juiz pode deixar de aplicar a pena: I - quando o ofendido, de forma reprovável, provocou diretamente a injúria; II - no caso de retorsão imediata, que consista em outra injúria. (...) Art. 142, CP - Não constituem injúria ou difamação punível: I - a ofensa irrogada em juízo, na discussão da causa, pela parte ou por seu procurador; II - a opinião desfavorável da crítica literária, artística ou científica, salvo quando inequívoca a intenção de injuriar ou difamar; III - o conceito desfavorável emitido por funcionário público, em apreciação ou informação que preste no cumprimento de dever do ofício.” Assim, em um caso que colecionamos, foi considerado atípica a situação de frases como: "vai se fu... macaca"; "(...) vai acabar acordando com a boca cheia de formiga"; "(...) sua vaca que eu te procuro e não respondo por mim"; "Opa demorou nois acha essa puta e bota p quebrar" (TJSP. Ação Penal - Procedimento Ordinário. Injúria. 0012587-08.2016.8.26.0224. 5ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo). Essas palavras foram ditas em momento de discussão acalorada o que desconfigurou o propósito de coibição da lei.

[15] Consoante ensina a doutrina de Guilherme de Souza Nucci: "Injúria proferida no calor da discussão: não é crime, pois ausente estará o elemento subjetivo específico, que é a especial vontade de magoar e ofender. Em discussões acaloradas, é comum que os participantes profiram injúrias a esmo, sem controle, e com a intenção de desabafar. Arrependem-se do que foi dito, tão logo se acalmam, o que está a evidenciar a falta de intenção de ofender." (Código Penal Comentado ", 17a edição, Rio de Janeiro: Forense, 2017, pág. 856). No mesmo sentido, os ensinamentos de Cezar Roberto Bitencourt: "Além do dolo, faz-se necessário o elemento subjetivo especial do tipo, representado pelo especial fim de injuriar, de denegrir, de macular, de atingir a honra do ofendido. Simples referência a adjetivos depreciativos, a utilização de palavras que encerram conceitos negativos, por si sós, são insuficientes para caracterizar o crime de injúria. Assim, a testemunha que depõe não prática injúria, a menos que seja visível a intenção de ofender. Em acalorada discussão, por falta do elemento subjetivo, não há injúria quando as ofensas são produto de incontinência verbal" (Bitencourt, Cezar Roberto. Tratado de direito penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 364). Registre-se, ainda, as lições de Julio Fabrini Mirabete: "[...] O dolo na injúria, ou seja, a vontade e praticar a conduta, deve vir informado no elemento subjetivo do tipo, ou seja, do animus infamandi ou injuriandi, conhecido pelos clássicos como dolo específico. Inexiste ela nos demais animii (jocandi, criticandi, narrandi etc.) (itens 138.3 e 139.3). Tem-se decidido pela inexistência do elemento subjetivo nas expressões proferidas no calor de uma discussão, no depoimento como testemunha etc.[...]" (Mirabete, Julio Fabrini. Código Penal Interpretado. 6. ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 1.123).

[16] Penal e processual penal. Injúria racial. Absolvição. Recurso do Ministério Público. Animus injuriandi. Insuficiência de provas. Absolvição. Sentença mantida. 1) para a caracterização do crime de injúria racial, além do dolo de injuriar e ofender a honra subjetiva do ofendido, necessária a presença do elemento subjetivo específico de discriminar o ofendido em razão de sua raça, cor, etnia ou origem. 2) consoante jurisprudência reiterada desta corte, a injúria proferida no calor das discussões, não caracteriza o crime tipificado no § 3º do art. 140 do código penal. Ausente o animus injuriandi, em razão da cor, a manutenção da sentença absolutória é medida imperiosa. 3) recurso conhecido e não provido. (TJ-DF - APR: 20130110461210 DF 0012365-63.2013.8.07.0001, Relator: HUMBERTO ADJUTO ULHÔA, Data de Julgamento: 08/05/2014, 3ª Turma Criminal, Data de Publicação: Publicado no DJE : 13/05/2014 . Pág.: 260). No mesmo sentido: "APELAÇÃO. CRIMES CONTRA A HONRA. INJÚRIA RACIAL. FATO OCORRIDO EM MEIO A CONTENÇÃO DE BRIGA GENERALIZADA. DÚVIDA QUANTO À OFENSA E AO DOLO ESPECÍFICO. O juízo condenatório por crime de injúria racial pressupõe a demonstração inequívoca do dolo de ofender por motivos relacionados a questões raciais ou de etnia. Demonstrado, no caso concreto, de maneira induvidosa, a ocorrência de uma contenção de briga generalizada entre pessoas embriagadas, resta fragilizada a hipótese acusatória quanto ao elemento subjetivo do tipo penal. Nestas circunstâncias, é sabido que os envolvidos tendem a exceder-se, o que acaba por mitigar a voluntariedade que se exige para a configuração dos crimes contra a honra, pois afetada a consciência, afetado fica também o dolo, enquanto elemento subjetivo do tipo penal. Dúvida fundada quanto à existência das ofensas e quanto ao elemento subjetivo do tipo penal que se resolve em favor do acusado. Absolvição confirmada. APELO DESPROVIDO". (Apelação Criminal, nº 70083203695, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Julgado em: 26-06-2020);

[17] Para ilustrar, em um exemplo exagerado, no jogo de Truco, é comum que os jogadores se expressem injuriando, caluniando uns aos outros, mas isso não pode ser considerado um crime devido ao contexto lúdico. O Direito não é uma ciência exata e precisa da hermenêutica jurídica. Observe-se também que pessoas públicas devem ter uma tolerância maior ao risco de difamação porque estão sujeitas a um escrutínio mais intenso devido a sua exposição na esfera pública. Também se deve ficar atento nas redes sociais com o troll que não se confunde com o hate. O troll é aquele que provoca, posta mensagem inflamatória, fora de contexto com a intenção de provocar respostas emocionais e fazer a acusação. Normalmente são personagens fake. É o provocador de discussão que aproveita-se do desequilíbrio emocional do outro para então acusá-lo com as próprias palavras.

[18] ANDRADE, André. Liberdade de Expressão em Tempos de Cólera. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2020.

[19] Bauman, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro, Zahar, 2001.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2024

Cabe Lei Maria da Penha para Homens?



Warley Belo
Advogado Criminalista


Introdução:

Nossa análise sobre a aplicação da Lei Maria da Penha em casos envolvendo homens como vítimas de violência doméstica. 


Caso Ocorrido:

A motivação do texto foi o caso ocorrido em 14 de janeiro de 2024 onde a Polícia Militar interveio em um incidente onde um homem manteve o namorado refém em um apartamento, desencadeando debates sobre a extensão da Lei Maria da Penha à proteção de homens.


Quem Tem Direito a Medidas Protetivas na Lei Maria da Penha:

A Lei Maria da Penha é destinada exclusivamente à proteção de mulheres em situações de violência doméstica. As medidas protetivas da Lei Maria da Penha estão nos artigos 18 a 23, especificamente:


Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:

I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;

II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;

III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:

a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;

b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;

c) frequentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;

IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;

V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.

VI – comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e 

VII – acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.


No ano de 2022, a aplicação da Lei foi estendida para incluir mulheres transgênero. A decisão da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), baseando-se no conceito de violência "baseada no gênero", não no "sexo biológico".


O Que Significa "Mulher Trans"?

Uma mulher trans é aquela à qual foi atribuído o sexo masculino ao nascer, mas cuja identidade de gênero é feminina. O artigo 5º da Lei Maria da Penha, ao definir seu âmbito de incidência, refere-se à violência "baseada no gênero", e não no “sexo biológico”. Mulheres trans podem ser heterossexuais, bissexuais, homossexuais, assexuais. É muito mais uma questão de autoidentificação.


Casos de Medidas Protetivas específicas na Legislação:

Além da Lei Maria da Penha, outras legislações garantem medidas protetivas, evidenciando a preocupação com diferentes grupos vulneráveis. 

As medidas protetivas para criança e adolescente estão nos artigos 15 ao 21 da Lei Nº 14.344/22 e no Estatuto da Criança e do Adolescente (artigos 98 a 102).

No Estatuto do Idoso também há (artigos 43 a 45). 

Além da mulher, mulher trans, criança, adolescente e idoso, temos medidas protetivas na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei Nº 13.146/2015) no art. 10, par. ún. e na Lei de Migração (art. 4º, inc. IV).

É idoso a pessoa maior de 60 anos e deficiente a pessoa com impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial.

Em resumo, possuem medidas protetivas específicas (não são todas iguais):

  1. Mulher;

  2. Mulher trans;

  3. Criança (até doze anos de idade incompletos);

  4. Adolescente (entre doze e dezoito anos de idade);

  5. Idoso (acima de 60 anos);

  6. Qualquer deficiente (físico, mental, intelectual ou sensorial);

  7. Migrante.

Em termos legais, esses grupos são contemplados com medidas protetivas específicas. Os homens adultos não possuem essa proteção específica, mas é importante destacar que eles podem buscar proteção por meio das medidas cautelares do Código de Processo Penal.


Desafios para Homens Buscando Proteção:

Homem vítima de violência doméstica não tem direito às medidas protetivas da Lei Maria da Penha e nem há legislação específica. Entretanto, de acordo com o art. 129, § 9º, do Código Penal, tanto o homem quanto a mulher podem ser vítimas de violência doméstica, não fazendo a lei restrição ao sujeito passivo. 

Art. 129, CP

Violência Doméstica  

§9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: 

Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. 


A vítima homem, apesar de não poder contar com medidas protetivas estabelecidas na Lei Maria da Penha, para que não fique desamparada de medidas eficazes para a sua proteção, poderá requerer a decretação das medidas cautelares previstas no Código de Processo Penal, especialmente aquelas arroladas nos incisos II e III do artigo 319.


Art. 319. São medidas cautelares diversas da prisão:

[…] 

II – proibição de acesso ou frequência a determinados lugares quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado permanecer distante desses locais para evitar o risco de novas infrações; 

III – proibição de manter contato com pessoa determinada quando, por circunstâncias relacionadas ao fato, deva o indiciado ou acusado dela permanecer distante;


Mas, enquanto para a mulher basta procurar a Delegacia da Mulher ou a Delegacia de Polícia mais próxima, e relatar a violência sofrida, para o homem se faz necessário comprovar o que chamamos de fummus commisi delicti e o periculum libertatis como pressupostos inarredáveis para decretação de medidas cautelares no processo penal (ou mesmo na fase pré-processual). Ou seja, não militará uma presunção de violência e de necessidade da medida baseada apenas na palavra do homem, deve-se fazer uma prova cabal do argumentado. Precisa de “prova da existência do crime e indício suficiente de autoria” (requisito) ao lado do que seriam os fundamentos legais capazes de dar vazão a decretação. 


Conclusão:

Apesar da evolução da Lei Maria da Penha, a ausência de amparo direto para homens em casos de violência doméstica destaca a necessidade de uma revisão abrangente nas políticas de proteção às vítimas. No caso ocorrido em BH, somente se o homem vítima se autoconsiderasse "mulher trans" caberia a aplicação da Lei Maria da Penha, caso contrário, resta socorrer-se na aplicação do CPP. Entendemos que a igualdade perante a lei é essencial para uma sociedade justa.