quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Diminuição da Maioridade Penal: Patriot Act tupiniquim

A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado aprovou substitutivo objetivando diminuir a maioridade penal. Pelo projeto, os infratores maiores de 16 anos atestados, por laudo médico, de que possuem a plena capacidade de entendimento e que cometessem crimes hediondos responderiam como se adultos fossem. Reabre-se uma questão importante: O que estarão pensando, os senhores Senadores, sobre política criminal?
Certamente, a aprovação, se afasta de modo inequívoco do atual modelo de Estado, que é o Constitucional e Democrático de Direito. Por isso só já é de se lamentar a aprovação do projeto. Mas, não é só: essa decisão é cômoda, preguiçosa, paliativa e midiática. A medida aprovada pelo CCJ é mais um passo rumo ao Estado policialesco para enfrentar a crise da segurança. Bem evidencia o desequilíbrio emocional que paira sobre o Senado ao se tentar institucionalizar um tipo de Patriot Act tupiniquim aos moldes norte-americano ou inglês (este já julgado inconstitucional pela Câmara dos Lordes).
O Patriot Act norte-americano é um pacote legislativo aprovado pelo Congresso americano no auge do clamor anti-terrorista, 45 dias após os atentados às Torres Gêmeas de 11 de setembro de 2001, sem nenhuma consulta à população. O significado da expressão Patriot (Provide Appropriate Tools Required to Intercept and Obstruct Terrorism) visa interceptar e obstruir atos de terrorismo. No nosso caso, o Patriot Act (ato patriota) tupiniquim visa passar uma imagem à sociedade de que o Senado ama a tal ponto a pátria que levará o jovem da escola da cidadania para a escola do crime. Pensam que a penitenciária é o melhor local para ressocializar o adolescente. Melhor resposta seria um Citizen Act que mandasse aplicar o Estatuto da Criança e do Adolescente. Não precisaria mais do que isso, pois a solução para a criminalidade – todos fora do patriótico Senado sabem - passa pelo acesso dos jovens à educação e trabalho.
A par o desencontro constitucional e político-criminal, a medida – eventualmente aprovada - não teria impacto nos índices de criminalidade. Pior, colaboraria para o agravamento do problema da superpopulação carcerária e desnudaria, a um só passo, que o Congresso Nacional, em seu processo de elaboração de leis, não passa por um debate profundo e consistente sobre como combater a violência.
Adotar uma legislação penal mais dura nunca foi caminho eficaz para reduzir a violência, mas funciona bem com a população leiga que passa a acreditar em uma pseudo-segurança de papel. Mas só até o próximo escândalo criminal...
Observe-se que a Lei dos Crimes Hediondos - que endureceu a lei penal - não inibiu – e não inibe - a prática de crimes considerados mais graves. Essa lei, a de número 8.072/90, estabeleceu que os crimes como o de estupro, atentado violento ao pudor, homicídio, seqüestro, latrocínio e tráfico deveriam ser considerados hediondos, punidos com maior rigor, e para os quais não haveria progressão de regime — decisão recente do STF (Supremo Tribunal Federal) considerou inconstitucional esse ponto da lei.
Dezessete anos após a rigorosa, errônea e ineficaz lei, observa-se o surgimento de violentas facções criminosas dentro dos presídios — como o PCC (Primeiro Comando da Capital).
Não queremos com isso apontar que caso a Lei dos Crimes Hediondos não tivesse sido sancionada a situação seria diferente. Comparamos, todavia, que a rigorosa lei não reduziu a ocorrência de crimes desse tipo e persistir no erro não é inteligente!
Essa aprovação revela uma tese do Direito penal do adolescente brasileiro inimigo. Aplaudindo o substitutivo, se aplaude também posturas idênticas àqueles que acobertaram ou apoiaram o Direito penal nazista, que procurou eliminar todos os "estranhos à comunidade", mandando-os para os campos de concentração ou para as câmaras de gases.
É necessário que os senhores Senadores adotem para o país uma postura mais responsável e séria na formulação de políticas criminais. Nesta hora de questionamento acerca da constitucionalidade da Lei de Crimes Hediondos é bastante oportuno que o Senado preste mais atenção nas decisões fundamentadas do patriótico STF, pois já se sabe que demagogia serve para ter espaço na mídia, mas não resolve nada.

Desarmamento






O Estado é débil e não soluciona os problemas sociais. Não tem condições de dar escola, hospital, segurança, lazer... então, o Estado simula. Simula que tem condições. Cria espetáculo, chama atrizes e atores de telenovelas. Esses personagens fazem política e são bons. Quase nos convencem que não moram em condomínios com seguranças armados...
O Estado está tentando produzir uma junção entre a opinião pública e a política. Todavia, não nos sentimos representados, pois a política é artificial. O Estado torna-se um grande espetáculo do “contra ou a favor”.
Mas as pessoas continuam inseguras. Então queremos segurança! Como? Centrar atenções às ameaças mais imediatas: o ladrão da esquina, a invasão residencial. O problema é a segurança urbana. Com isso, os políticos fazem propaganda, demagogia. Não vão resolver nada. Mas vão nos vender a imagem de que estão resolvendo tudo. Como pretendem fazer isso? Através de leis penais.
Voltamos ao tempo das cavernas. O homem primitivo desenhava nas paredes a imagem do animal que queria caçar e pensava que, se tinha a imagem, teria o animal. Mas não tinha nada, só a imagem. Agora não temos mais as paredes das cavernas, mas leis. E desenhamos tipos penais onde inserimos tudo de negativo e perigoso. E isso basta aos políticos. E eles, junto aos bons atores e atrizes, nos fazem crer que isso modifica a realidade. E os políticos têm seus cinco minutos de fama de que necessitam.
Não sei como resolver o terrorismo, o tráfico internacional, a corrupção e o seqüestro, mas eu sei que não é com a lei penal.
O que resolveu o homem com o Código Penal? Bruxas, hereges, tuberculose, sífilis, droga, seqüestro resolveu alguma coisa? Não resolveu nada, absolutamente nada. Umas resolveram-se por si mesmas pelo tempo. Outras por outros meios, a tuberculose com a citomicina, a sífilis com a penicilina, hereges não são mais problema, drogas e seqüestros não se resolveu. O Código Penal, a lei dos crimes hediondos, a inquisição não resolveram nada. Vamos resolver o problema de arma ilegal com a lei penal? Ou é um pretexto para retirar direito?
Eu não sei como resolver o problema das armas, mas não é com a lei penal. Dizer que a violência existe por causa da arma é um delírio demagógico.

A Tortura no Interrogatório Extrajudicial: Até Quando?

“A acusação é apenas um infortúnio, enquanto não verificada pela prova. Daí esse prolóquio sublime, com que a magistratura orna seus brasões, desde que a Justiça Criminal deixou de ser a arte de perder inocentes: Res Sacra Reus. O acusado é uma entidade sagrada”
(Rui Barbosa, Obras Completas, vol, XIX, t. III, p. 113).

O interrogatório surge, historicamente, como meio de prova obrigatória e essencial. Chamada de probatio probatissima, la Regina delle prove, era regida pelo princípio reo tenetur se accusare, caracterizado pela possibilidade de utilização da tortura. O interesse do interrogante era extrair do acusado uma prova tranqüilizadora: a confissão.
Juridicamente, o acusado era um objeto do processo. Arrancado do lar sem explicações, se transformava em esquife de suas aspirações. Saía da masmorra para ser conduzido à presença de um juiz que lhe fazia perguntas vagas sobre fatos que nem sempre conhecia . Era levado a responder ao que sabia e ao que ignorava. Ainda quando dissesse a verdade, não se livrava da acusação de estar mentindo ou haver caído em contradição.
Respondendo firme, era audacioso e petulante; tremendo, delinqüente confesso. À determinada hora só tinha uma preocupação: dizer o que o juiz quisesse ouvir e livrar-se da tortura. Saía da audiência e voltava ao calabouço escuro e sufocante. Retornava para fazer acareação com pessoas que, às vezes, nunca tinha visto e nem se sabia dos depoimentos. Aliás, nem sabia o teor da acusação. Acabava por confessar, não por ser realmente culpado, mas para se ver livre do tormento, ainda que lhe redundasse em pena de morte.
O processo era uma monstruosidade: costumes ferozes, leis desumanas, juízes desalmados, implacáveis, truculentos, fruto de uma mentalidade pervertida. E foram tantos os erros judiciários... O inocente uma vez condenado o era perpetuamente porque a vaidade dos juízes não permitia o reconhecimento do engano. O acusado, inocente ou culpado, era número desvalido ao qual se recusava a condição humana.
Séculos de estudos e experiências foram incapazes de melhorar a situação do suspeito. São nesses entrelaces que se vê a genialidade de Foucault : “O interrogatório não é uma maneira de arrancar a verdade a qualquer preço; não é absolutamente a louca tortura dos interrogatórios modernos; é cruel, certamente, mas não selvagem. Trata-se de uma prática regulamentada, que obedece a um procedimento bem definido, com momentos, duração, instrumentos utilizados, comprimentos das cordas, peso dos chumbos, número de cunhas, intervenções do magistrado que interroga, tudo segundo os diferentes hábitos, cuidadosamente codificado.”
Hoje, os interrogatórios feitos nas delegacias, raras exceções, são a imagem certa do embrutecimento da alma humana, do aviltamento taciturno da busca da verdade real por meios civilizados.
O Judiciário tem sido, de certa forma, omisso na apuração desses casos de tortura para confissão extrajudicial. O Judiciário, muitas vezes, não leva a sério essa denúncia, como se fosse uma coisa secundária, a não demandar apuração. A hipotética obtenção de confissão mediante prática de tortura não pode ser discutida em sede de habeas corpus, que não comporta dilação probatória, sendo considerada, também, matéria estranha ao âmbito do Recurso Especial, a teor da Súmula 07/STJ.
Observe-se: o suspeito é torturado de forma a não deixar vestígios (socos no estômago, sufocamento com saco plástico, “telefone”, ameaças, choque, pauladas na sola dos pés etc.). Se há, todavia, vestígios, o advogado faz requerimento ao Juiz para expedição de guia para apuração das lesões; o médico do IML, que no interior e em algumas Capitais, trabalha senão próximo, dentro do prédio da polícia, faz o exame e o resultado é quase sempre fantástico. E o suspeito ainda sofrerá as agruras pela impertinência da reclamação.
Confessado extrajudicialmente mediante tortura, confessado fica.
O pior é que se confessa extrajudicialmente e retrata judicialmente é condenado por aquela confissão, todavia sem direito a atenuante prevista no art. 65, inc. III, letra "d", do Código Penal...
Nada ruim em um país em que temos decisões da seguinte jaez: “O silêncio do réu, quando interrogado na fase policial, direito constitucional que lhe foi assegurado, é comprometedor, pois o inocente brada desde logo sua inocência e apresenta eventual álibi ou justificativa de seu ato” .
Conseqüência disso são os erros judiciários. Para não alongarmos, cita-se o caso do dono da Escola Infantil em São Paulo acusado de abuso sexual de menino de seis anos. Confesso na polícia, teve seu nome achincalhado na mídia nacional, sua casa e estabelecimento apedrejados, a família despojada de honra, para, ao final, ser considerado inocente...
Também o alarmante Caso dos Irmãos Naves (Sebastião e Joaquim), que passa pelo maior erro judiciário do País. Acusados, em 1937, "confessaram" a autoria do crime de latrocínio. O Tribunal de Justiça de Minas Gerais condenou-os à pena de 15 anos e 6 meses de reclusão. Eis senão quando reaparece (em 1952), são e salvo, Benedito Pereira Caetano, a pseudovítima .
Entretanto, desde o final de junho de 2005, o artigo 304, CPP, passou a vigorar com nova redação, concessa venia, ainda longe dos ditames luzidios de que gostaria a Carta e a civilização jurídica brasileira. A lei 11.113/05 é incapaz de, em pleno século XXI, extirpar concretamente a confissão extrajudicial como rainha das provas, “peça valiosa na formação do convencimento judicial” .
Não é lei suficiente. Confissões de inocentes continuarão sendo arrancadas “junto com as fibras musculares” .
Ideal mesmo seria extirpar o interrogatório de nossa legislação. Aliás, o Supremo Tribunal Federal, diante do texto constitucional, confirmou a validade do rito processual criminal adotado pelo Código eleitoral no qual não está previsto o interrogatório do réu. Mais recentemente , aquela Corte reiterou que o réu tem o direito subjetivo de permanecer em silêncio não podendo ser constrangido a responder a quaisquer perguntas que lhes forem formuladas por qualquer autoridade ou agente do Estado.
Urge, ainda, uma verdadeira revolução no interrogatório extrajudicial que consistiria na ciência clara do direito ao silêncio, de que qualquer manifestação que prestar poderá ser usada contra sua pessoa, de que tem direito a um advogado, antes de ser interrogado e durante o interrogatório, que haja a possibilidade da suspensão do interrogatório até a chegada do advogado e oportunidade de comunicar-se com esse, reservadamente, que seja concedido idêntico direito a quem não tenha recursos financeiros e, finalmente, registro estreme de dúvidas de eventual renúncia a esses direitos .
A tortura, como meio de confissão, deve ceder ao brocardo latino “Res Sacra Reus”, sendo preferível, segundo a famosa sentença de Berryer, absolver muitos culpados, a condenar um único inocente

Colapso francês: o nosso estado de polícia é mais sofisticado?

A França vive as revoltas dos excluídos. Pobreza, discriminação, falta de perspectiva social, péssimas condições de vida, alto índice de desemprego em meio a uma sociedade consumista formam o manancial de ingredientes explosivos. Parece que estamos falando do Brasil. Mas, por que aqui não há revoltas similares? Seria o nosso estado de polícia mais sofisticado ou eficiente do que o francês?
A exclusão, nas cidades brasileiras, é explícita. As comunidades (nome politicamente correto para designar favelas), muitas vezes, estão incrustadas em bairros nobres. “O neguinho vê por cima do muro” (Racionais MC). Mesmo assim, nossos favelados não reclamam da falta de hospitais, seguridade social, lazer, escola, transporte etc. e, ainda, pagam impostos. Em Paris ou Lyon, ao revés, não se vêem pobres ao lado dos ricos. Vivem fora do anel periférico. Têm melhores condições sociais. Mas, lá há distúrbios nos moldes de Los Angeles, EUA (LA Riots, 1992).
O nosso estado de polícia é mensurável. Efetivamente castiga e ensina aos súditos a serem pacíficos e a se submeterem ao Estado paternal. Entretanto, o estado de direito não existe para essa parcela discriminada da população. Impossibilita-se a constituição de uma visão fraterna, horizontal da sociedade. Só se permite e se estimula a visão vertical. Os excluídos não se reconhecem como tais, raríssimas exceções: grupos de Rap, movimentos sociais politizados ou quando fecham avenidas e ateiam fogo em ônibus em resposta às agressões policiais.
O estado de direito e o estado de polícia agem antagonicamente. Naquele se perseguem as soluções para as causas dos problemas e se limita o poder, nesse há pura repressão dos conflitos se reforçando o poder vertical arbitrário (Nilo Batista). De forma que, se o favelado permanece na favela, não há risco de conflito. Aqui se aceita isso; na França, não.
Não é o nosso estado de polícia mais eficiente ou melhor. Ocorre é a inexistência do estado de direito para os excluídos. Ou seja, ser excluído francês é ter a possibilidade de experimentar parte do estado de direito, mas não todo.
O estado de direito e o estado de polícia co-existem tanto aqui como na França. Mas, lá se pressupõe ser assegurado a todos o acesso ao estado fraterno. No Brasil, o povo habituou-se a ter apenas o estado de polícia porque nunca experimentou o estado de direito, que não lhe pertence. Os nossos outsiders (Howard Becker) não são discursivos, são reais.

Cidadão Joseph K.: Observações críticas sobre “O Processo” de Kafka e o Processo Penal.

Cidadão Joseph K.: Observações críticas sobre “O Processo” de Kafka e o Processo Penal.



"Durma logo! Precisamos dos travesseiros".
Kafka

Kafka (1883 - 1924) foi um mestre da literatura alemã, mas não é identificável no sentido das classificações usuais, isto é, da divisão de trabalho literária e da rotulação comercial. Trabalhou como assessor de seguros de um banco em Praga. Cidade esta que está também por trás de seus romances com inúmeros becos e corredores. Judeu tímido, triste, que não publicou quase nada em vida, morreu jovem, aos 41 anos.
Kafka se considerava um estranho porque, como judeu, não pertencia totalmente ao mundo cristão. Por falar alemão, não se integrava aos tchecos completamente. Como judeu de língua alemã, não se incorporava aos alemães da Boêmia. Como boêmio, não pertencia integralmente à Áustria. Como funcionário de uma companhia de seguros de trabalhadores, não se enquadrava por completo na burguesia. Como filho de burguês, não se adaptava de vez ao operariado. Também não pertencia ao escritório, pois sentia-se escritor. Não se identificava também como escritor, pois sacrificava-se pela família e pouco publicava (Carta a seu sogro.) Tinha uma existência torta em uma múltipla condição de não-pertencer .
Sobre suas publicações, pediu que fossem destruídas antes de morrer.
Seu nome transformou-se em adjetivo (kafkiano), em mais de cem idiomas, inclusive em japonês, fato que nem mesmo Shakespeare conseguiu.
Kafkiano
Mas, o que é kafkiano? É o absurdo como lógica, um mundo sombrio, sem cores, cercado de culpa e burocracia a definir bem o nosso tempo. A diversidade de interpretações que Kafka sofre não se baseia na falta de estudo dos intérpretes, mas na multivocidade do próprio objeto de estudo. Pode ser inserido num universo de problemas gerais, morais, religiosos, filosóficos, jurídicos, históricos, sociais e literários. Definiu nosso mundo como Kafkiano, apesar de já sê-lo antes mesmo desta definição.
A aparência, aparentemente equilibrada, do nosso mundo psicótico, em Kafka, é exaltado como algo totalmente normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de ser esse mundo considerado normal.
Deveríamos estar familiarizados com esse mundo, todavia não o sabemos porque o estranhamos. Estranhamos a vida cotidiana, apesar de ser a parte mais realista.
Nessa alienação, o próprio semelhante muitas vezes se transforma em mera ´coisa´. Se o homem nos parece hoje desumano não é porque tem uma natureza “animal”, mas porque está rebaixado a funções de coisas. É por isso, que Kafka denuncia que os homens são coisas que parecem seres vivos. Esse paradoxo inquietante, que é espantoso, não espanta ninguém no mundo de Kafka. O estranho é o normal em seu mundo, o trivial é grotesco. Sujeito e objetos são invertidos, ou trocados. Quando Kafka quer dizer que algo é sobrenatural ou espantoso, ele faz o contrário: o pavor não é espantoso. Depois de Kafka, somos todos kafkianos.
O Processo
A abertura do romance O Processo, de Kafka, é, talvez, a mais famosa de toda literatura, que dá início a um processo de terror. Quem bateu na porta, naquela manhã, poderia ser da Gestapo, da Polícia Federal ou da CIA. Mas, também, poderia ser algo banal: as pilhas de impostos para pagar, a fila de espera no consulado dos EUA para retirar o visto, a espera nos hospitais, etc. Isso tudo caracteriza o século XX e K. nos deu a senha. Nosso mundo de terror e burocracia pode ser visto como sofismo dos burocratas de meio período. K. é profético.
Em seu mais famoso romance, o protagonista Joseph K. foi acusado e executado sem nem mesmo ter a culpa formada ou a identidade criminal verificada. A fórmula de Feuerbach é simplesmente inexistente: não se sabe qual o crime. Joseph K. também não pôde ter acesso aos autos de acusação. O advogado faz parte da engrenagem do sistema, simplesmente existindo. As audiências eram marcadas em domingos (para não atrapalhar a vida do protagonista). Não se sabe quem é o juiz ou quem de fato julgará, isso porque, na lógica do medo, o poder é diluído (Foucault), não se sabendo a autoridade coatora. Constrangedor, árido, real, secreto e privado são alguns adjetivos passíveis ao romance. Sua identidade central, entretanto, nos revela que o processo kafkiano é um mecanismo unilateral, só existindo para acusar.
Nessa perspectiva podemos recepcionar o processo de seleção da população criminosa com olhos na teoria do labeling approach e sua negação pela igualdade. Sabemos que os mecanismos reguladores da seleção criminosa são complexos. Macrossociologicamente, há uma interação de seleções de poder entre grupos sociais que dão conta a uma desigual distribuição de bens e de oportunidades entre indivíduos.
Por isso mesmo, Sack critica a definição “legal” de criminalidade (ou seja, um ato que viola uma norma penal). Sack diz que isso é uma ficção porque a maioria dos membros da sociedade viola a norma penal. Portanto, a criminalidade, como realidade social, não é uma entidade pré-constituída em relação à atividade dos juízes, mas uma qualidade atribuída por estes últimos a determinados indivíduos. A criminalidade é uma realidade construída socialmente com definições e interações. Daí o Teorema de Thomas, perfeitamente aplicável à situação de Joseph K.:
“se se definem situações como reais, elas são reais nas suas conseqüências.”
O romance nos impele a questionamentos inquisitivos como "que lei é essa?", "qual o crime cometido?", "qual a culpa?". Todavia, ao final, percebemos que essas são perguntas ridicularizadas. Mas, ao mesmo tempo, deixa claro, que se não conhecemos a lei, somos culpados. Estar vivo é estar em provação que não podemos entender completamente.
Em 1914, escreveu a parábola “Diante da Lei” que, posteriormente, foi incorporado ao romance O Processo. A semelhança com o Livro de Jô é paradigmática: o resultado já é sabido por todos, o rito já está determinado, não há esperança. Joseph K. chega mesmo a perguntar, certa feita, aos policiais:
"Em que teatro estão representando?".
Não muito distante do que Camile Paglia concluiu:
"A sociedade é o lugar das máscaras, um teatro ritual".
Desvenda-se que o princípio reitor de O Processo é que todos são inocentes até o instante que sejam acusados. Há um dirigismo à condenação, apesar dos ritos burocráticos disfarçando a hipocrisia jurisdicional. As descrições são enfadonhas, as estruturas do tribunal formam um labirinto, os juízes são invisíveis e inabordáveis.
"Quando a corte acusa alguém, a Corte não pode ser arredada dessa convicção."
Expressou-se, assim, o pintor Titorelli. Ou seja, quando se acusa, é porque a culpa realmente existe... É inútil e impossível resistir.
É certo que o romance permite sacudir a ideologia penal tradicional. Coloca-se em relevo o princípio da igualdade, pois a criminalidade seria um comportamento isolado de Joseph K. sendo atribuído a ele por parte daqueles que detêm o poder de aplicar e criar a lei penal. Também encontram-se em jogo princípios da legitimidade, interesse social e delito natural.
Há ausências de definições, não se explicando o conteúdo do crime, apenas apresenta traços do que diferencia o comportamento criminoso dos outros comportamentos. Também é evidente as cerimônias de degradação em todos os aposentos em que K. é acusado ou tenta se defender.
Mesmo assim, Joseph K. se predispõe a enfrentar o sistema. Autodefende-se clamando inocência, mas investem, contra ele, “técnicas de neutralização ao inverso” (Sykes e Matza):
"é assim mesmo que os culpados tendem a falar".
Um dos guardas interpela-o:
"Admite não conhecer a lei, mas declara-se inocente...".
Joseph K. mal sabe que seu papel é essencial no processo porque ele atua como o culpado. Só compreende isso ao final da narrativa. Descobre-se funcional ao sistema como culpado. Assim como Durkheim, conclui que o crime é necessário, pois
"se liga às condições fundamentais de toda a vida social e, por isso mesmo, tem sua utilidade".
Conclui-se também que o acusado-culpado é necessário. Joseph K. não era um elemento estranho e inassimilável dentro do processo. Ele era funcional, necessário e, o pior, gradativamente passa a incorporar esse papel agindo como se culpado fosse: veste-se às pressas, exibe documentos, obedece constrangido, responde quando deveria perguntar... Depois, procura fazer uma petição de defesa e conclui que uma petição daquela seria totalmente impossível porque para enfrentar uma acusação desconhecida seria preciso rememorar a sua vida inteira até nos menores acidentes e ações, formulados com clareza e sobre todos os ângulos... Tragicamente descobre que inútil não é a espera, mas a ação.
Isso nos leva a concluir que todos os fatos d´O Processo, são, de fato, imagens paralisadas. Na verdade, o ponteiro dos segundos do desespero corre incessantemente e em alta velocidade, mas o relógio tem o ponteiro dos minutos e das horas quebrados (Güter). O prosseguimento significa em pensar e repensar as mil possibilidades que, como um feixe de luz, irradiam daquele ponto dos acontecimentos. É dizer, só existe um acontecimento em todo o processo, a história gira em círculos, há uma idéia fixa, como num sonho, não há avanços, por isso uma angústia em sua leitura. Esse caráter cíclico não é uma falha, é, antes proposital: os conceitos “progresso” ou “desenvolvimento” ou “processo” são abandonados. É a maldição da vida a cada dia renovada, embora fadada à repetição. Pelo mais sombrio de todos os paradoxos de Kafka, as manifestações dessa luta são inevitavelmente destrutivas, sobretudo autodestrutivas. Quanto mais tenta se defender, mais funda a acusação e mais se entende culpado.
Eis aqui, portanto, um motivo que contraria rigorosamente o outro. A punição (que se antecipa à culpa) torna-se testemunho da culpa. “Eu não seria punido” – parece dizer – “se não fosse culpado”. E procura, de fato, “sujeitar-se” a essa culpa. É extremamente significativo que o K. d’O Processo – embora tenha sido liberado pelos funcionários em exercício de sua função, na cena introdutória – corra atrás deles (Güter).
Essa característica não é díspar à realidade. Escolhido uma vez como culpado, escolhido para sempre. Até a derradeira sentença fatal. O sistema penal não se destina a punir todas as pessoas que cometem crimes e nem poderia fazê-lo, sob pena de processar a todos nós. Mas, faz-se necessário culpados. E esses culpados serão culpados eternamente. É como diz Carnelutti:
"O encarcerado, saído do cárcere, crê não ser mais encarcerado; mas as pessoas não. Para as pessoas ele é sempre encarcerado; quando muito se diz ex-encarcerado; nesta fórmula está a crueldade do engano. A crueldade está no pensar que, se foi, deve continuar a ser."
A atualidade Kafkiana
No dia-a-dia, é visível e análoga a situação. Hoje deparamo-nos com a cultura do direito penal do pânico. Isso correlaciona-se com O Processo na medida em que predomina sempre a pertinência dos grupos estabilizados e que massacram o que possa vir a pôr em risco a integridade de suas conquistas. O medo transforma o homem em um animal irracional e arbitrário. Há outro aspecto político: o Estado se preocupa mais com o medo, com a repressão e a violência do que com a paz, a garantia dos direitos individuais e a liberdade. Por outro lado, não nos foge à vista que sem a pena a barbárie seria o estado natural da sociedade. O problema é qual o limite entre o Estado e o indivíduo e onde o processo deve se inteirar nessa relação.
O Estado não é uma entidade superior, criadora de direitos (como queria Hegel), controlador único e normativo. O Estado é uma instituição, assim como a Cidadania, e deve se posicionar em igualdade institucional. A estrutura normativa constitucional é garantidora da atuação permanente da Cidadania na transformação ou preservação do Estado e das demais instituições. A Cidadania é também uma instituição que, para se efetivar, demanda incursões sobre as garantias e os princípios constitucionais do processo.
O Estado pós-moderno está, assim, no ordenamento jurídico, em situação isonômica com outras instituições (Habermas) e com estas se articula de modo interdependente num regime jurídico de subsidiariedade recíproca (Baracho). Desse modo, a relação entre o processo e o Estado é que aquele deve assegurar a liberdade e a igualdade do homem frente a este. Só assim assegura-se a Cidadania. Mas, em Kafka, as instâncias judiciais representam duas coisas: por um lado, os `pobres´, cuja existência torna a própria existência uma ´culpa`. Não é por acaso que os aposentos judiciais se encontram na mansarda da rua dos pobres – a bem dizer em cada casa de pobre. Mas, por outro lado, muitos membros do “mundo”, portanto, da classe dominante – e exatamente aqueles que consideram a consciência social de K. uma vergonha – mantêm-se no mais estreito contato com o tribunal.
A evolução do processo, desde Ponthier até Habermas, traz ínsitos em si paradoxos de valores e visões. Os princípios do processo penal, hoje elencados na Carta, traduzem um processo, assim denominado pós-moderno. O processo é, pois, criação constitucional com características definidas nos princípios do contraditório, ampla defesa e isonomia. São verdadeiros institutos sem os quais não se definiria o processo em parâmetros modernos de direito-garantia constitucional.
Conclusão
Ler Kafka como uma crítica é sempre uma armadilha perigosa porque nos parece que Kafka nos exige uma interpretação direta do seu texto, quase pede para ser interpretado literalmente. Quer ser raso, mas isso é um paradoxo, assim como todas as suas estórias. Nesse tipo de ironia, cada figura do livro é e não é o que poderia parecer. Podemos dizer que, em Kafka, não há sugestões, o texto é seco. Também não deseja representações. A conclusão é que não existe esperança, nem para ele, escritor, e nem para nós, leitores, e nem para seus personagens. E se interpretação pudéssemos fazer diríamos que O Processo é uma gozação fantástica. Sua narrativa é longa e bruta nos acontecimentos. O terrível vai acontecer e acontece efetivamente desde a primeira página até a última.
Todos os dias "Josés" são processados e condenados num Estado de Direito formado de burocracia e papel. Nesse Estado, muitos operadores do Direito entendem que o processo existe para condenar ou para defender a sociedade ou, pior, para se alcançar a sentença. Entretanto, a epistemologia processual e a ciência processual trazem o processo como defesa primeira do acusado. O processo só existe por causa do réu (Ferrajoli). Não existe para condenar, antes pelo contrário, existe para garantir que, se punição houver, será precedida das garantias constitucionais na sua mais ampla afeição.
Com a genialidade, Kafka conseguiu, antes mesmo de seu tempo, prever o que nos esperava. Como mesmo pontuou “Sou o fim ou começo” (Kafka, Diário IV). Sua importância é tamanha que se apoderou de uma letra do alfabeto. S não é Shakespeare, mas K é Kafka.



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Considerações sobre a Violência Policial contra o Juiz Federal

“Para que serve essa boca tão grande?”
Chapeuzinho Vermelho

O recente caso do juiz federal Roberto Dantes Schuman de Paula, preso por policias da Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais (CORE - elite da Polícia Civil do Estado fluminense) sugere algumas reflexões. Menos porque envolve um juiz federal, mais porque alguém foi preso arbitrariamente.
A violência sofrida pelo juiz federal no dia 04 de fevereiro de 2008, amplamente divulgada pelos meios de comunicação, quando foi preso, algemado, jogado no camburão e conduzido a uma delegacia de polícia sem motivos, segundo a sua versão, não é novidade no Brasil. É pouco provável que alguém discorde que a polícia ainda vive sob o signo da truculência, pois - mais do que a específica violência policial - vivemos sob o signo da violência estatal desde a colonização. O fato que chama a atenção é que a vítima, excepcionalmente, não foi um qualquer do povo, um presidiário, um menor de rua, um negro ou um pobre, mas um juiz federal.
É de se pensar. Se antes do regime militar tínhamos a violência policial contra os populares exclusivamente, na ditadura essa violência alcançou a classe média branca intelectualizada (crimes políticos). Será, agora, que chegamos ao limiar da quinta geração dos direitos fundamentais pior do que estávamos na ditadura militar? Estamos vivendo num estado de não-direitos (Canotilho)? De um governo de homens e não de leis (Platão)?
Descobrimos mais uma vez que a violência policial existe, mesmo. E é um caso clássico da “doutrina de segurança nacional”: a “prisão para averiguações” com a técnica da violação da integridade física e moral. Basicamente violações dos direitos de primeira geração (Bobbio). Em se confirmando a versão, a conclusão rasa é de que alguns integrantes da polícia estão, em certo sentido, incontroláveis porque não possuem um treinamento específico, uma formação humanística de respeito à República brasileira - porque desrespeitar um cidadão é verdadeiramente desrespeitar o próprio Estado Democrático de Direito. Em assim sendo, pior, banalizam a vida e se colocam acima da lei. Acham, por assim dizer, que estão no papel e no direito de determinar o certo - e o errado - em relação aos procedimentos de apuração de eventos.
A tropa de elite da polícia civil do Rio de Janeiro tem uma das melhores formações do mundo, mas só isso não bastou. Uma simples visita ao site da corporação fluminense nos faz perceber que 70% do que se aprende lá, se aprende em uma faculdade de direito também, os outros 30% é sobre ética, comando, ação policial etc. Existe inclusive curso de Direitos Humanos. Mas, infelizmente, o Estado brasileiro nunca primou pela afirmação real dos direitos democráticos. A vida, a liberdade e a integridade corporal e moral dos cidadãos são tutelados pelas leis, mas, apesar do reconhecimento formal desses direitos, a violência oficial continua e de maneira generalizada. Não é a violência contra os pobres, negros, advogados no exercício de sua função, traficantes ou jovens em passeatas. Não é contra grupos determinados. É contra toda a população, contra o povo.
Lutar pelos direitos humanos na Alemanha ou Inglaterra é evidentemente mais fácil do que lutar por esses direitos aqui no Brasil que muitas vezes são taxados de “direitos de bandido”. Lá os movimentos sociais estão engajados na qualidade de vida, há passeatas públicas pelos direitos de quarta geração, aqui no Brasil ainda estamos discutindo violência policial generalizada... E os casos se reptem dia após dia.
Mas, por que apesar das leis, ainda existe o abuso de autoridade? Principalmente por causa da impunidade. É dizer: o Estado não consegue punir os crimes. Nenhum tipo de crime. Não coíbe, nem mesmo, os crimes perpetrados por seus próprios agentes, seja de que escalão ou Poder for. Há uma gigante cifra negra (Sutherland) e quando o policial é punido, segundo a OEA (Comissão Interamericana dos Direitos Humanos. Relatório sobre a situação dos direitos humanos no Brasil, Washington – D.C., 1997, p. 46), os tribunais brasileiros, mormente os militares, “são indulgentes com os policiais acusados de abusos dos direitos humanos e de outras ofensas criminais, o que facilita que os culpados fiquem na impunidade.”
Na esteira da contradição formal-material, a função institucional da polícia seria para a “preservação da ordem pública” (CF, art. 144). Paradoxalmente, aqui começa uma série de atenuantes aos policias porque de que “ordem pública” estamos falando? A da elite? Então os policiais agem corretamente, porque mantêm os pobres sob controle na favela, sem gastos elevados e pagando imposto. Essa ordem pública elitista também legitima a violência policial ao endossar a mesma violência quando se trata dos outros (Howard Becker), ou seja, dos grupos politicamente mais fracos e minorias. “A violência é para eles e não para nós da elite”. A lei é para todos, mas não podemos nos esquecer que há sempre também os ilegalismos (Foucault), o errado feito de certo, a lei cega que não vê o crime, a interpretação tendenciosa, as exceções das regras.
A própria sociedade exige dos policiais uma conduta violenta. O filme Tropa de Elite (José Padilha), certamente, trouxe muita dor de cabeça para os professores de direito penal, pois normalmente, a população, de maneira geral, defende a pura exterminação dos delinqüentes, ainda mais se forem traficantes. A expressão “guerra contra o crime” é de uso comum na mídia sensacionalista que banaliza o mal (Hannah Arendet). Guerra é entre inimigos e o direito penal é a arma segunda, porque se é inimigo (Jakobs) tem que usar da violência policial, primeiro, porque na guerra há vencedores e vencidos, há “cerco”, “incursões”, “caveirão”, “destruição de bunkers” e por aí vai... Está explícito que a violência é um meio legítimo para se tratar os desajustados. Não se trata de controle, se trata de extirpar os maus da sociedade porque são incorrigíveis (Lombroso). A ideologia reinante no Brasil não é a democrática, ainda é a autoritária.
A sociedade, desse modo, também é culpada. Ela aplaude diuturnamente a violência arbitrária, as leis hediondas, as penitenciárias onde os presos são maltratados, a mídia televisiva que vende a imagem de que policial bom é o que mata bandido, na autorização velada de expulsar os sem-terra com violência, de exterminar os menores infratores, de matar traficantes.
O surpreendente é a violência como debate em raras oportunidades (Hannah Arendt) e não uma preocupação constante das entidades que se manifestaram em favor do juiz. A ideologia do estado brasileiro é essa, Maquiavélica, dos fins, do medo no lugar do respeito.
O policial também é um cidadão e o policial acusado de abuso de poder é o Estado materializado, personificado: o mal nominado e apontado. Mas, a culpa é de todos nós. Minha, como advogado, quando não noticio um abuso; do povo, porque não reclama por medo; da elite, que deseja uma política higienista simples; dos políticos despreparados que propugnam aumento das penas; de juízes que punem mais severamente do que a lei determina; de promotores que denunciam arbitrariamente. A sociedade também é culpada por tudo isso.
O fato é que não podemos admitir que um juiz federal seja tratado como foi, não porque é juiz federal, mas porque não queremos que ninguém seja tratado daquela forma. Dizer que o Brasil é um país subdesenvolvido, sem lei e sem respeito a ninguém não é discurso morto, mas é lamentável que ainda encontre ressonância prática em críticas veladas a uma atuação perniciosa e sistemática de alguns falsos policias que - dentro de uma perspectiva kantiana - enfraquecem o ordenamento jurídico como um todo e isso é muito grave. Não pode prender juiz federal como ocorreu e nenhum cidadão brasileiro ou estrangeiro aqui residente ou domiciliado. A diferença é que a prevenção especial negativa vai ser larga, reinante e absoluta porque a violência dos policiais terá uma resposta repressiva, fato que, comumente não ocorreria se fosse um cidadão qualquer, o que nos leva à conclusão que a prevenção especial positiva será nula ou pequena, pois a violência policial só reduzirá mesmo contra os juízes federais que se identificarem. Essa a conclusão do fato.
Os policiais estão errados porque desrespeitaram os direitos humanos mais elementares. Isso é óbvio. Mas eles também são vítimas do nosso sistema. Nem todos os policiais devem ser havidos por suspeitos, a maioria são honrados pais e mães de família que vivem temerosos, mas etiquetados (Howard Becker) com a mesma pecha que ajudam a propalar: “bandido - até que prove ao contrário”. São humanos também e possuem direitos. E a ideologia da elite nomina-os bodes expiatórios. Basta a lei certa e corretamente aplicada. A causa e o efeito.
É preciso distinguir entre culpa e responsabilidade social e individual. É mais complexo do que se quer imaginar. O fato não é um caso isolado, é comum, mas também não duvido que os policiais tenham bom nível de formação e apresentem, mesmo que formalmente, méritos profissionais e sejam amados pela família. A culpa não deve recair só sobre esses policiais individualmente porque eles também, nesse aspecto, são envoltos na ideologia dominante que manda eles serem assim, apesar da formação profissional dizer o contrário. A responsabilidade deve recair também mais alto, no comando, na secretaria, no governo. Nüremberg não julgou apenas os soldados rasos...
A polícia, no caso do juiz federal, não agiu de acordo com as normas formais, oficiais, da corporação, agiram, sim, pelas normas informais, mas não menos institucionalizadas da nossa atual sociedade. O barco é um só e cada um se defende como pode (quando pode), como bem sintetizaram - na letra “Selvagem” - Bi Ribeiro, João Barone e Herbert Vianna (Paralamas do Sucesso):
“A polícia apresenta suas armas
Escudos transparentes, cassetetes
Capacetes reluzentes
E a determinação de manter tudo
Em seu lugar
O governo apresenta suas armas
Discurso reticente, novidade inconsistente
E a liberdade cai por terra
Aos pés de um filme de Godard
A cidade apresenta suas armas
Meninos nos sinais, mendigos pelos cantos
E o espanto está nos olhos de quem vê
O grande monstro a se criar
Os negros apresentam suas armas
As costas marcadas, as mãos calejadas
E a esperteza que só tem quem tá
Cansado de apanhar”

A Procuração na Queixa-crime

Queixa-crime é a petição inicial da ação de iniciativa privada. Essa peça só pode ser formulada por advogado constituído através de procuração nos precisos termos do artigo 44, CPP, in verbis: “A queixa poderá ser dada por procurador com poderes especiais, devendo constar do instrumento do mandato o nome do querelante e a menção do fato criminoso, salvo quando tais esclarecimentos dependerem de diligências que devem ser previamente requeridas no juízo criminal.”
Esta procuração deve preencher todos os requisitos do referido artigo, onde se vislumbra a necessidade especial da menção do fato criminoso, não bastando a simples indicação do dispositivo legal ou o nomen juris atribuído à infração.
Esta formalidade alusiva à menção ao fato criminoso é uma garantia ao advogado , pois provada a falsidade da alegação e não estabelecido os limites do mandato poderá trazer conseqüências graves como o crime de denunciação caluniosa (art. 339, CP) e, até mesmo, indenização civil. É, pois “necessária para fixação da responsabilidade do mandante e do mandatário, que a procuração contenha poderes específicos para a queixa-crime, que objetiva a punição do fato criminoso que ela menciona” .
A representação processual, desse modo, se mostrará regular quando o instrumento de mandato consignar a outorga de poderes para a propositura de queixa-crime, nomeando-se o querelado e indicando-se, com especificidade, as vítimas, bem como os fatos e o preceito legal em que o primeiro estaria incurso. De todo salutar, ainda, nestes casos, o outorgante subscrever também a inicial da referida queixa , apesar de tal procedimento não isentar a juntada da devida procuração.
Como se sabe, via de regra, o direito de queixa deve ser exercido no prazo peremptório de seis meses (artigo 38, CPP e art. 103, CP) e as omissões ocorridas na queixa-crime ou procuração podem ser supridas nesse prazo. Ultrapassado esse, opera-se a decadência.
A manobra jurídica de se “emendar” a procuração decorre de interpretação do artigo 568 do CPP . Se a procuração não menciona o fato criminoso, limitando-se ao nomen juris dos delitos, sem expor como, quando e onde ou de que forma teriam ocorrido os fatos, evidente o vício de representação. Não sanado na época oportuna (a priori, antes do transcurso do prazo decadencial), enseja a extinção da punibilidade do agente, pela decadência do direito de propor queixa-crime .
O STF, todavia, em discrepância à jurisprudência majoritária e doutrina vem entendendo que seria possível a regularização da procuração até mesmo após o prazo decadencial tendo em vista que o artigo 568 do CPP não dispõe de maneira contrária, possibilita a ser sanada a ilegitimidade do representante da parte “a todo tempo” e nada prejudicaria o querelado, podendo-se, por isso, ter continuidade o processo .
Na hipótese, entretanto, da procuração estar irregular e já prolatada sentença o processo deverá ser declarado nulo ab initio. Após a sentença, não há interpretação que acuda a desídia processual do mandatário.
Se não houver, assim uma procuração escorreita tecnicamente, cabe ao juiz rejeitar a queixa liminarmente nos termos do art. 43, inc. III do CPP. Se assim não o fizer, dentro do prazo decadencial, ou até a sentença segundo o STF, poderá ocorrer a regularização. É importante que nesta regularização conste expressamente que o constituinte ratifica os atos anteriormente promovidos, a fim de se evitar nova nulidade.
Observe-se que se a inicial for assinada pelo querelante, supre-se a falha da procuração em não constar o “fato criminoso”, mas não a necessidade da existência da procuração. De outro modo, ausente a formalidade essencial à constituição e validade da queixa-crime, não sanada, é de se declarar extinta a punibilidade, forte no art. 107, IV, do Código Penal .

A Prisão Preventiva e a Presunção de Inocência

No direito romano, já se proclamava o instituto interdictum de libero homine exhibendo, ressaltando a prisão, como hoje, medida excepcional.

De longe vem, pois a idéia de que a prisão não é a regra. Entretanto, forte corrente política quer fazer, do medievo, paradigma jurídico e, das conquistas iluministas, tábula rasa. É o retorno do “prende, para ver se é inocente” ou “pena mínima ao inocente”.

A grave crise institucional que abala a República em seus Poderes vem trazendo conseqüências também na seara penal, mormente quando se faz das leis penais palanques eleitoreiros ou o epicentro das misérias humanas. Alavancam acusações gratuitas sobre o processo penal brasileiro ao aviso de sê-lo complacente. É bem verdade que todos nós gostaríamos de ter acesso às leis do Civitas Dei agostiniano, mas só nos foi relegado, mesmo, as leis da “Cidade de Deus”. Nessas condições, a escolhemos o processo constitucional, presumivelmente. A conquista desse sistema exigiu muitas vidas e muito sangue de inocentes. A História é testemunha. As barbáries provocadas ao logo da história do Direito Penal são repletas de exemplos, a começar por Jesus Cristo e a continuar com o rumoroso Caso dos Irmãos Naves. Só a simples possibilidade de se prender cautelarmente um inocente já sobraria razão para não se permitir a chicana panfletária de acusar o instituto da liberdade provisória de pró-impunidade. Ressalve-se, como lembra Eugênio Pacceli de Oliveira, liberdade provisória, não, prisão provisória...

Injustiças existiram e continuarão a existir, por isso mesmo há de se perquirir e combater, incansavelmente, os excessos, os exageros que diuturnamente pululam nessa imensa nação. Aceitar acriticamente processos ou prisões cautelares sob o manto roto da vindita jurídica é tentar debelar o incêndio com combustível. Prisão cautelar, especificamente, não serve para antecipar condenação ou ser mecanismo de enaltecimento da vítima. A preferência histórica brasileira, ao menos em tese, sempre foi pela liberdade individual como regra. Em outras palavras, qualquer prisão cautelar deve ser decretada apenas quando – rigorosamente - amparada pelos requisitos legais a se privilegiar a presunção de inocência ante a culpabilidade. Desta feita, a liberdade é regra. Exceção apenas quando concretamente se comprovar, em relação ao indiciado ou réu, a existência do propalado periculum libertatis. Esse pré-requisito é imprescindível e nada tem a ver com a gravidade genérica dos delitos ou a suposta agressividade e periculosidade do réu ou a natureza hedionda da prática.

Esses últimos elementos não podem constituir fundamentação idônea a autorizar a medida vexatória. Mesmo porque a gravidade do delito traz, em si mesma, aspectos já subsumidos no próprio tipo penal e os aspectos puramente subjetivos não servem à avaliação dos pressupostos da prisão preventiva. Temor maior parte de decisões onde a base são conclusões vagas, meramente prováveis e abstratas tais como a preocupação de que empreenda fuga ou influencie testemunhas. Sem vínculo com situação fática concreta, essas situações, não podem respaldar a medida constritiva nem sob o pálio da conveniência da instrução criminal (Habeas Corpus nº 57534/PA (2006/0078668-6), 5ª Turma do STJ, Rel. Gilson Dipp. j. 26.09.2006, unânime, DJ 23.10.2006). Ou se interpreta assim o artigo 312, CPP ou se coloca em risco todo o arcabouço principiológico da Carta, a se começar a admitir, como regra, a antecipação da reprimenda punitiva. Por isso mesmo, a doutrina e jurisprudência majoritária é firme no entendimento de que a interpretação do artigo 312, CPP, ao ser constitucionalizado, deve ser sempre restritiva, fazendo-se mister a configuração fática dos referidos requisitos. Esta a conclusão minerva: A legitimidade da prisão preventiva exige fundamentação que indique, com fulcro nos autos, e não em elucubrações passionais, a existência do crime e indícios suficientes de autoria, a necessidade de sua decretação pela verificação de pelo menos uma das circunstâncias contidas no caput do art. 312 do CPP. A decretação da prisão preventiva deve, necessariamente, estar amparada em um dos motivos constantes do art. 312 do Código de Processo Penal e, por força do art. 5º, XLI e 93, IX, da Constituição da República, o magistrado está obrigado a apontar os elementos concretos ensejadores da medida.

O periculum libertatis deve fundar-se em fatos concretos, que demonstrem que a liberdade do agente representa perigo real para o andamento do processo criminal, sob pena de consagrar-se a “presunção de culpado”, modelo rechaçado pelo ordenamento. Nossa Excelsa Corte vem proclamando, a propósito, que "A prerrogativa jurídica da liberdade - que possui extração constitucional (CF, art. 5º, LXI e LXV) - não pode ser ofendida por atos arbitrários do Poder Público, mesmo que se trate de pessoa acusada da suposta prática de crime hediondo, eis que, até que sobrevenha sentença condenatória irrecorrível (CF, art. 5º, LVII), não se revela possível presumir a culpabilidade do réu, qualquer que seja a natureza da infração penal que lhe tenha sido imputada" (Habeas Corpus 80.379/SP, 2ª Turma, rel. Min. Celso de Mello, DJ 25/05/01).

O ideal seria absolver todos os inocentes e condenar todos os culpados, mas a pretensão fica ao largo da falibilidade humana o que nos induz ao adágio de Décio, nocemtem absolvere satius est quam innocentem damnari (É preferível absolver um culpado do que condenar um inocente), endossado por Ulpiano: Satius est, impunitum relinqui facinus nocentes, quam innocentem damnari (É preferível deixar impune o delito de um culpado do que condenar a um inocente). Se presunção houver é que toda pessoa é inocente. Ou seja, não se pode considerar ninguém culpado até que a decisão transite em julgado. Esse princípio, de tão eterno e de tão inevitável, prescindiria de norma escrita, mas nunca de ser relembrado.

Lei Garante Benefícios a Doentes e Deficientes

Houve época em que os deficientes e os doentes eram encarados como um mal a ser excluído da sociedade, quando não, do seio da própria família. Na Roma Antiga, eram atirados aos leões ou nos abismos. Leis restringiam-lhes os direitos mais elementares. Essa segregação irracional já era violentamente rechaçada pelo filósofo Aristóteles que defendia a inclusão dessas pessoas na sociedade produtiva, assim como um plano de assistência. Na nossa sociedade mais moderna, há um esforço para a inclusão dessas pessoas consagrando privilégios, e exortando preconceitos. A Literatura é prova viva desse pensamento quando lemos Machado de Assis (O Alienista) e José Saramago (Ensaio sobre a Cegueira). Muitos direitos são garantidos pelos emaranhados legislativos não só de nossa República. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem, da ONU (1948), na Constituição da nossa República (1988), em seu artigo 277, e em inúmeros dispositivos infraconstitucionais (federais, estaduais e municipais) há garantias de privilégios aos deficientes e acometidos por enfermidades. Esses privilégios dizem conta à saúde, ao trabalho, à educação, à securidade social, ao respeito e ao livre acesso em espaços públicos a fim de que essas pessoas possam também desfrutar dos direitos fundamentais da cidadania e do lazer. Mas, infelizmente, a grande maioria deles é de total desconhecimento até mesmo dos operadores do direito. Essa situação enfraquece o exercício pleno da cidadania, pois os serviços públicos já oferecidos não chegam às pessoas em situação de risco social ou de necessidades médicas. Isso é de extrema gravidade: a inclusão e a participação efetiva da população carente no sistema organizacional da sociedade não só promove o desenvolvimento comunitário, mas também aprimora as relações sócio-econômicas e a inclusão no mercado de trabalho, além de trazer benefícios diretos na contenção da violência que nos assola. Um nicho desses direitos desconhecidos diz conta às pessoas que sofrem de paralisia, câncer, lepra, AIDS e uma série de outras doenças incapacitantes, seja total ou parcialmente. A grande maioria dessas pessoas não sabe que têm direitos a isenções de impostos, taxas, desconto no preço para compra de carros adaptados, passe livre em metrô e transporte coletivo, além de remédios gratuitos. Essas pessoas têm inúmeros direitos, mas ninguém divulga. Entre os direitos que podem ser requeridos estão a aposentadoria integral (mesmo sem contar com o tempo necessário de contribuição ao INSS), isenções sobre o imposto de renda, a CPMF e a contribuição previdenciária. Se houver deficiência física é possível isenção de IPI, ICMS, IOF e IPVA (isenção vitalícia). O preço de carro 'especial' ou 'adaptado' cai em 30% (trinta por cento). Há direito ao saque total de FGTS e fundos PIS ou PASEP, direito da quitação de valor financiado (anterior à doença) para compra de imóvel e atendimento médico domiciliar, além de remédios gratuitos. No livro 'Câncer - Direito e Cidadania' , de autoria da advogada Antonieta Barbosa, publicado pela Editora ARX, há a coletânea dessas informações preciosas. Também existem cartilhas na OAB, no Ministério Público, na Defensoria Pública da União e dos Estados. Somente com a participação de todos nós, num forte abraço fraterno e cidadão, é que poderemos almejar uma sociedade mais justa e equânime. Fazer do Brasil um lugar melhor para si viver passa pela garantia de se efetivar esses direitos aos deficientes e acometidos por moléstias graves.