terça-feira, 7 de outubro de 2008

Competência pela prevenção ao crime de receptação

O equivocado entendimento jurisprudencial de se fixar a competência pela prevenção, ao crime de receptação, quando não conexo com o crime precedente

» Warley Belo
Se o furto ocorre em comarca diversa da receptação, como se determina a competência?

É inegável a existência de conexão probatória ou instrumental entre os crimes de furto, por exemplo, e receptação, nos termos do art. 76, III do CPP. Para a configuração do delito de receptação, essencial a comprovação da origem ilícita da res. Em princípio, assim, considerando o concurso de jurisdições de mesma categoria e a identidade das penas abstratamente cominadas aos delitos, a competência é determinada pela prevenção, a teor do art. 78, II, 'c' do CPP. Entretanto, se desconhecida a autoria do crime de furto deve incidir a regra geral do art. 70 do CPP, prevalecendo a competência do lugar em que se consumou o crime de receptação. É dizer: embora ao furto – por exemplo - seja cominada pena mais grave, a competência será do juízo do local em que ocorreu a receptação.

Se existe conexão, caso em que se sabe quem praticou o furto ou o roubo ou se há investigação paralela a determinar a autoria desses crimes, não há dúvida: a competência é do local desses crimes precedentes. Todavia, a competência será a do local da receptação – e não o é por força da prevenção, frise-se - se a autoria do furto permanece indeterminada. Isso porque não há conexão quando só há uma única demanda e, se existissem duas, a competência dependeria da autoria do crime precedente (furto)[1].

Damásio Evangelista de Jesus[2] aponta que a receptação “consuma-se com o ato da aquisição, recebimento, ocultação etc. Ocorrendo com a efetiva tradição.” Desse modo, a consumação no crime de receptação se dá no local em que perpetrada a tradição da coisa, nos termos do art. 70, do CPP.

Se o crime precedente é de autoria desconhecida, a competência para o julgado é, pois da comarca onde se deu a receptação, ao contrário do que temos assistidos em julgados que dão a competência – equivocadamente - pela prevenção.


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Notas:

[1] A jurisprudência já decidiu assim: "Conflito de competência. Receptação. Furto. Autoria desconhecida. Conexão inexistente. Local da consumação. I - Noticiados os delitos de receptação e furto - mas indeterminada a autoria deste último, não tendo sido sequer instaurado inquérito para a sua apuração, evidencia-se a inexistência de conexão, devendo haver a apuração isolada da receptação. II - Firma-se a competência, para o processo e julgamento do feito, do juízo em que consumada a receptação, ou seja, onde perpetrados os atos de aquisição, recebimento ou ocultação do bem - ocorridos com a efetiva tradição. III - conflito conhecido para determinar a competência do juízo de direito de Ipameri-GO, o suscitado." (CC 17.834/SP, Relator ministro Gilson Dipp, in dj 17/2/99).

[2] Direito Penal, vol. 2, 26ª. Ed., SP: Saraiva, p. 506.


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Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma: BELO, Warley. O equivocado entendimento jurisprudencial de se fixar a competência pela prevenção, ao crime de receptação, quando não conexo com o crime precedente. Conteúdo Jurídico, Brasília-DF: 19 set. 2008. Disponível em: . Acesso em: 07 out. 2008.

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Supressão de instância em matéria de ordem pública?

Por Warley Belo,advogado (OAB/MG nº 71.877)

Prescrita abstratamente a ação penal, o advogado impetra habeas corpus, ao que o relator da Turma Recursal, argumenta a tese de “supressão de instância” pelo fato de o advogado não ter “provocado” o Juízo a quo a respeito da matéria. Em pesquisa nos saites dos tribunais deparamos com algumas decisões do mesmo jaez... sim Todavia, urge chamar à ordem o abuso de tal exigência de se “prequestionar [1] matéria de ordem pública”, mormente a prescrição. Para o conhecimento desta, basta que a coação seja imputável ao órgão de gradação jurisdicional inferior. Tal poderá ocorrer quando esse haja examinado e não repelido a ilegalidade, quando se omite de decidir sobre a alegação do impetrante ou sobre matéria sobre a qual, no âmbito de conhecimento da causa a ele devolvida, se devesse pronunciar de ofício. Conceitualmente, "a prescrição penal é a perda do poder-dever de punir do Estado pelo não-exercício da pretensão punitiva ou da pretensão executória durante certo tempo. (...) A prescrição atinge, em primeiro lugar o direito de punir do Estado e, em conseqüência, extingue o direito de ação; a perempção e a decadência, ao contrário, alcançam primeiro o direito de ação e, por efeito, o Estado perde a pretensão punitiva". [2] Assim sendo, imperativo se mostra o reconhecimento da extinção da punibilidade, em que grau for, independentemente de “prequestionamento”. A questão é grave, porque o direito do jurisdicionado de acesso à Justiça foi liminarmente cerceado [3]. A omissão também configura constrangimento ilegal a merecer proteção estatal. Nos termos do art. 61 do CPP, há a obrigação ex officio de julgar extinta a punibilidade. Ex vi: “Art. 61 - Em qualquer fase do processo, o juiz, se reconhecer extinta a punibilidade, deverá declará-lo de ofício.” A simples omissão sobre um fundamento posto é, em si mesmo, uma coação [4], e o órgão ad quem, considerando evidenciado o constrangimento ilegal, pode fazê-lo cessar de imediato e não, devolver o tema ao tribunal ou juiz omisso. Se assim não procede para declarar fato prescrito, ipso facto, torna-se autoridade coatora. É explícita a falta justa causa, encontrando guarita no art. 648, VII, CPP: “Art. 648 - A coação considerar-se-á ilegal: (...) VII - quando extinta a punibilidade.” A causa é de conhecimento de ofício e é posição pacífica: prescrição se conhece de ofício [5]. Em levando a cabo o respeitável fundamento da exigência de “prequestionamento” para a prescrição, a Turma Recursal que não apreciasse - em grau de apelação - a prescrição da ação, poderia conhecer pedido de habeas corpus contra si mesma. No caso, a coação partiria da Turma prolatora da decisão omissa... e isso, sabemos, não é possível. Se a Turma Recursal não analisa a prescrição – matéria pública [6] – é ela que se torna coatora, devendo o habeas corpus ser dirigido ao Tribunal de Justiça [7]...Não por outro motivo, também o juiz que não relaxa a prisão em flagrante ilegal, omitindo-se, torna-se autoridade coatora e cabe ao tribunal conhecer do remédio sanador. O advogado não precisa “provocar” o juiz a se manifestar de questão de ofício, pública, para, em se tendo explicitamente negado o direito pleiteado, se socorrer no tribunal... Dessa forma, não se pode falar em “supressão de instância” [8]. Ademais, ao confirmar, na sua resposta, o ato coator, mais uma vez, estará o Juízo a quo configurando o público constrangimento ilegal. Ou seja, o Juízo acusado confirma o ato coator e, mesmo assim, o pedido heróico não seria conhecido... Não existe, pois prequestionamento de prescrição. Pode, o advogado, “escolher, livremente, a seu exclusivo alvedrio, entre requerer ao juiz a declaração da prescrição, ou desde logo impetrar ao tribunal uma ordem de trancamento da ação.” [9]



[1] José Teophilo Fleury (Fleury, José Theophilo. Do prequestionamento nos recursos especial e extraordinário súmula 356 x súmula 211 do STJ? IN: Aspectos Polêmicos e atuais dos recursos cíveis de acordo com a lei 9756/98. 1ª Edição – São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999) Expôs assim: "O prequestionamento significa que as questões federal e/ou constitucional previamente invocadas pelas partes devem ser decididas pelo Tribunal local. Pode ocorrer ainda, o prequestionamento, quando a questão federal surja no próprio acórdão recorrido, sem que as partes dela tenham tratado. Prequestionamento, no caso, é o questionamento prévio da questão jurídica invocada nos recursos especial e/ou extraordinário, no acórdão recorrido". [2] Jesus, Damásio Evangelista de. Prescrição Penal, 2ª ed., São Paulo, Editora Saraiva, 1985, p. 20. [3] Trata-se verdadeiramente de restrição de acesso à ordem jurídica justa: “Seja nos casos de controle jurisdicional indispensável, seja quando simplesmente uma pretensão deixou de ser satisfeita por quem podia satisfazê-la, a pretensão trazida pela parte ao processo clama por uma solução que faça justiça a ambos os participantes do conflito e do processo. Por isso é que o processo deve ser manipulado de modo a propiciar às partes o acesso à justiça, o qual se resolve, na expressão muito feliz da doutrina brasileira recente em ‘acesso à ordem jurídica justa”. Acesso à justiça não se identifica, pois, com a mera admissão ao processo, ou possibilidade de ingresso em juízo. Como se verá no texto, para que haja o efetivo acesso à justiça é indispensável que o maior número possível de pessoas seja admitido a demandar e a defender-se adequadamente (inclusive em processo criminal), sendo também condenáveis as restrições quanto a determinadas causas (pequeno valor, interesses difusos); mas para a integralidade do acesso à justiça, é preciso isso e muito mais.” (CINTRA, Antônio Carlos de Araújo; GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel. Teoria geral do processo. 18ª. ed. rev. e atual., São Paulo: Malheiros, 2002, p. 33).[4] “Omisso o decisório de segundo grau quanto a eventual prescrição da ação penal, de se ter por implicitamente negado o reconhecimento da extinção da punibilidade.” (Tacrim-SP – HC – Rel. Edmond Acar, Jutacrim-SP 32/92) [5] "Recurso especial. Penal. Prescrição. Matéria de ordem pública. Reconhecimento. Extinção da punibilidade. 1. Tratando-se de matéria de ordem pública, a prescrição deve ser reconhecida de ofício e a qualquer tempo. 2. Declarada a extinção da punibilidade. Recurso prejudicado." (STJ, 6.ª turma, resp 132343/mt, rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, v.u., j. 25.08.2004; in dju de 13.09.2004, p. 297). "Habeas corpus. Processual penal. Prescrição superveniente. Matéria de ordem pública. Ocorrência. Extinção da punibilidade. 1. Por se tratar de matéria de ordem pública, é prescindível a provocação da parte ou a apreciação pelo órgão jurisdicional a quo para o reconhecimento da prescrição, devendo, inclusive, ser declarada de ofício. (...) 4. Ordem concedida para declarar extinta a punibilidade estatal em face da prescrição da pretensão punitiva superveniente, nos termos do art. 107, inciso iv, c.c os arts. 109, inciso vi, e 110, § 1.º, todos do código penal." (STJ, 5.ª turma, hc 41228/sp, rel.ª min.ª Laurita Vaz, v.u., j. 28.06.2005; in dju de 29.08.2005, p. 380). "Penal. Sentença condenatória. Pretensão punitiva. Prescrição. Questão de ordem pública. Conhecimento ex officio. - na hipótese de condenação à pena de dois anos, extingue-se a punibilidade pela ocorrência da prescrição da pretensão punitiva com o decurso de quatro anos, contados da data da última causa de interrupção do prazo prescricional. - a prescrição penal, por ser matéria de ordem pública, deve ser conhecida e declarada em qualquer fase do processo, inclusive de ofício. - prescrição declarada. Recurso especial prejudicado." (STJ, 6.ª turma, Resp 333012/RS, rel. Mim. Vicente Leal, v.u., j. 11.03.2003; in dju de 07.04.2003, p. 345). "Recurso especial. Penal. Homicídio e lesão corporal culposos. Concurso formal. Prescrição da pretensão punitiva. Matéria de ordem pública. Declaração de ofício. Recurso prejudicado. (...) 5. Tratando-se de matéria de ordem pública, é prescindível a provocação da parte para o reconhecimento da prescrição, devendo esta ser declarada de ofício, em qualquer fase do processo. 6. Declaração da extinção da punibilidade estatal de ofício, pela prescrição da pretensão punitiva superveniente, julgando prejudicado o recurso." (STJ, 5.ª turma, resp 337747/mg, rel.ª min.ª laurita vaz, v.u., j. 13.05.2003; in dju de 16.06.2003, p. 369). [6] De Plácido e Silva, extraímos: “ORDEM PÚBLICA. Entende-se a situação e o estado de legalidade normal, em que as autoridades exercem suas precípuas atribuições e os cidadãos as respeitam e acatam, sem constrangimento ou protesto” (Vocabulário Jurídico, Vols. IV, p. 291). [7] A Súmula nº 690 do STF, de 24/09/2003 (DJ de 9/10/2003, p. 5; DJ de 10/10/2003, p. 5; DJ de 13/10/2003, p. 5), estabelece que a competência Originária para conhecimento de Habeas Corpus Contra Turma Recursal de Juizados Especiais Criminais é do STF, ex vi: “Compete originariamente ao Supremo Tribunal Federal o julgamento de habeas corpus contra decisão de turma recursal de juizados especiais criminais”. Todavia, hodiernamente, não há prevalência pelo que se deduz dos HCs nos. 86834-DJ de 9/3/2007, 89378 AgR-DJ de 15/12/2006 e 90905 AgR-DJ de 11/5/2007, onde o próprio STF determina a competência para os Tribunais de Justiça dos Estados. A propósito: "COMPETÊNCIA - HABEAS CORPUS - ATO DE TURMA RECURSAL. Estando os integrantes das turmas recursais dos juizados especiais submetidos, nos crimes comuns e nos de responsabilidade, à jurisdição do Tribunal de Justiça ou do Tribunal Regional Federal, incumbe a cada qual, conforme o caso, julgar os habeas impetrados contra ato que tenham praticado" (STF. Tribunal Pleno. HC 86.834/SP, Rel. Min. Marco Aurélio. j. 23.08.2006, publ. DJU 09.03.2007, pág. 26). "AGRAVO REGIMENTAL. PROCESSO PENAL. HABEAS CORPUS. TURMA RECURSAL. COMPETÊNCIA. TRIBUNAL DE JUSTIÇA. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 690 DESTA CORTE. I - Compete ao Tribunal de Justiça do Estado processar e julgar habeas corpus impetrado contra ato emanado de Turma Recursal. II - Com o entendimento firmado no julgamento do HC 86.834/SP, fica superada a Súmula 690 desta Corte. III - Agravo regimental desprovido". (STF. 1ª Turma. AgReg no HC 89.378/RJ. Rel. Min. Ricardo Lewandowski. j. 28.11.2006, publ. DJU 15.12.2006, pág. 85). [8] "Habeas corpus. Extinção da punibilidade pela prescrição da pretensão punitiva. Pedido não apreciado pelo tribunal de origem. Supressão de instância. Matéria de ordem pública. Concessão de ofício. 1. Questão não apreciada pelo tribunal de origem não pode ser examinada por esta corte, sob pena de supressão de instância. 2. Tratando-se a prescrição de matéria de ordem pública, deve ser examinada de ofício. 3. Ordem concedida, de ofício, para reconhecer a prescrição da pretensão punitiva, extinguindo-se a punibilidade do paciente na ação penal de que aqui se cuida." (STJ, 6.ª turma, hc 31883/rj, rel. Min. Paulo Gallotti, v.u., j. 15.03.2005; in dju de 04.04.2005, p. 355). [9] TJSP – HC – Rel. Adrinao Marrey – RT 413/92 e Franco, Alberto Silva ET all. Código de Processo Penal e sua Interpretação..., volume 2, SP: RT, 2006, p. 1129.