quinta-feira, 26 de agosto de 2021

O Direito e a Política na Condenação de Sócrates - Law and Politics in the judgment of Socrates

 

 Artigo de minha autoria sobre o processo de Sócrates - ocorrido há quase 2.500 anos - foi publicado na Revista Fórum de Ciências Criminais (BELO, Warley. O direito e a política na condenação de Sócrates. Revista Fórum de Ciências Criminais – RFCC, Belo Horizonte, ano 8, n. 15, p. 205-215, jan./jun. 2021).

Nesse artigo, faço estudo paralelo ao pernicioso e moderno "ativismo judicial".

Deixo, o artigo, à disposição em meu blog, mas recomendo acesso e cadastro na Revista Fórum que tem excelentes trabalhos publicados e de forma gratuita em seu portal (https://www.forumconhecimento.com.br/conheca/).

Uma curiosidade sobre esse artigo é que ele foi a base de uma palestra que ministrei na Grécia, na Embaixada Brasileira de Atenas, por ocasião de encontro jurídico presidido pelo Doutor Léo da Silva Alves.

Na capital grega - é claro que não perderia a oportunidade como penalista - visitei o local onde Sócrates permaneceu preso por 30 dias até beber cicuta.   



Parte da cena da morte de Sócrates imortalizada pelo pintor francês Jacques-Louis David (1748 – 1825), na tela “A morte de Sócrates”, de 1787.






Ministrando a palestra na Embaixada Brasileira em Atenas.






No local onde Sócrates permaneceu preso há quase 2.500 anos.




O Direito e a Política na Condenação de Sócrates

Law and Politics in the judgment of Socrates

 

 

 

 

Warley Belo

Presidente da OAB/MG – Subseção Venda Nova

Mestre em Ciências Penais - UFMG

 Advogado Criminalista

Professor de Direito Penal

 

 

Title of work: Law and Politics in the judgment of Socrates

Summary: Historical, textual and interpretative questions creeps in the trial and execution of the aged philosopher Socrates in 399 BC. The majority of the jurors chosen by lot voted to convict Socrates of the two charges. After, voted to determine his punishment, and agreed to a sentence of death to be executed by Socrates’s drinking a poisonous beverage of hemlock. Were the Athenians really holding a political trial, and did they not care about Socrates?

Key-words: Law´s History; Socrates; Atenas; Law and Politic.

Introdução

 

Um paradoxo pode ser definido como uma contradição que, neste texto, nada tem a ver com o paradoxo da filosofia socrática. O problema aqui é decorrente de uma condenação criminal ter sido consumada no berço da democracia ocidental por opinião política destoante.

A hipótese é a de que a condenação de Sócrates foi política e injusta. Observe-se que Atenas, sendo uma cidade "democrática", levou a julgamento e morte um ilustre filho por fazer justamente aquilo que a democracia mais defende: a liberdade de expressão. O risco desse paradoxo só foi possível por influência política.

A abordagem é qualitativa, pois traz como alicerce os estudos de historiadores e juristas sobre o tema do julgamento de Sócrates. A pesquisa é de natureza básica, pois a preocupação é teórica. O procedimento utilizado é bibliográfico e de estudo do processo de Sócrates.

O método é eminentemente dialético, pois é necessário confrontar teses contextualizando-as em seus momentos históricos próprios. Sua investigação mais avançada nos leva a um objetivo geral que é responder se, no berço da democracia, onde a liberdade de expressão era alicerce basilar, um homem foi condenado por ter posição política distinta.

A justificativa é a de que o julgamento de Sócrates é atemporal e de alto interessante histórico. Esse processo só perde para o julgamento de Jesus em termos de fama e importância histórica no ocidente. O seu estudo é parte obrigatória das cadeiras de Direito e o debate pode servir de fundo para questionamento acadêmicos sobre os limites da influência política nas decisões judiciais.

Para tanto, distinguiremos democracia e liberdade de expressão da Grécia antiga e hoje, traremos elementos (a maiêutica e o daimon) que permeavam a filosofia de Sócrates e que acreditamos ter contribuído com o desfecho, se pesquisará sobre a acusação, a sentença e sua condenação. Após, a conclusão.

Democracia e Liberdade de Expressão

 

Aquilo que se chamou democrático na Grécia em pouco se assemelha ao que hoje chamamos Democracia. O sistema, que surge com Clístenes no século IV antes de Cristo, se restringia ao voto dos homens, maiores de idade, nascidos na cidade-Estado de Atenas. Esse era o conceito de cidadão. Existiam os indivíduos que propunham, votavam as leis e julgavam diretamente, mas também existiam os escravos. A opinião das mulheres, escravos, menores, estrangeiros não interessavam. Hoje, o voto é universal - para maiores de 18 anos até os 70 anos, obrigatório - sem critério de sexo, religião ou profissão e representativo. A diferença central, pois, é a de que não havia igualdade, tal qual a entendemos. Nada obstante, isso não nos exime de traçarmos algumas digressões entorno do tema e sua vinculação com o atual momento político no Brasil, mormente com olhos no ativismo judicial.

Por outro lado, não há dúvida de que os atenienses gozavam de liberdade de expressão, aqui entendida como o direito de expor ideias, pensamentos, crenças. Realmente era um princípio básico da democracia ateniense. Citamos o discurso de Péricles:

 

"Nós (atenienses) somos os únicos, de fato, a considerar que um homem que se desinteressa da coisa pública não é um cidadão tranqüilo, mas antes um cidadão inútil; pois a palavra não é, para nós, um obstáculo à ação; ao contrário, consideramos perigoso passar à ação antes de nos termos suficientemente esclarecido pelo debate". (apud COMPARATO, 2001, p. 156)

 

Essa liberdade de se expressar era uma das características marcantes da democracia ateniense de forma que é espantoso a condenação de Sócrates. Para compreendê-la, julgamos necessário o conhecimento de dois conceitos preliminares: maiêutica e daimon.

Maiêutica

 

Maiêutica é um processo de conhecimento construído pelo filósofo que consistia em fazer-se compreender sem conhecimento e, posteriormente, criar uma concepção distinta da primária. Sócrates utilizava-se de sua maiêutica para reavaliar as ideias de seus oponentes, nem sempre de maneira cortês. Através de perguntas sobre diversos aspectos, fazia seu interlocutor entrar em contradição. Entendemos que esse método, foi um dos componentes a lhe traduzir inimizades, por isso o relevamos. Seria como se Sócrates fosse um médico obstetra a retirar a verdade do interior do ser humano, tirar o conhecimento, como se fosse um parto. A analogia é também pertinente no contexto do nascimento ser algo simples, mas que inaugura um mundo completamente complexo e pode ser muito doloroso. Del Vecchio aduziu:

 

Discutia Sócrates de modo peculiar, multiplicando as perguntas e a elas dando respostas de maravilhosa e concludente simplicidade. Ao contrário dos Sofistas, que tudo afirmavam saber, declarava ele nada saber. Molestava-os com a sua ironia, e confundia-os, interrogando-os (ironia - pergunta, interrogação) sobre questões aparentemente simples, mas, no fundo, muito difíceis. Deste modo, constrangia-os, indirectamente, a darem-lhe razão. (DEL VECCHIO, 1979, p. 37).

 

Então, construía pergunta sobre pergunta até que seu interlocutor ficasse sem saber a resposta demonstrando assim desconhecer, na verdade, o assunto. O famoso aforismo “só sei que nada sei” decorre exatamente disso. Sócrates queria demonstrar que ninguém tinha conhecimento, nem mesmo ele. Tanto que ele não conceituava absolutamente nada. Só refutava os outros. É uma técnica de se colocar num beco sem saída. Não responde nada e, ainda, destrói o que foi construído. Entretanto, ele, ao menos, sabia que não tinha conhecimento sobre os assuntos. Era o máximo do insulto a pretensão de destruir todo o argumento do interlocutor e se dizer ignorante. É como se dissesse: “Você sabe menos do eu, mas eu nada sei.” Desta forma, Sócrates demonstrava que o conhecimento seria intangível, até mesmo para ele (STONE, 2005, p. 61).

Esse método atraia lhe fez angariar muitos inimigos porque se sentiam humilhados publicamente e se chocava com o valor ateniense de sabedoria intrínseca ao homem. Certamente sua atuação social com a maiêutica era desconfortável e antipática para seus opositores sofistas e influenciou seu julgamento no aspecto subjetivo.

Daimon

 

Além da maiêutica, outro importante elemento a se ter conhecimento para analisar o contexto social de Sócrates com os sofistas e atenienses em geral, era o denominado daimon. Tal questão nos leva a investigar se Sócrates deixou-se levar pela acusação para sair vitorioso, ao final, da querela.

Para Hegel (2001, p. 244), Sócrates foi uma personalidade histórica imbuída em respeitar a sua própria consciência acima de tudo. Essa, que ele denominava daimon. Sua concepção de liberdade individual, em algum momento, encontrou sólida barreira na visão ateniense de ser um cidadão livre dos preceitos religiosos. Se não fosse assim, não haveria o processo e muito menos sua condenação por desrespeito às entidades sagradas. Esse daimon - que grosseiramente traduzimos como intuição - acompanhou o filósofo desde tenra idade e era sua voz interior que lhe orientava. Considerava-a favorável como se fosse seu protetor e guia. Em alguns momentos, parece que Sócrates interpretava o daimon como seu destino, como mensageiro dos deuses.

Aqui um importante ponto porque Sócrates parece aceitar com naturalidade seu daimon condenatório, no ponto, um objeto de investigação neste artigo. Sócrates sabia que poderia construir uma sólida argumentação contra as vagas acusações recebidas promovendo, assim, sua inocência. Entretanto, opta claramente por outro caminho, o de se silenciar e fazer uma defesa pífia... Talvez, o filósofo tenha observado que sua eventual vitória no processo colocaria os atenienses com a razão e ele errado. Assim sendo, Sócrates teria imposto sua própria consciência em conflito com a ação de todos os demais e a própria concepção de democracia.

Ele criou um ambiente de condenação e deu aos atenienses toda razão para desprezá-lo, mas não o suficiente ou fundamentalmente para condená-lo à morte. A democracia ateniense, assim, teria cometido um crime e seu móvel era a intolerância com um pensar político diferente. A armadilha de Sócrates alcançou posteriormente também seus acusadores: os atenienses se arrependeram e condenaram Meleto à morte e expulsaram Ânito e Lícon da cidade logo após a execução de Sócrates. Com sua “derrota” processual, Sócrates atingiu de morte o conceito de democracia ateniense.

A procura deliberada por uma autocondenação explica muitas situações desse processo, entrementes não justifica a desproporcionalidade dos valores envolvidos. É tênue, assim, a linha de separação entre um Sócrates herói trágico shakespeariano de um Sócrates ranzinza com uma incompreendida vontade de morrer.

A Acusação

 

A historiografia do julgamento de Sócrates encontra-se narrada em 4 diálogos produzidos por Platão: Eutífron, Apologia de Sócrates, Críton e Fédon. O relato do julgamento feito por Platão (428-348 a.C.) - em a Apologia de Sócrates - é tido por I. F. STONE (2005) como bastante fiel aos fatos.

Ele narra que no ano de 399 antes de Cristo, em Atenas (Grécia), Sócrates, considerado o pai da filosofia moderna, um dos maiores pensadores da História e o homem mais inteligente do mundo pelo Oráculo de Delfos, era sentenciado à morte. Deveria beber cicuta.

Diante do tribunal popular, Sócrates foi acusado pelo poeta Meleto, pelo rico curtidor de peles, influente orador e político Anitos, e por Lícon, personagem desconhecido. A acusação era de conspirar contra o Estado por “não conhecer os mesmos deuses da cidade, de introduzir novas divindades e de corromper a juventude” (PLATÃO, 2019, p. 26). Naquela época, qualquer um poderia apresentar uma ação criminal, disposição assim moldada desde a época de Sólon, um século antes. É neste sentido que comenta Platão (2019, p. 28): "As acusações consistem mais ou menos no seguinte: Sócrates é um malfeitor por corromper a mocidade e não crer nos deuses do Estado, mas em outros seres espirituais".

Em cima de tais acusações, o jornalista estadunidense I. F. STONE discorre:

 

As duas acusações específicas são igualmente vagas. Não são mencionados atos concretos contra a cidade, mas os ensinamentos e as convicções de Sócrates. Nem na acusação nem no julgamento foi mencionado nenhum ato concreto de sacrilégio ou desrespeito aos deuses da cidade, nem nenhum atentado ou conspiração contra as instituições democráticas atenienses. Sócrates foi levado a julgamento por causa do que ele disse, e não por nada que tivesse feito. (2005, p. 236)

 

Sócrates nunca escreveu uma linha porque dizia que as suas ideias não eram permanentes. Suas palavras, entretanto, se eternizaram pelos trabalhos de Platão, seu principal discípulo, e Xenofonte, um amigo do filósofo. Por isso mesmo, a interpretação do que teria defendido Sócrates encontra certa dificuldade neste contexto.

Parece-nos inconteste, todavia, que Sócrates defendia o governo de um só: um sábio. Mas, Sócrates, de Xenofonte, propõe reis dentro dos limites das leis; enquanto Sócrates, de Platão, não admitia nenhuma limitação ao rei-filósofo (STONE, 2005, p. 16). De qualquer modo, achava ridícula a ideia do voto.

Seu pensamento, em linhas gerais, era que não titubeávamos a procurar um sapateiro, um médico ou um costureiro para exercerem tais misteres profissionais porque eles se prepararam para tais fins. Entretanto, para governar uma cidade, escolhemos na sorte pelo voto. O correto seria, analogamente, procurar alguém preparado adrede para exercer a nobre função. Essa posição parecia mais como uma volta à monarquia o que deveria ser considerado muito excêntrico e provocativo. Seria como se defendesse hoje a monarquia nos Estados Unidos (STONE, 2005, p. 31). Sócrates rebatia afirmando não defender tal sistema de governo e sim uma nova forma de governo de um só indivíduo, de um perito em governar e não escolhido aleatoriamente. Uma visão incômoda para o equilíbrio da cidade naquele momento histórico ainda mais quando dois de seus discípulos incorriam pela busca do poder: Alcibíades e Crítias.

A Sentença

 

A organização judiciária de Atenas iniciou-se com Sólon e foi seguida por Drácon, que redigiu um código de leis no final do século VII, a.C.. Admite-se pensar que até o século V a.C. tenha se mantido muitas dessas leis (MOSSÉ, 1989, p. 100). Com efeito, no julgamento de Sócrates se utilizou do tribunal popular (Helieia) formado por seis mil juízes sorteados ao acaso anualmente. O número de cidadãos convocados para julgar era variável de 201 a 2501 de acordo com a importância do caso. O número era sempre ímpar para se ter certeza de que haveria maioria. Com o fim dos debates, marcados por um relógio d´água, os juízes deveriam depositar uma pedra em uma das urnas em frente à tribuna. No julgamento de um crime em Atenas, o júri votava duas vezes: para condenar ou absolver e depois, no caso de condenação, para aplicar a pena.

Sócrates foi considerado culpado por 280 dos 501 jurados escolhidos por sorteio entre os cidadãos de Atenas. A margem de 30 votos para mudar o veredicto deixou até mesmo Sócrates surpreso (STONE, 2005, p. 229), pois tentara demonstrar que ele tinha razão e a democracia ateniense estava errada (STONE, 2005, p. 236). Se ele fosse absolvido, Atenas sairia fortalecida porque o voto teria escolhido o caminho justo, correto e Sócrates pretendia provar exatamente o contrário, ou seja, que o voto, a democracia, essa forma de administrar não era a melhor...

Mesmo estando diante dos juízes e dos ouvintes do seu julgamento, Sócrates, com um tom de ironia, desconhece as acusações e não pede sua absolvição e tampouco sua condenação. Para ele, mesmo se as acusações fossem verdadeiras, não haveria por que mudar sua atuação.

A Condenação

 

Como era de praxe, após o veredicto da condenação, Sócrates foi convidado a fixar sua pena. Meleto havia pedido a pena de morte. Dentro do quadro da acusação de somenos gravidade, dos 221 votos absolvendo-o, parece - aos historiadores - que o condenado não teria obstáculos em transmutar a pena máxima em qualquer outra punição. A Assembleia dividida se sentiria até mais confortável por uma condenação sem grandes consequências. Seus amigos sugeriram a pena de multa. Mas, Sócrates respondeu que deveria ser recompensado com alimentação gratuita pelo resto de sua vida no Pritaneu (local nobre onde se recebiam os vencedores olímpicos e estavam fixadas as leis de Sólon). Na segunda parte da Apologia, Platão descreve esse momento:

 

"Ora, o homem (Meleto) propõe a sentença de morte. Bem; e eu, que pena vos hei de propor em troca, Atenienses? A que mereço, não é claro? Qual será? Que sentença corporal ou pecuniária mereço, eu que entendi de não levar uma vida quieta? Eu que, negligenciando o de que cuida toda gente - riquezas, negócios, postos militares, tribunas e funções públicas, conchavos e lutas que ocorrem na política, coisas em que me considero de fato por demais pundonoroso para me imiscuir sem me perder -, não me dediquei àquilo a que, se me dedicasse, haveria de ser completamente inútil para vós e para mim? Eu que me entreguei à procura de cada um de vós em particular, a fim de proporcionar-lhe o que declaro o maior dos benefícios, tentando persuadir cada um de vós a cuidar menos do que é seu do que de si próprio, para a ser quanto melhor e mais sensato, menos dos interesses do povo que do próprio povo, adotado o mesmo princípio nos demais cuidados? Que sentença mereço por ser assim? Algo de bom, Atenienses, se há de ser a sentença verdadeiramente proporcionada ao mérito; não só, mas algo de bom adequado a minha pessoa. O que é adequado a um benfeitor pobre, que precisa de lazeres para vos viver exortando? Nada tão adequado a tal homem, Atenienses, como ser sustentado no Pritaneu; muito mais do que a um de vós que haja vencido, nas Olimpíadas, uma corrida de cavalos, de bigas ou quadrigas. Esse vos dá a impressão da felicidade; eu, a felicidade; ele não carece de sustento, eu careço. Se, pois, cumpre que sentenciam com justiça e em proporção ao mérito, eu proponho o sustento no Pritaneu."  (PLATÃO,2019, p. 25)

 

Evidentemente que tal pretensão soou provocativa colocando os juízes em difícil escolha de acatar a jocosa proposta de Sócrates ou o radical pedido de Meleto. Sócrates sacramentava, assim, sua última ironia em vida.

É claro que ele era inteligente o suficiente para compreender as consequências de seu atuar. O fez consciente. Impossível para a Assembleia voltar atrás, desfazer a condenação, inocentando o acusado. Do mesmo modo para Sócrates, que não renunciaria a sua consciência.

A Execução

 

Críton e outros amigos de Sócrates tentaram ainda, em vão, convencê-lo a fugir.

O hercúleo esforço, entretanto, era natimorto: para quem se recusara a se defender de maneira eficiente e permutar a pena de morte pela pena de multa, perquirir sobre uma vexaminosa fuga era realmente longe de qualquer paragem. Sócrates pretendia, assim, obedecer às leis e à democrática cidade, mesmo entendendo-se inocente. Ponto esse relevante para reforçar a concepção de seu daimon: a vitória eterna e contumaz lhe custaria a vida...

A sentença não foi imediatamente aplicada, porque era proibido aplicar execução capital durante o período de comemoração da luta vencida por Teseu contra Minotauro (MOSSÉ, 1989, p. 126). Desta forma, demorou um mês até que chegou a ordem para beber a cicuta que lhe foi entregue em uma taça por um escravo. Junto dele estava Xantipa, sua esposa, e o mais jovem de seus filhos, ainda criança. Xantipa se pôs a chorar e a gritar e Sócrates pediu aos escravos para levá-la para casa. Bebeu o veneno sem perder a calma e suas últimas palavras foram a Críton: “Críton, devemos um galo para Asclépio, não se esqueça de pagá-lo.” (PLATÃO, Fédon, 2019, p. 68).

Como se observa, Sócrates não desrespeitou as leis, nem o funcionamento da justiça e se submeteu ao voto e à democracia. Claro que havia as especificidades do contexto sócio-político. Fosse outra época, não teria ocorrido a sua condenação em Atenas, tanto que Platão continuou suas aulas sem ser perturbado. De qualquer maneira, parece claro também aos estudiosos que Sócrates não lançou mão de todos os argumentos possíveis, facilmente apreensíveis para ele. Esses elementos nos levam a crer que ele aceito e provocado a sua condenação como prova da ineficiência da democracia e sua razão em assim pensar.

O Contexto Sócio-Político

 

O componente político no contexto histórico foi essencial. E aqui não tem absolutamente nada a ver com o daimon socrático.

Devemos rememorar que havia acabado de acontecer a guerra do Peloponeso que durara longos 25 anos, bem mais do que pensava Péricles, onde Atenas havia sido derrotada por Esparta em batalhas sangrentas. Atenas perdera ¼ de sua população (cerca de 10 mil homens). Além disso, sofria com uma epidemia de “peste”, ficara completamente arruinada financeiramente, seus vinhedos foram destruídos, oliveiras queimadas, rebanhos dizimados. Os camponeses representavam 5/6 do corpo cívico (MOSSÉ, 1989, p. 25) e eles estavam em absoluta penúria. Tais fatos afugentavam os comerciantes e paralisavam a atividade mineira. Estátuas de prata e de ouro foram fundidas para se obter o metal precioso. Houve aumento de impostos. Uma guerra civil iniciou-se após a derrota para Esparta numa verdadeira caça a quem conspirasse contra a democracia ateniense. Dentro desse contexto trágico de pós-guerra, Sócrates desvalorizava a democracia ateniense e elogiava a política espartana.

Conclusão

 

Conclui-se que a hipótese foi confirmada. O julgamento de Sócrates teve fundo político com sua própria contribuição (maiêutica, daimon) que evitou fazer uma defesa consistente. Foi um processo político, por causas políticas, com um julgamento e condenação políticos.

O fim - limitar politicamente Sócrates - estava acima dos meios, tanto que Sócrates foi condenado à multa, não aquiescendo em sua condenação e rebelando-se contra seu papel de “politicamente incorreto”, foi condenado à morte. Inevitável dentro de um composto político onde o objetivo (fim) era silenciá-lo. E isso seria inadmissível conceitualmente num regime democrático.

A morte de Sócrates confirmou que a democracia ateniense não admitia críticas. Essa questão nos remete à uma atual indagação política: executando os intolerantes, erradicamos a intolerância? 

I. F. Stone assim conclui:

 

Quando Atenas processou Sócrates, a cidade se traiu. O paradoxo, a vergonha do julgamento de Sócrates é o fato de uma cidade famosa pela liberdade de expressão nela existente processar um filósofo que não era acusado de outra coisa senão exercer o direito de se exprimir livremente. (2006, p. 235)

 

O paradoxo da condenação de Sócrates é que ele foi condenado por algo que disse (não por algo que fez) numa cidade que se orgulhava de dizer que todos eram livres para expor suas ideias. A liberdade de se expressar era uma das características marcantes, senão central, da democracia ateniense. Observe-se que Atenas, sendo uma cidade "democrática", levou a julgamento e morte um ilustre filho por fazer justamente aquilo que a democracia mais defende: essa liberdade de expressão. Nenhuma lei foi desrespeitada e o julgamento foi político, num momento em que eram eminentemente assim as atividades judiciais. Sócrates não se utilizou dessas argumentações basilares em sua defesa - o que lhe seria facilmente apreensível - trazendo uma convicção de que Sócrates tenha pagado com a sua própria vida a defesa de seus ideais políticos.

 

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