quinta-feira, 19 de setembro de 2013

A Segurança Jurídica e o Bem Jurídico

Warley Belo
Advogado Criminalista
Mestre em Ciências Penais/UFMG
A consciência coletiva de determinado povo emite juízos de valores  que o Estado reconhece e cria bens jurídicos (güter des Rechts). A vida, a liberdade individual e o patrimônio são exemplos. O Estado, atencioso a esses valores que a sociedade reputa essencial à convivência humana, tutela-o penalmente, tipificando-o.
Direito é, pois, sobretudo, valorização. O bem jurídico é a eleição de determinados valores, definindo-os como fatos puníveis e cominando sanções penais.
A teoria do bem jurídico é uma construção do paradigma liberalista do século XIX. Na Época das Luzes, privilegiava-se a concepção de contrato social. Com Feuerbach (1801), o delito passou a ser visto como um ataque aos direitos subjetivos. Entenda-se, pois, direitos negativos, anteriores aos assegurados pelo contrato social. Foi com o liberalismo que nasceu \"o espírito do tipo\". Veja-se que na criminologia (com os clássicos, para utilizarmos o linguajar de Ferri), predominava a ideologia da defesa social e os valores dessa corrente funda a concepção moderna de bem jurídico.
Em 1832, Birnbaum publica Über die Erfordenis einer Rechtsverletzung zum Begriff des Verbrechens,  quando se passou a considerar o delito como lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico.
Na primeira metade do século XX, com o surgimento do nazi-fascismo, o instituto bem jurídico viu-se às voltas com o Willensstrafrecht (Direito penal da vontade). Nascia a Escola de Kiel, cujos maiores representantes foram Georg Dahm, Friedrich Schaffstein, Hans Frank, Gallas, dentre outros. A ideologia partia do pressuposto de que o espírito do povo seria a fonte do Direito e a lei o que o Führer ordena: Gesetz ist, was der Führer befiehlt.
De qualquer forma, o Direito sempre foi concebido em valores sociais. E o fato da vida social deve estar no início  e no final da persecutio criminis. No início, porque o Direito Penal não se preocupa com fatos
irrelevantes juridicamente: só deve haver perseguição aos fatos/crimes (art. 5º, XXXIX, Constituição Federal, e art. 1º, Código Penal). Dizia Aníbal Bruno que a tipicidade \"é o tempo inicial de toda consideração
sobre o fato suposto punível\". No fim, porque se comprovará a sua prática - ou não - e daí decorrerá a pena.
No processo penal, deve-se verificar se os fatos imputados são subsumíveis ao conceito abstrato e genérico do Direito Penal. O discurso do Direito Penal visa estabelecer condutas que poderão ser realizadas. Já o discurso do processo se preocupa com os fatos já passados, já ocorridos.
Certo é que estamos falando de situações sociais e de fatos. Fatos esses que deverão, a todo instante, sofrer análise de tipicidade. Ou seja, os fatos concretos deverão ser postos em observância aos fatos abstratos descritos na lei. Presentes todos os elementos do tipo, presente estará a tipicidade. Essa identidade entre a letra da lei e o fato investigado é necessária, tanto no momento de abertura do inquérito como no recebimento da ação penal pelo juiz. O processamento de fato atípico viola o próprio processo legal e viola o contraditório, a ampla defesa, a busca da verdade material. Enfim, é inaceitável um ato procedimental, por mais simples que seja, de um fato explicitamente atípico.
Nessa esteira de pensamento, o delegado de polícia não precisa, sequer, iniciar uma investigação por fato que não seja considerado infração penal.
Da mesma forma, o juiz não deverá receber ação penal que descreva fato não tipificado. Ninguém poderá ser constrangido penalmente por fato atípico. É que esse fato é irrelevante para a Justiça penal. Poderá ser relevante para outros ramos do Direito, como o civil ou o administrativo, mas não para o penal (Teoria dos Círculos Concêntricos). O delegado, o órgão do Ministério Público, o advogado e o juiz deverão fazer rigorosa análise do fato para concluir pela violação ou não de um bem jurídico tutelado penalmente. Como dizia Grispigni, il bene giuridico è la ragione d\'essere della fattispecie legale, lo spirito che la fa vivere.
Disso decorre a função mais importante do tipo penal: a função garantidora.  É garantia do indivíduo não ser molestado em sua pessoa ou família, nem conduzido à prisão, nem detido, nem suspeito, salvo por ordem
escrita de autoridade competente e com todas as formalidades legais e, ainda, por motivo previamente definido em lei. Ninguém pode ser sujeito de procedimento, processo ou punição  senão conforme as leis preexistentes que tratam de fatos penais pré-escritos (nullum crimen sine praevia lege scripta, stricta et certa).
Tudo isso decorre do nosso sistema político, que permite garantir a liberdade e a segurança individual. O tipo penal (corpus delicti, tatbestand, fattispecie legale, éléments legaux) há de servir como defesa
do indivíduo diante dos ímpetos de autoritarismo. São nessas condições que a tipicidade, tanto objetiva quanto a subjetiva, traz a segurança jurídica aos coagidos. Já dizia Radbruch  que a segurança jurídica é um dos elementos da idéia de Direito, junto com a Justiça e a adequação a um fim.
BELO, Warley. A Segurança Jurídica e o Bem Jurídico. Disponível na internet: www.ibccrim.org.br, 21.01.2005