quinta-feira, 6 de junho de 2013

O conceito de culpabilidade


Warley Belo
(Belo, Warley. Tratado dos Princípios Penais, volume II. Florianópolis: Bookes, 2012, pág. 18) 

            A definição[1] dogmática de culpabilidade (do alemão, Schuld, do italiano, colpevolezza) é, historicamente dificultada por sua sensível e complexa composição[2] alcançando, não raras vezes, paragens extrajurídicas. Por isso, o conceito de culpabilidade encontra caminho em definição negativa, isto é, a legislação prevê quais são as causas de exclusão da culpabilidade. Até mesmo Hassemer[3] chegou a afirmar que o conceito de culpabilidade é um dos mais difíceis e obscuros do sistema penal.
            Menoridade, doença mental, erro inevitável sobre a ilicitude do fato são exemplos de excludentes a limitarem ou mesmo extirparem a capacidade de responsabilidade. Sem essa capacidade de querer e compreender não é possível valorar um juízo de censura porque essa avaliação do comportamento do agente pelo aplicador da lei fica desarrazoada.
            Deste modo, o conceito inicial, apesar de não se ter na doutrina uma concepção unívoca, é o de se designar, a culpabilidade, como a valoração negativa ou reprovação sobre o injusto[4]. Entretanto, tal conceito, como qualquer outro sobre a culpabilidade, é insuficiente[5] e não responde muito, pois valoração, por si mesmo, já induz um leque muito amplo de possibilidades, mormente em uma sociedade pluralista como a nossa[6]. A dificuldade do tema é tamanha que até para lançar as bases mínimas da definição não existe consenso algum no tema.
            De qualquer modo, para construirmos o conceito de culpabilidade temos que partir de algum pressuposto. A doutrina lançou esse pressuposto sobre a valoração. Esta valoração é, antes de tudo, uma reprovação de alguma ação injusta (o objeto de valoração) porque seria exigível (juízo de censura) um comportamento diverso do autor. Essa reprovação pressupõe capacitação física e psicológica do agente, além da inexistência de determinadas circunstâncias, a permitir-lhe motivar-se de acordo com a norma penal. Daí tem que o injusto é o objeto sobre o qual recai a valoração, já a culpabilidade é, conceitualmente, esta própria valoração[7].



[1] Nos textos antigos, utilizava-se a expressão imputatio.
[2] Francisco de Assi Toledo (Princípios Básicos de Direito penal, São Paulo: Saraiva, 1990, pág. 216, § 16, item 224) introduziu assim: “A palavra "culpa", em sentido lato, de que deriva "culpabilidade", ambas empregadas, por vezes, como sinônimas, para designar um dos elementos estruturais do conceito de crime, é de uso muito corrente. Até mesmo as crianças a empregam, em seu vocabulário incipiente, para apontar o responsável por uma falta, por uma travessura. Utilizamo-la a todo instante, na linguagem comum, para imputação a alguém de um fato condenável. Seria incorreto dizer-se, por exemplo: Pedro tem culpa pelo progresso da empresa que dirige; o mesmo não aconteceria, porém se disséssemos: Pedro tem culpa pela falência da empresa que dirige. O termo culpa adquire, pois, na linguagem usual, um sentido de atribuição censurável, a alguém, de um fato ou acontecimento. Veremos que o seu significado jurídico não é muito diferente. Todavia, se olharmos de frente a culpabilidade jurídico-penal, será fácil perceber que não estamos diante de algo tão simples como parece.”
[3] “O conceito de culpabilidade é uma exceção entre os pressupostos da punibilidade. Ele pertence a um dos instrumentos mais difíceis e obscuros do sistema jurídico-penal.” (HASSEMER, Winfried. Introdução aos fundamentos do Direito penal. Porto Alegre: Safe, 2005, p. 292).
[4] Ver SANTOS, Juarez Cirino dos. A moderna teoria do fato punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 173 e ss.
[5] Foi uma das principais críticas que fez Sebastián Soler (Culpabilidad real y culpabilidad presunta. In Anuário de Derecho penal y ciencias penales, t. XV, F. III, Sepbre.-Didbre, MCMLXII, Madrid: INEJ Duque de Medinaceli, pág. 481, item 4) sobre a concepção normativista: “Se a reprovação está fundada na existência de algo, a culpa está aí antes de que a reprovação seja feita e, no fim, reprovabilidade não nos diz em que se funda. O reprovado é um efeito de algo meramente aludido, mas não aclarado.” (Tradução livre).
[6] Como anota Roxin (ROXIN, Claus. Derecho penal, t. I, Madrid: Civitas, 1997, p. 798): “o conceito normativo de culpabilidade só afirma que uma conduta culpável há de ser reprovável. Porém ele mesmo é de natureza completamente formal e não responde à questão relativa aos pressupostos materiais que caracterizam a reprovabilidade.” No mesmo sentido Marcos Destefenni (O injusto penal, Porto Alegre: Safe, 2004, p. 52, item 4.9): “O Direito penal, como a própria sociedade, é dinâmico. Os valores mudam todo dia e o Direito penal não pode se distanciar desse dinamismo social.”
[7] Precisamente aqui cabe toda a crítica da Criminologia com base na teoria das subculturas criminais (Albert Cohen e Herbert Marcuse) que nega o próprio princípio de culpabilidade porque entende essas valorações relativas. “... a teoria das subculturas criminais nega que o delito possa ser considerado como expressão de uma atitude contrária aos valores e às normas sociais gerais, e afirma que existem valores e normas específicas dos diversos grupos sociais (subcultura). (...) Não existe, pois um sistema de valores, ou o sistema de valores.” (BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do Direito penal. 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 199, p. 74, grifamos). Todavia, trabalhamos em uma ideologia de sistema da valores dominantes da maioria, quer dizer, na ideologia da culpabilidade. Caso contrário não teria sentido nos debruçarmos sobre o assunto e nem buscar legitimá-lo constitucionalmente.