quarta-feira, 11 de setembro de 2013

A liberdade provisória, a gravidade do delito e o clamor público

Autor: Warley Belo

Advogado, mestre em Ciências Penais (UFMG) e professor de Direito e Processo Penal

1. Introdução
A prisão preventiva, como coerção provisória cautelar penal que antecede a decisão condenatória, é medida de exceção. Deixou de ser obrigatória para ser facultativa, adequada apenas às hipóteses precisa e limitadamente fixadas em lei.
Como a sua aplicação compromete o jus libertatis e o jus dignitatis do cidadão, não pode ser aplicada senão quando absolutamente indispensável, quando indubitavelmente imperiosa à garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal. Ressaltadas essas características por dados concretos, inequívocos, bem reconhecidos e postos em destaque pela autoridade judiciária, configurado estará opericulum in mora, um dos pré-requisitos. É entendimento corrente, mesmo no Supremo Tribunal Federal, que "a prisão preventiva deve ser convincentemente motivada. Não bastam para isso meras conjecturas de que o acusado poderá evadir-se, ou embaraçar a ação da justiça... A fundamentação deve ser substancial, com base em fatos concretos, e não mero ato formal"(1).
Além desse pressuposto, há de se ver presente prova da existência do crime e indício suficiente de autoria (fumus delicti).
A decretação da prisão preventiva, portanto, na sistemática processual vigente, deve atender aos pressupostos básicos do art. 312, CPP, visualizando também, em perspectiva abrangente, a ação delituosa e a figura do acusado. Esta, sobretudo, é da maior importância. Se não se trata de criminoso vulgar, de marginal perigoso, nada aconselha a medida cautelar(2).
2. O princípio constitucional da não-culpabilidade
O princípio constitucional da não-culpabilidade — artigo 5º, inciso LVII, da Constituição Federal — direciona a considerar-se a prisão preventiva como procedimento excepcional.
Como expõe Pacelli(3), "tem-se, portanto, como regra primeira do novo sistema, que o não-culpado — em situação jurídica de inocente — somente poderá ser preso antes da decisão final por razões de comprovada necessidade, para fins de acautelamento dos interesses que fundamentam e legitimam a própria jurisdição penal, de natureza marcadamente instrumental, e nos limites daproporcionalidade. Precisamente daí a exigência de ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente para a decretação da prisão anterior à condenação definitiva, salvo a hipótese de flagrante delito (art. 5º, LXI)".
A prisão preventiva é regra excepcional, pois é certa a regra da presunção da não-culpabilidade. Para que isto realmente tenha lastro legal, indispensável é que se demonstre, no caso concreto, a realidade do periculum in mora, não simplesmente suposições, conjecturas sobre o enquadramento no artigo 312 do Código de Processo Penal(4).
O enfoque principiológico constitucional robustece a necessidade de se ter devidamente fundamentado o ato processual de exceção, sob pena de se ocultar, sob o manto cego da vingança pública, uma odiosa medida inquisitiva.
3. Clamor Público
O clamor geral da população pelo fim da violência, que vem assolando indistintamente todo o País, não serve como justificativa para a medida, sob pena de ser transformada a prisão preventiva em inaceitável instrumento de justiça sumária. O periculum in mora, como pré-requisito da preventiva, estampado na garantia da ordem pública, não pode ser confundido, absolutamente, com a satisfação do clamor público. Nesse caso, é desnecessária a prisão preventiva que não pode ser usada como antecipação da pena, finalidade a que alguns se prestam, mas não se compatibiliza com a presunção de inocência.
Moreno Catena(5) afirma que "a via legítima para acalmar o alarma social não pode ser a prisão provisória, encarcerando sem mais o maior número possível daqueles que prima facie apareçam como autores de atos delituosos, senão uma decisão rápida de mérito, condenando ou absolvendo, porque só a sentença prolatada num processo penal determina a pena do acusado".
Uma coisa é preservar a credibilidade da Justiça, em que há hipóteses de extrema gravidade, e outra é satisfazer o desejo da vingança social, à qual não pode aderir o Poder Judiciário.
4. A gravidade do crime
A gravidade abstrata da infração ou mesmo a eventual certeza de autoria não obstam a liberdade provisória, se não implicarem, também, em qualquer uma daquelas circunstâncias a que alude o preceito processual.
Daí, aliás, e bem a propósito, a lição sempre atual de Carrara(6), para quem "...a custódia preventiva atende a uma tríplice necessidade: a) necessidade de justiça, na medida em que afasta a fuga do réu; b) necessidade de verdade, na medida em que obsta que o réu confunda as atividades da autoridade policial, destrua os vestígios do delito ou intimide testemunhas e c) necessidade de defesa pública, na medida em que impede a certos delinqüentes, pendentes o processo, continuar seus ataques ao direito alheio".
A gravidade do crime não autoriza por si só a prisão preventiva, como vem entendendo a Suprema Corte(7). A sociedade não aceita a situação vivida de violência generalizada. Mas, e isto não é menos verdadeiro, há um interesse maior na preservação dos ditames do devido processo legal, nos ditames constitucionais sem atropelos, e, portanto, sem açodamentos.
5. Conclusão
Ainda que haja simples referência aos requisitos impostos pelo art. 312 do Código de Processo Penal, sem a menção das peculiaridades do caso concreto não assenta observância no mandamento constitucional esculpido no inciso IX do artigo 93, sobre a fundamentação das decisões judiciais. Desse modo, a prisão preventiva não deve subsistir. Ao magistrado, não basta reproduzir as hipóteses previstas pela lei. É preciso muito mais, isto é, demonstrar, com base nos elementos constantes dos autos, como e porquê o agente poderá dificultar a instrução criminal, frustrar a aplicação da lei e atentar contra a ordem pública ou econômica se permanecer solto.
A motivação abstrata é inaceitável porque não se tolera, como cediço para a custódia preventiva, mero juízo de conjecturas sem qualquer base fática. O próprio Supremo Tribunal Federal enfatiza que a medida "somente pode ser decretada mediante motivação que indique razões objetivas, em conformidade com as diretrizes dos artigos 312 e 313 do código de processo penal"(8).
A decisão pela prisão provisória cautelar deve, portanto, repousar sobre condições fáticas palpáveis, tangíveis de modo objetivo. É preciso que as circunstâncias autorizadoras aflorem das provas colhidas, porquanto o juiz no despacho, deverá trazer ao bojo dos autos fatos reais e não meras probabilidades.
O ato relativo à preventiva, para se tornar merecedor de endosso, deve fazer-se ao mundo jurídico com referência a dados completos ligados ao indiciado. A liberdade provisória no caso de prisão em flagrante está subordinada à certeza da inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva (CPP, artigo 310, caput e parágrafo único). Qualquer outro fundamento para decretação ou manutenção da preventiva não encontra guarita nem na Carta e nem no Código de Processo Penal.
Notas
(1) RTJ 73/411.
(2) "A simples referência aos requisitos estampados no código de processo penal não se presta a embasar o pedido de prisão preventiva, sendo necessários elementos concretos que demonstrem que o agente poderá cometer outros crimes de igual natureza, bem como que seu convívio com a sociedade seja suscetível de vulnerar interesses a ela contrários" (STF, RT 547/314).
(3) OliveiraEugênio Pacelli deRegimes Constitucionais de Liberdade Provisória, Del Rey, 1998, p. 87.
(4) "O despacho que indefere o pedido de liberdade provisória, tal como o que decreta a prisão preventiva, deve ser adequadamente fundamentado, com indicação objetiva de atos ou fatos concretos susceptíveis de causar prejuízo à ordem pública, à instrução criminal ou à aplicação da lei penal (CPP, art. 315; CF, art. 93, IX)" (STF, RHC nº 6.683/SP).
(5) CatenaVictor MorenoLecciones de Derecho Procesal Penal, 2ª ed., Editorial: Colex Editorial Constitución y Leis, SA, 2003, p. 208.
(6) Programa, vol. II, Lucca, 1877, p. 466.
(7) V. g., HC nºs 69.950. e 67.850.
(8) RHC nº 62.920/SP.

Warley BeloAdvogado, mestre em Ciências Penais (UFMG) e professor de Direito e Processo Penal