quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Warley Belo é premiado em concurso literário da OAB/Contagem

Conto em homenagem a Edgar Alan Poe ficou em primeiro lugar no certame e segue para leitura dos interessados.


Berenice



BERENICE

 

Warley Belo



            Ainda não passava da meia-noite. O vento frio daquele outono atípico intensificava a angústia que emanava da casa. Sob o muro baixo, havia uma grade com desenhos de flores de crisântemos pintadas todas de branco, cuja altivez o tempo roubara. Pelo portão da frente da casa, da mesma altura do muro, e que seguia os mesmos desenhos geométricos, avistava-se um corredor que partia do passeio externo, cortava o pequeno jardim e terminava em dois degraus. A grama bem aparada possuía do lado direito uma faixa de lisiantos que exalavam um cheiro ligeiramente enjoativo. No canto direito do jardim, junto à parede, duas pequenas estátuas de duendes verdes com gorros roxos pareciam encarar quem passasse por ali. A varanda, cujo piso vermelho se contrapunha a duas cadeiras pretas, era ornamentada com uma pequena árvore seca num vaso que tampava sem sucesso uma das duas janelas da frente da casa. A outra janela estava entreaberta e, vez por outra, a cortina que a compunha se enchia, descompassada e suavemente, em um balé rítmico, deixando transparecer a silueta de uma mulher que observava fixamente a rua.

            ''Ele não vem mesmo", pensou Berenice tentando imaginar o que fazia Pedro residente a poucas quadras dali.

            Desde os tempos de sua infância em Bauru, onde seu falecido pai exerceu o mister de policial militar, Berenice tinha um comportamento fechado. Aversiva socialmente, adquirira hábitos caseiros compatíveis à sua personalidade. Berenice, em verdade, era uma criatura tão sensível e insegura a tal ponto de pensar, não raras vezes, em por termo à sua própria existência. Mudara de ideia por consequência de uma extraordinária força até pouco tempo desconhecida: a paixão. Deveras, aquela menina introspectiva desabrochara como uma mulher notoriamente feliz. Todavia, há dois ou três meses, uma grande ansiedade vinha lhe tomando por inteiro em decorrência das rupturas do relacionamento por infundadas acusações e agressões verbais. A tão almejada felicidade que Pedro lhe prometera, agora, parecia dilacerar-lhe a alma.

            Sua mãe, sentada à mesa, insistia em fazê-la deitar-se visto o adiantar das horas. Entretanto, Berenice não proferia palavra. Permanecia imóvel, impassível às súplicas. Sua mãe oprimiu-se por tão grande sentimento de impotência e observava aquela menina, cuja dor moldava sua áurea de escuridão. Um calafrio percorreu todo o corpo daquela senhora e uma irreprimível compreensão invadiu-lhe a alma. Recostando-se vagarosamente na cadeira, como se houvesse altruísta e maternalmente se apropriado da dor de sua filha, permaneceu exausta, a respiração estertora, os olhos cortantes na palidez do rosto da menina intensificada pelos cabelos lisos e negros que lhe tampavam parte da face. Os olhos vítreos pareciam só pupilas. Aquela imagem mórbida, por si só, para D. Clara, significava o primórdio de sombrios acontecimentos. Uma sensação de aflitiva de tristeza oprimiu-lhe o espírito porque se percebia que não era passível de nenhum remédio ou cura. A roda do destino estava inexoravelmente em movimento. O desfecho avizinhava-se trágico. O abismo da dor sugou por completo D. Clara e esse sentimento agônico fez-lhe sorrir maliciosamente por um instante. O pensamento da inelutável ciranda da vida atravessou-lhe o espírito. Pulsava sua consciência mesmo diante da imagem severa de desolação e de terror.

           

            Ao ser encontrado o cadáver, ficou evidente tratar-se de um assassínio. O corpo morto estava quase a metade para fora da cama. Um dos pés descalços tocava o solo. Semicoberto por um roto lençol, as manchas de sangue se confundiam com os vestígios de mãos que agarraram o corpo após a morte como num último abraço. O quarto era pequeno e a luz fraca oprimia ainda mais a devassidão da cena. A polícia já estava no local e tomava apontamentos com os familiares preocupados com os preparativos do sepultamento.

            À mãe de Pedro era difícil entender o macabro episódio, mas, naquele momento, só lhe vinha a mente dar o último adeus ao filho querido. Vagarosamente, com uma sensação nauseante, pôs-se a caminhar, pé ante pé, até a cama. Todo o quarto cheirava a morte, mas não se tratava de cheiro característico de um matadouro. Na realidade, o odor deletério de ferrugem produzido pelo sangue se misturava ao cheiro de velas queimadas, já que os familiares acenderam três e as colocaram no criado mudo fazendo do ambiente um local asfixiante. O odor era tão insuportável que expulsou os familiares e os policiais, exceto um, para se verem livres da perniciosa influência mortuária e para respirarem aliviados. O policial remanescente pôs-se a abrir a janela enquanto pensava: “Parece crime passional... seis tiros...” Para a mãe de Pedro, não lhe restava força para fugir do local, seus joelhos tremiam, sentia fortes vertigens e, em certo momento quando foi retirado o lençol de cima do corpo, teve de ser amparada pelo detetive para não ruir ao chão: o cadáver ainda tinha os olhos abertos, petrificados. Num momento de desolação, a mesma pensou ter visto os olhos do cadáver espasmarem em sua direção como que querendo pedir ainda socorro pela vida. Afastou-se de costas e com o olhar fixo no filho morto. Esgueirando-se pelas paredes, cambaleante, virou-se e saiu daquele quarto de mistério, terror e morte.

            Durante a instrução criminal, o juiz de direito designou a presença de um especialista psiquiátrico, acompanhado de seu relatório sobre as condições da ré. Tal procedimento foi atendido e, em uma parte do documento, dizia: "Após estudos cheguei à conclusão de estarem as condições neuro-psíquicas da ré, com uma sintomatologia clara de atímicos portadores de psiconeurose emotiva de Duprê. Quanto a causa, ou causas, poder-se-ia dizer afirmativamente ser a somação de frequentes choques emocionais."

            A defesa indagou ao médico se teria a paciente praticado o ato delituoso inteiramente incapaz de entender, ao tempo da ação, o caráter criminoso do ato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento. O eminente doutor respondeu: "Tendo em vista ser ela portadora da afecção mencionada, entendendo ter sido, a referida pessoa, levada à realização do ato criminoso pelo mecanismo de uma impulsão irrefreável, pois a insuficiência do controle volitivo e da capacidade de frenação constituem sintomas daquele quadro mórbido. Nestas condições, ela era inteiramente incapaz de determinar-se, ao tempo da ação, de acordo com o entendimento sobre o caráter criminoso do seu ato."

 

            Berenice parecia começar a despertar de um sonho tenebroso, cujas lembranças tangenciavam uma quimera. Ela já havia percebido a aurora, todavia não tinha nenhuma compreensão clara, positiva, do lúgubre período intermediário. Ela sabia ter realizado algum ato, mas qual? "O que foi que eu fiz, meu Deus?"

            D. Clara tinha o hábito de levantar-se cedo, mesmo porque naquela noite não dormira bem, tendo pesadelos medonhos. Foi até a sala onde, ainda, se encontrava sua filha praticamente no mesmo local e com o mesmo olhar lúgubre para o portão. Num ato de solidariedade, D. Clara, acariciando-lhe a fronte, retirou-lhe a mecha do cabelo que ocultava parte da face. Foi então patente a mudança da feição daquela mãe. Mudara de carinho ao mais puro pânico. Sem tirar os olhos de Berenice, afastou-se pálida como um habitante do túmulo. Seu aspecto era de extremo pavor e tentava, em vão, comunicar-se com Berenice. Todavia, sua voz embargada grunhia ante a dificuldade de respirar. D. Clara, então, num lento movimento apontou para as roupas e depois para o rosto de sua filha: estavam manchados de sangue coagulado. Berenice nada falou. Apenas deixou cair pesadamente sobre o assoalho o revólver que segurava em sua mão esquerda.

 





Agradeço ao presidente da OAB Contagem Dr. Sanders Augusto, amigos e colegas que prestigiaram a premiação do Concurso Direito, Contos e Poesia. Foi realizado pela Comissão de Cultura da OAB/Contagem presidida pela Dra. Marianne Patrícia, a quem muito devo a gentileza e iniciativa do concurso. A festiva ocorreu no dia 6 de dezembro de 2018 e fui agraciado com o 1o. Lugar. Meu conto vencedor, “Berenice”, do gênero terror, é esse acima. Uma explícita homenagem à Edgar Allan Poe. Trata-se de um assassínio em decorrência de abusos de relacionamento motivados pelo narcisismo materno. Só gratidão

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