segunda-feira, 6 de outubro de 2008

Barrela: Escola de Crimes


Barrela: Escola de Crimes







Warley Belo

Mestre em Ciências Penais / UFMG
Advogado Criminalista

Fábio Belo

Mestre em Teoria Psicanalítica / UFMG
Doutor em Literatura Brasileira / UFMG
Psicanalista





“O bandido é o Estado.”
Nilo Batista
(Punidos e Mal Pagos,
p. 158)

Índice: Resumo. Palavras-chave. 1. Do Intróito 2. Do Dramaturgo Plínio Marcos 3. Barrela: Escola de Crimes 4. A literatura e o mal 5. A sociedade criminógena 6. O desejo do mal 7. Minimalismo penal 8. Das conclusões 9. Bibliografia

Resumo: O filme “Barrela: Escola de Crimes”, baseado na peça teatral de Plínio Marcos, narra a difícil convivência entre seis homens num xadrez. É uma atmosfera pesada do início ao fim apta a servir de pano de fundo para uma investigação criminológica baseada no labelling approach e na teoria crítica. O presente trabalho tenta demonstrar o paradoxo da prisão que quer ressocializar (ou socializar?) dessocializando, retirando o indivíduo da sociedade. Conclui apontando soluções para o problema da prisionalização.

Palavras-chave: Literatura e cinema brasileiros. Criminologia. Violência institucional. Prisão. Labelling Aproach. Teoria crítica. Feminilidade. Psicanálise. Minimalismo. Abolicionismo.

1. Do Intróito

O filme Barrela: Escola de Crimes (Brasil, 1990, 72´) é a versão cinematográfica da peça teatral Barrela, de Plínio Marcos (2003 [1958]). Descreve a perturbada convivência entre presos numa cela, as relações de poder entre eles e o papel da sexualidade nesse pequeno universo, representado pela cena de um atentado violento ao pudor (coito anal violento) contra um jovem.
Discutiremos a obra de Plínio Marcos a partir de duas perspectivas teóricas. Em primeiro lugar, faremos uma análise das questões jurídicas que a peça e o filme suscitam. Em segundo lugar, a interpretação psicanalítica nos auxiliará a compreender outros fenômenos ali representados.
Estudar fenômenos humanos tão complexos como a violência e a criminalidade exige uma perspectiva multidisciplinar. Interpretar tais fenômenos apenas do ponto de vista jurídico – ou psicológico – seria, no mínimo, temeroso.
Em várias passagens da peça é possível demonstrar que o problema sócio-jurídico se confunde com o problema existencial (psíquico). As duas interpretações servem, juntas, a uma compreensão mais abrangente dos comportamentos humanos, sempre tangenciados pela problemática da lei e do inconsciente.
A literatura e o cinema são reflexos matizados da vida. Ao problematizarem a questão do criminoso e da violência, oferecem-nos uma oportunidade didática de compreensão.

2. Do Dramaturgo Plínio Marcos

Plínio Marcos nasceu em Santos-SP no dia 29 de setembro de 1935 e morreu em São Paulo-SP no dia 19 de novembro de 1999.
Nunca terminou a quarta série primária porque, dizia, foi incapaz de resistir à pressão de sua professora que o queria forçar a escrever com a mão direta, quando era canhoto. Todavia, isso não o impediu de ser considerado um dos dramaturgos mais importantes do Brasil, sendo comparado, por alguns, a Nelson Rodrigues.
Segundo ele afirmava era “figurinha difícil”. Foi, entre as coisas que dele se sabe, dramaturgo, ator, jornalista, tarólogo, camelô de seus próprios livros, técnico da extinta TV Tupi, jogador de futebol e palhaço.
Passou 20 anos vendendo livros de bar em bar. Fumava cinco maços de cigarro por dia o que contribuiu para a má circulação do sangue que paralisou suas pernas. No hospital, foi atendido como indigente e a amiga e jornalista Vera Artaxo, sua futura mulher, na última hora impediu a amputação.
Plínio Marcos escreveu mais de 40 peças, assim como novelas e pequenas estórias. Com todas teve problema com a censura. Suas peças mais famosas são: Barrela (1958), Dois Perdidos numa Noite Suja (1966), Navalha na Carne (1967), Abajur Lilás (1975), Madame Blavatsky (1985) e A Dança Final (1994).
Desde sua morte, aos 64 anos, as homenagens ao autor e o interesse em torno de sua obra só fizeram crescer. Há novas montagens e filmes de seus textos. Seu nome foi adotado para batizar prêmios e espaços culturais — inclusive o Teatro Nacional Plínio Marcos, de Brasília.
Colocou no palco a marginalia da cidade grande, coisa que ninguém tinha feito até então sem hipocrisia. Plínio tinha uma experiência humana ligada às classes pobres e levou esse mundo para o teatro. Em suas peças avultam “os temas da solidão e da decadência humana, do círculo vicioso da tortura mútua, da absoluta falta de sentido nas vidas degradadas, do beco sem saída da miséria e da violência, da morte como horizonte permanente”[1].
O teatro dele não era exatamente político, de pobres contra ricos. Sua contribuição está em expor, de maneira clara, as experiências vividas no submundo. Seus personagens, sempre envoltos na teia da violência, são os homossexuais, os marginais, as prostitutas, os dependentes de drogas e os desempregados. Suas peças são recheadas de palavrões e gírias: código exclusivo dos “subterrâneos”, presos “na roda viva da agressividade total”, da qual não se salva ninguém.
Diálogos exatos, crus, ferinos, explosões de ódio e violência incontidos, humilhações, provocações sadomasoquistas, rastejamento abjeto de humilhados e ofendidos, tentativas de reação abortadas pela dependência visceral que se estabelece entre algozes e vítimas, que se revezam na função de carrasco, quando o mundo é um túnel sem saída, sem perspectiva, tumular. [2]
Não obstante esse cenário, inexiste esquemas racionais para um exame crítico da realidade social. Talvez, sua grande contribuição tenha sido utilizar-se de personagens até então praticamente esquecidos. Raros são os trabalhos literários que, por exemplo, se passam dentro de uma cadeia. Essa perspectiva de discurso desnuda a marginalidade e nos faz perceber, quase que automaticamente, que é o próprio sistema que cria seus personagens e os perpetuam na exclusão. Esse descurtinamento escancarado – tratar como “gente” o “marginal” – lhe cobrou um alto preço: ainda hoje é considerado um autor maldito de peças malditas.
Os militares, que governavam o Brasil, o viam como um “inimigo do sistema”. Nem sabe quantas vezes foi preso. O escritor, freqüentemente, era confundido com os personagens que criava. A ditadura, de certa forma, retardou o reconhecimento de Plínio como dramaturgo.
“Barrela” foi sua primeira peça, escrita quando tinha 22 anos. Proibida, só foi liberada em 1980, apesar de ter sido representada, em 1979, ainda na clandestinidade, pelo mítico grupo O Bando.
A peça traz um mundo sem meias palavras. É direta, convence e dá tratamento dramático à realidade de bandidos enclausurados. As peças de Plínio Marcos, “ao mesmo tempo em que provocam repulsa, despertam uma angústia solidária, a necessidade urgente de intervenção. O terror e a piedade aristotélica, no grau mais absoluto.”[3]

3. Barrela: Escola de Crimes

A começar pelo título, a sexualidade ocupa um dos lugares centrais da peça. Barrela significa, na gíria dos presos, o coito anal homossexual. É justamente sobre esta prática sexual que gira a conversa dos presos, durante a peça há uma constante tensão se vai haver ou não o coito. De um lado, o desejo sexual, representado pelo personagem “Louco”. Do outro lado, a lei que, até certo ponto, proíbe a homossexualidade, representada pelo chefe da cela, “Bereco”. A lei, entretanto, não é suficiente para conter a fúria sexual, representada, no final da peça, pela violência coletiva contra o personagem “Garoto”.
A Psicanálise, apontando para a importância da sexualidade, contribuiu enormemente para a compreensão da alma humana. A partir da teoria da sedução generalizada, de Jean Laplanche, mostra-se não ser por acaso que a sexualidade ocupa um lugar tão importante numa peça que versa sobre a violência e sobre a criminalidade.
A peça Barrela narra a difícil convivência de seis homens num xadrez. Os seis presos discutem seus problemas, expõem seus fantasmas e têm seus conflitos. A ação se passa inteira em uma só noite. O ambiente é uma cela de delegacia. O mais impressionante é que a peça foi baseada em fatos reais ocorridos em Santos no final da década de 50. O garoto violentado, após dois dias liberto da prisão, matou quatro daqueles presos agressores.
Todos os personagens são condenados a penas altíssimas (25, 26, 30 anos).
O personagem “Portuga” é homicida de sua mulher que o traiu e apresenta remorsos. Há a figura do xerife de cela, “Bereco”, que tenta controlar a violência sexual no grupo, dorme em local separado por uma cortina aos trapos e estabelece quando é que se vai “queimar fumo”. Mas, seu poder não é ilimitado, pois o garoto acabou sendo currado, mesmo sem sua aquiescência. Um anarquismo nas entranhas do Estado.
“Tirica” é o preso mais violento e acaba entrando em conflito direto com alguns personagens, principalmente com Portuga, a quem assassina.
Na cela, vazia para os parâmetros nacionais, os assuntos são sempre os mesmos: sexo, traição, homossexualismo. Os conflitos ocorrem aleatoriamente entre os personagens. Ora entre “Portuga” e “Bahia”, ora entre “Tirica” e “Portuga”. Vez por outra, o xerife “Bereco” interfere para “botar ordem no recinto”.
A tônica do problema surge quando “Portuga” provoca “Tirica”. Denuncia que o mesmo fora violentado sexualmente pelo preso “Morcego”, de outra cela (xadrez 3). Tal teria ocorrido ainda quando “Tirica” era criança e estava no reformatório.
Tal situação não poderia passar despercebida, pois dá margem à concepção de que são sempre os mesmos “clientes” que o sistema penitenciário traga. A reincidência está presente também entre os menores e não desaparece quando da maioridade. A vinculação marginal não se desfaz quando se entra em contato com o sistema.
Outro ponto interessante do filme, e quase irritante, é a condução do Garoto até a delegacia de polícia. Demasiadamente demorada, distante. Representa, assim, a longínqua descida ao “inferno verde-amarelo”, a saída da sociedade.
O desenrolar da estória acontece através dos conflitos, nos quais os personagens vão mostrando inseguranças, medos, verdades e questões de cada um.
A monotonia encerra-se quando, no meio da madrugada, o novo preso, “Garoto”, entra na cela. A “carne nova”.
“Garoto”, após ter passado os cigarros e prometido o dinheiro e pulseira que ficaram na carceragem ao xerife “Bereco”, é assediado sexualmente por “Portuga” que lhe propõem “casamento”. Diante da recusa, sofre uma tentativa de curra pelos demais, controlado por “Bereco” ao “liberar” a maconha. O rapaz, então, é induzido a fumar maconha sendo, após, exaustivamente violentado pelos outros detentos.
Quando todos dormem, “Bahia” mata “Portuga” com uma ponta de colher afiada.
Cumpre relembrar que o garoto foi preso por causa de um crime de pouca monta: uma briga num bar ficando junto com violentos marginais.
“Garoto” logo foi liberto. Os outros ficaram presos. O personagem “Fumaça” conclui: “Feliz é o garoto: logo, logo estará na rua”. “Bereco”, na última fala, encerra os fatos da noite (violência sexual, uso de tóxicos e homicídio): “mais um dia exatamente igual a todos os outros”.
Nilo Batista[4], comentando o filme, aponta o seguinte:

“não chorem pelo garoto. Ele já retomou seus direitos de integrante da classe hegemônica, e, portanto, para ele a cadeia é uma eventualidade excepcional e escandalosa. Chorem, revoltem-se, mobilizem-se, por aqueles tristes e miseráveis Bereco, Tirica, Portuga e companheiros, porque sua tristeza e miséria perdurarão – como os percevejos de Graciliano Ramos – por todo o tempo em que perdurar a prisão.”

A cela é um local de crimes, um ambiente feminilizante, cuja única “lei” é a mútua e perpétua agressão. Há um silêncio do Estado, uma anomia estatal quando, ali, deveria ser um local pretensamente seguro e ordeiro sob o império da lei.
Os policiais, ao observarem o “Portuga” morto, assassinado por “Tirica” com uma colher pontiaguda, expressam-se indignados:

“Cagaram no nosso plantão. Não podiam esperar dez minutos?!...”

Ou seja, o problema, efetivamente, não foi a morte do preso - “menos um” - mas a burocracia decorrente da morte, pois terão mais trabalho e ao final do expediente... É a distorção análoga ao “morreu na contramão atrapalhando o tráfego”[5]. A vida e a morte dos presos estão banalizadas[6].
De tudo, fica a certeza de que, uma vez no sistema penal, nunca se sai o mesmo, pois se tem a vida modificada e valores refeitos, para pior.

4. A literatura e o mal

Para Georges Bataille (1957), encontramos em algumas obras literárias a representação do mal.
Este parece ser o caso da peça “Barrela”.
Para Bataille, a literatura é a infância reencontrada[7]. Infância, na obra deste autor, é sinônimo de impulsividade:

“A sociedade não poderia viver se se impusesse a soberania dos movimentos impulsivos (primesautiers) da infância, que ligavam as crianças num sentimento de cumplicidade.”[8]

O bem se funda sobre o cuidado do interesse comum, que implica, de uma maneira essencial, a consideração do futuro. A divina embriaguez, à qual pertence o “movimento impulsivo” da infância, está inteiramente no presente. Na educação das crianças, a preferência pelo instante presente é a comum definição do mal. Os adultos interditam àqueles que devem chegar à maturidade o divino reino da infância[9].
O mal é a transgressão da interdição adulta, é o desejo de retornar ao reino da infância posto em prática. Alguns projetos literários conseguem este retorno à infância – na medida em que esta é comparada à primazia do instante – valendo-se de uma negação do bem, isto é, do primado do amanhã. Estes projetos revelam, segundo Bataille, a “essência da humanidade”, isto é, o fato de que todos somos, sem reticências, infantis. No caso de Barrela, o primado do amanhã é recusado, na medida em que a vida prisional não oferece nenhuma perspectiva de futuro. Os presos estão condenados a viver sob a égide do gozo instantâneo e do movimento impulsivo.
Muito próximo da perspectiva psicanalítica, Bataille mostra que o infantil, apesar de reprimido, é soberano. Quando a literatura apresenta esta soberania, ela geralmente o faz mostrando a infração à lei e ao interdito. A soberania, para Bataille, é o “poder de se elevar, na indiferença à morte, acima das leis que asseguram a manutenção da vida”[10]. As obras literárias que lidam com a transgressão falam “a linguagem soberana que, vindo da parte soberana do homem, se endereça à humanidade soberana.”[11]
Uma só via leva da recusa da servidão à livre limitação do humor soberano: esta via é aquela da comunicação.
Em Barrela, temos os três elementos da “soberania”. Paradoxalmente, é na cadeia que uma certa liberdade se produz, na medida em que há livre transgressão dos interditos: do assassinato e da violência sexual. A consumação soberana, representada através da sodomia sádica, deixa entrever como seria o mundo caso a cultura não se opusesse à parte soberana, infantil, do homem.
Para Bataille, não somos seres isolados, mas definitivamente marcados pela comunicação. Nunca estamos a sós, mas sempre imersos numa rede de comunicações uns com os outros:

“nos banhamos na comunicação, nós somos reduzidos a esta comunicação incessante que, até no fundo da solidão, sentimos a ausência, como a sugestão de possibilidades múltiplas, como a espera de um momento onde ela se transforme em um grito que os outros escutem.”[12]

Barrela não pode ser vista exatamente como uma espécie de grito, vindo do mais fundo subsolo? A peça começa justamente com os gritos de “Portuga”, acordando de um pesadelo: “Não! Não! Não!”[13]. Toda a peça pode ser lida como uma advertência: por mais que se tente, não se pode negar aquilo que é visto no subsolo da alma humana. Como pontua Bataille:

“Creio que o homem é necessariamente contra ele mesmo e que ele não pode se reconhecer, que ele não pode se amar até o fim, se ele não é objeto de uma condenação.”[14]

Pode-se compreender esta idéia de Bataille se tivermos em mente a teoria sobre o ser humano que a sustenta. Para o autor, a humanidade busca dois fins, um negativo: evitar a morte e conservar a vida; o outro positivo: aumentar a intensidade da vida.
Para Bataille, os dois objetivos não são contraditórios, apesar das aparências. Apesar da intensidade não aumentar sem acarretar perigo,

“a intensidade desejada pelo grande número (ou o corpo social) é subordinada ao cuidado de manter a vida e suas obras, que possui um primado indiscutido.”[15]

O problema ocorre se é a minoria ou a maioria dos indivíduos que procuram esta intensidade. Aí sim, pode entrar em conflito a primazia da preservação da vida sustentada pelos laços sociais.
Bataille também se aproxima bastante de Freud quando sustenta que a busca da intensidade da vida nem sempre coincide com aumento de prazer – ao contrário, muitas vezes a intensidade máxima é mortífera. Esta tese está muito próxima da sustentada por Freud, em Além do Princípio do Prazer.
Bataille aponta para dois modos de funcionamento da intensidade. Um ligado ao bem e o outro ligado ao mal. O bem está ligado à idéia de que a intensidade da vida, seu valor, aumenta, mas de uma maneira contida, limitada. O mal, por sua vez, está ligado a uma idéia de liberdade que sempre leva ao excesso. Bataille adverte que o valor autêntico se situa do lado mal, pois só aí haverá, um aumento de intensidade da vida, mesmo que o preço seja a morte. O princípio do valor quer que vamos “o mais longe possível”. Sua associação com o bem mede o “mais longe” do corpo social; a associação com o mal, o “mais longe” que temporariamente atingem os indivíduos ou as minorias[16]. O atentado violento ao pudor coletivo do “Garoto” é uma das imagens mais cruas que a literatura brasileira produziu do “mais longe” temporário.
Ao comentar a obra de Sade, Bataille diz que aquele autor levou ao paroxismo a idéia de experimentar esta intensidade. Sade não julgava que poderia ou deveria retirar da vida nossos desejos insuperáveis, cujos destinos são “estados perigosos”[17]. Ao invés de esquecê-los, ele ousou olhá-los de frente e “se colocou a questão abissal que eles colocam a todos os homens”[18]. A obra de Sade é a tentativa de trazer à consciência as paixões humanas mais terríveis:

“Outros antes dele [Sade] tomaram os mesmos desvios, mas entre o furor (déchaînement) das paixões e a consciência subsistia a oposição fundamental. Nunca o espírito humano cessou de responder às exigências que levam ao sadismo. Mas isso se dava furtivamente, na noite que resulta da incompatibilidade entre a violência que é cega, e a lucidez da consciência. O frenesi se distancia da consciência. De seu lado, a consciência, na sua condenação angustiada, negava e ignorava o sentido do frenesi. O primeiro, Sade, na solidão da prisão, que deu expressão razoável a estes movimentos incontroláveis, sobre a negação dos quais a consciência fundou o edifício social – e a imagem do homem. Ele precisou para este fim tomar ao contrário e contestar tudo o que os outros tinham por imutável (inébranlable). Seus livros dão esta sensação: que com uma resolução exasperada, ele queria o impossível e o inverso da vida: ele tomou a firme decisão da doméstica, que, na pressa de concluir, despela um coelho com um movimento seguro (a doméstica também revela o inverso da verdade e, neste caso, o inverso da verdade é também o coração da verdade)”[19].

Sade subverte nossas crenças sobre a sexualidade: o que destrói o sujeito também o excita. Não podemos reduzir nossos impulsos sexuais ao agradável e ao benéfico. Há neles um elemento de desordem, de excesso, que coloca em risco a vida daqueles que os seguem. Em Barrela, parece existir o desejo de “despelar o coelho”, mostrar a outra face da sexualidade humana que, muitas vezes, se confunde com o mal.
Sade, escrevendo dentro da Bastilha, dentro de uma prisão, mostrou ao homem o paradoxo da sexualidade humana: nem sempre o prazer está ligado ao bem. Muitas vezes, é para o mal que nossos impulsos sexuais se dirigem. E isto não é apanágio de uns poucos doentes ou marginais. Há, em menor ou maior grau, em todos os seres humanos esta semente do mal, que corrompe e destrói o edifício social.
Note-se a conclusão de Bataille, a literatura não pode fugir do mal; ao contrário, deve lançar sobre ele um olhar mais lúcido. Este parece ser o ponto mais importante da relação entre a literatura e o mal: a atividade literária muitas vezes permite um olhar mais consciente sobre o fenômeno do mal.
Para terminar este breve desvio, lembremos que uma das formas privilegiadas do mal é o sadismo. O prazer em se praticar o mal parece torná-lo ainda maior. Bataille esclarece:

“se se mata por vantagem material, não é o Mal verdadeiro, o Mal puro, aí sim, o assassino, além da vantagem conseguida, goza de ter golpeado.”[20]

5. A sociedade criminógena

Em Microfísica do Poder[21], ao fazer uma pergunta a Michel Foucault, Brochier faz a seguinte observação:

“… estou impressionado com o fato de que as prisões estão dentro das cidades e ninguém as vê. Ou que quando as vê, se pergunte distraidamente se se trata de uma prisão, de uma escola, de uma caserna ou de um hospital”.

Ninguém quer ver as prisões. Duzentos anos foram suficiente a transferir o teatro da punição pública em um tormento individual e solitário. Entretanto, impressiona mais a constatação de que, para além de impedir as fugas dos presídios, os muros servem para formar ideologias, excluir, deserdar, formar psicóticos e delinqüentes.
Os muros segregam e escondem. E não é pouca gente: o contingente do sistema penal, hoje, ultrapassa 328 mil presos, sendo que, desse total, mais de 79 mil estão em delegacias de polícia[22], ambiente da peça de Plínio Marcos.
Na Idade Contemporânea, quando ainda vigorava o Direito Penal Canônico, as penas eram espetáculos ritualizados[23]. A punição era externa, nas fogueiras, pessoas eram arrastadas por cavalos e esquartejadas. Com o Iluminismo, houve a humanização das penas. Deixamos de lado as fogueiras e passamos às prisões: modo humano de se punir.
Todavia, deixou-se de punir o corpo e passou-se a punir a alma do condenado (Foucault). O que era visível deixou de ser. O horror não é tão repugnante assim quando ocorre nas pérfidas prisões brasileiras atrás de muros ou soterradas em buracos rebocados de concreto. Sofre menos o prisioneiro de Kafka (Na Colônia Penal), ao ter a sentença escrita com uma máquina perfurante na pele de suas costas, até a derradeira morte, do que o preso brasileiro. Os nossos cidadãos de segunda classe, essa massa perdida de pessoas, esses excluídos, sofrem privações inimagináveis, além da punição legal. Rectius, sofrem antes, durante e depois. A sociedade precisa chamar a si parcela da responsabilidade. Mas, há um alento para essa sociedade: não são vistos, não são ouvidos, não votam. No máximo, fantasiamos seu destino funesto e dele fazemos objeto de temor.
Alie-se ao fato de que é cultural o entendimento de que o condenado não tem direitos. Frases da jaez “bandido bom é bandido morto” fazem parte da ideologia de que os presos merecem os maus-tratos, as celas superlotadas, imundas, com odor fétido, escuras e com pouca ventilação. Porém, foram condenados, democraticamente, a perder a liberdade, não os demais diretos.
O objetivo da pena seria a ressocialização, mas isso é uma quimera.
Devemos tirar dos olhos a venda que nos impede de ver o muro existente à nossa frente. Percebamos os muros. Enxerguemos além deles.
Há, em verdade, o descumprimento diuturno das leis. A pena que se cumpre é absurdamente maior do que a imposta. A Lei de Execuções Penais é elogiada no mundo todo, mas é uma carta de intenções. Se cumprida, seria um passo rumo à cidadania e ao respeito aos direitos humanos dos detentos, mas isso seria “um perigoso precedente”. Na verdade, a crise é ética, não legal e vem do Império.
A prisão, hoje, não ressocializa, antes, corrompe, degrada, forma mentes pervertidas, tira a esperança, aniquila famílias, mata. A repressão punitiva – especialmente a prisão – é um elemento de criminalização que gera um mecanismo indelével de causa e efeito. Seguindo os ensinamentos de Evandro Lins e Silva:

“(...) é de conhecimento geral que a cadeia perverte, deforma, avilta e embrutece. É uma fábrica de reincidência, é uma universidade às avessas, onde se diploma o profissional do crime. A prisão, essa monstruosa opção, perpetua-se ante a insensibilidade da maioria como uma forma ancestral de castigo. Positivamente, jamais se viu alguém sair de um cárcere melhor do que quando entrou”.[24]

E quando, ao término da prisão, acredita o detento estar liberto, constata que o sair livre não significa estar de volta à sociedade. O sair da cadeia não dá acesso à sociedade. A porta que leva à rua é a mesma que conduz à desesperança, ao sofrimento, à estigmatização permanente e perpétua. Como aponta Carnelutti[25], o máximo que conseguirá, o detento liberto, é ser um ex-detento. Astor Guimarães Dias acresce:

“E quando os gonzos do portão penitenciário giram, para restituir à vida social aquele que é tido como regenerado, o que em verdade sucede, é que sai da prisão o rebotalho de um homem, o fantasma de uma existência, que vai arrastar, para o resto de seus dias, as cadeias pesadas das enfermidades que adquiriu na enxovia, nessa enxovia para onde foi mandado para se corrigir e onde, ao invés disso, adestrou-se na delinqüência, encheu a alma de ódio e perverteu-se sexualmente”.[26]

Diz-se, mesmo, que a prisão é a universidade do crime. Cezar Roberto Bitencourt[27] aponta três fatores que dominam a vida carcerária como um fator criminógeno: materiais, psicológicos e sociais. Nos materiais, há a propensão a doenças (tuberculose, AIDS, etc.), por causa das condições estruturais das celas e superpopulação. Nos psicológicos, expõe-se que as prisões ensinam os presos a serem dissimulados e a mentirem para a própria sobrevivência. E nos fatores sociais trata-se da desadaptação ao convívio social.
Um paradoxo da prisão que quer ressocializar (ou socializar?) dessocializando, retirando o indivíduo da sociedade. Conclui, acertadamente, que a prisão é um ambiente criminógeno. No filme, fica claro que é com a entrada no cárcere que se inicia o processo de estigmatização. Mas, a saída é pelas próprias pernas, bambeantes. É um magnífico mecanismo de fazer do delinqüente um evidente delinqüente.
Goffman[28] introduziu o conceito de instituição total que se caracteriza pelos muros altos, arames farpados, alarmes, fossos, etc. Nesse local são realizadas as atividades do preso. Há uma autoridade e regras. Todos são tratados de maneira uníssona, realizando suas atividades de maneira pública, vigiada, racional, padronizada. Os objetivos das atividades visam à própria instituição. Desse modo, a médio prazo, há um processo de desculturamento. Perde os vínculos com a realidade extra-prisional, modifica valores, perde a própria identidade. É característico o fato de terem todos os presos os mesmos uniformes, um número, uma cela. Ao mesmo tempo, perdem seus objetos, seus documentos. Seus cabelos são raspados. São classificados numa busca de uma contra-individualização da pena. Levados às celas, normalmente, apanham, são violentados sexualmente e tatuados com símbolos que indicam o crime que cometeram. Agora são prisioneiros, como os outros, sem identidade particular. Fazem parte da massa.
Esse ritual, essa passagem é mítica para o prisioneiro, pois o eu anterior não existe mais. Existe um sujeito que é educado para ser bom preso, um homem prisonizado[29], institucionalizado[30].
A grande questão, bem analisada por Luiz Flávio Gomes[31], é: a prisão é um sucesso ou um fracasso total?
A princípio, na concepção “politicamente correto”, dir-se-á que é um fracasso total. Entretanto, a prisão, como é, é um sucesso. O Estado não só quer como fomenta essa situação. Um dos motivos é econômico. Veja-se, por exemplo, o trabalho de Nils Christie[32]. Vários setores da sociedade ganham com o crime: empresas de segurança de prédios, bancos e firmas, canis, indústria eletrônica, jornalistas de programas sensacionalistas, polícia, advogados, etc. Está tudo funcionando, perfeitamente.
Foucault pergunta por que as prisões, apesar de conterem uma população minoritária, exercem indiscutível fascinação social. Ele crê que as prisões fascinam porque permitem aos “bons, aos cidadãos irrepreensíveis”, aos que se consideram socialmente “inocentes” exercer o mal sem limites:

“Todas as violências e arbitrariedades são possíveis na prisão, mesmo que a lei diga o contrário, porque a sociedade não só tolera, mas exige que o delinqüente sofra”.

Seria a prisão o lugar no qual se realizam as fantasias sádicas e inconscientes dos “bons”? Parece que sim. Foucault lembra que a prisão ao secretar seu próprio alimento, a delinqüência, está longe de transformar os criminosos em gente honesta:

“serve apenas para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade”[33].

Suspeita-se que, além dos inegáveis benefícios para o sistema capitalista, o delinqüente serve também para realizar nossas fantasias perversas. Michel Foucault ainda lembra:

A prisão fabrica delinqüentes, mas os delinqüentes são úteis tanto no domínio econômico como no político. Os delinqüentes servem para alguma coisa. Por exemplo, no proveito que se pode tirar da exploração do prazer sexual: a instauração, no século XIX, do grande edifício da prostituição, só foi possível graças aos delinqüentes que permitiram a articulação entre o prazer sexual cotidiano e custoso e a capitalização[34].

O que Foucault mostra exaustivamente é que a delinqüência não é, de maneira alguma, apenas fruto do caráter, da educação, do desejo de uma pessoa. A delinqüência é o resultado da tecnologia penal, em especial a da prisão. O ideal da prisão reeducativa é substituído pela realidade da prisão onde não se ensina nada: esta é apenas mais uma maneira de se estar bem seguro de que os marginais nada poderão fazer ao sair do cárcere, a não ser voltar delinqüir.
Foucault mostra-se pessimista quanto à esperança de uma sociedade sem delinqüência, pois um de seus efeitos é um dos principais reguladores da sociedade contemporânea: a polícia. Ele explica:

“Sem delinqüência não há polícia. O que torna a presença policial, o controle policial tolerável pela população se não o medo do delinqüente? (...) Esta instituição tão recente e tão pesada que é a polícia não se justifica senão por isso. Aceitamos entre nós esta gente de uniforme, armada enquanto nós não temos o direito de o estar, que nos pede documentos, que vem rondar nossas portas. Como isso seria aceitável se não houvesse delinqüentes? Ou se não houvesse, todos os dias, nos jornais, artigos onde se conta o quão numerosos e perigosos são os delinqüentes?”[35]

É ilusão supor que a polícia só existe para inibir os delinqüentes. A artimanha do poder está em fazer crer que a polícia está apenas de um lado, enquanto que, na verdade, atua nas duas direções: controle e produção de delinqüência e controle e vigilância geral. O jogo duplo do poder condena a sociedade ao ciclo vicioso de produzir a delinqüência para dela se proteger.

6. O desejo do mal

O prólogo da peça é um texto escrito em versos, cujo conteúdo resume o que vamos encontrar no decorrer da narrativa. Vale a pena citá-lo por inteiro:

Atrás desses muros
de tétrico amarelo
atrás dessas grades
de amarga ferrugem
vivem os vivos
que já estão mortos
vivem os homens
que já não são gente.

Por essas janelas
de grade e tristeza
a esperança não entra
não entra a crença
o sol não entra
por essas janelas.

Atrás desses muros
a noite é tão longa
o frio é tão frio.
E são tantos fantasmas
que apavoram os sonâmbulos
que até pesadelo
seria descanso
na noite tão longa atrás desses muros.

Atrás desses muros não há lenitivo.
O sol não entra por essas janelas.

E muitos dos que estão
atrás desses muros
pela honra mataram
e pela fome roubaram.
E agora, atrás desses muros,
são espectros famintos
moralmente mutilados.

Atrás desses muros não há lenitivo.
O sol não entra por essas janelas.[36]

Os personagens da peça são vivos que já estão mortos, “já não são gente”. Há duas formas de entender isto. A primeira, equivocada a nosso ver, seria dizer que eles são desumanizados, que eles se tornaram “animais”. A segunda é compreender “gente” como sinônimo de vínculo social. Ou seja, já não tem os vínculos sociais que controlam o “infantil”, para retomar o conceito de Bataille. A violência dos “mortos” é tão humana quanto aquilo que a contém – as forças da lei e da cultura.
O autor nos situa dentro de uma longa noite. Sabemos que é durante a noite que nossos desejos proibidos aparecem. Quando o “sol” da razão se põe, a noite pulsional começa:

Mas quando tudo desapareceu na noite, “tudo desapareceu” aparece. É a outra noite. A noite é o aparecimento de “tudo desapareceu”. É o que se pressente quando os sonhos substituem o sono, quando os mortos passam ao fundo da noite, quando o fundo da noite aparece naqueles que desaparecem[37].

É o lado sombrio, noturno, do ser humano que se apresenta em Barrela. Na noite, aparece

“o invisível que se faria ver ao abrigo e a pedido das trevas: o invisível é então o que não se pode deixar de ver, o incessante que se faz ver”[38].

Plínio Marcos nos mostra aquilo que, durante o dia, é invisível. Já dissemos mais acima sobre a “invisibilidade” das prisões.
O prólogo ainda diz dos fantasmas que apavoram os sonâmbulos. Maurice Blanchot lembra que “o fantasma” está lá para desviar e apaziguar o fantasma da noite. “Os que crêem ver fantasmas são aqueles que não querem ver a noite” (ibidem). “Até pesadelo seria descanso na noite longa”.
Plínio Marcos reconhece que o pesadelo já seria uma forma de apaziguar a noite. Em outras palavras: o ser humano tem um aspecto noturno que ele mesmo desconhece e que, no entanto, o domina, é soberano. Este aspecto é o que Freud chamou pulsão sexual. O pesadelo e o fantasma apenas deixam entrever o pulsional. Ele mesmo é o que Blanchot chama de outra noite. Não é a noite do descanso, do sono e da morte:

“A outra noite não acolhe, não se abre. (...) Na noite, encontra-se a morte, atinge-se o esquecimento. Mas essa outra noite é a morte que não se encontra, é o esquecimento que se esquece, que é, no seio do esquecimento, a lembrança sem repouso.”[39]

Para esta outra noite, “não há lenitivo”.
Para Freud, o pesadelo é um sonho de angústia. Nele, realiza-se um desejo inconsciente. São exemplos típicos de sonho de angústia: ser traído, ser perseguido, estar caindo, morte de entes queridos, submeter-se a algo indesejável (tortura, relação sexual, etc.). Aparentemente, o sonho de angústia coloca em xeque a tese de Freud que diz que todo sonho é uma realização de desejo. Freud resolve esta contradição ao nos lembrar que o desejo pode ser inconsciente. No pesadelo, são os desejos inconscientes, os mais recalcados, que são realizados. Daí a angústia que sentimos diante destes sonhos, cuja representação é inteiramente irracional para o eu consciente. O pesadelo faz aparecer nossa “outra noite”, nosso lado noturno que não queremos ver sob a luz da razão e da consciência. Nossa tese é, então esta: o pesadelo de “Portuga” é a realização de um desejo inconsciente. Ao iniciar a peça com um pesadelo, talvez Plínio Marcos também quisesse dizer que toda peça é um pesadelo, como já havia indicado no prólogo. Sendo assim, a partir da psicanálise, perguntamos: que desejo se realiza ali? Que desejo inconsciente é representado através da relação entre os presos, no submundo social? Quem nos dá a resposta é um dos presos, “Louco”, que passa toda peça a dizer: “Enraba, enraba!”.
O “Louco” é aquele que diz a verdade. Seus gritos de “enraba, enraba!” representam um desejo masculino ligado à homossexualidade e à violência sádica. O auge da peça é, justamente, a realização do desejo do “Louco”. E é, de maneira disfarçada, a realização de desejo do pesadelo de “Portuga”. Não nos enganemos: Portuga poderia ocupar qualquer papel em seu sonho traumático: o seu próprio, o do amante e o de sua mulher. Como nos lembra Freud, o ser humano é um ser dividido. Talvez, no sonho, o próprio “Portuga” seja sua consciência moral que proíbe a traição da mulher. O amante seja uma outra parte dele, parte que deseja realizar-se enquanto homem de uma mulher. Sua mulher, por fim, pode representar – e esta é nossa hipótese – sua parte feminina que quer ser a mulher de um homem. Vejam o que “Tirica” diz para “Portuga”:

T: A culpa é do fantasma da tua mulher, que vive te assombrando. Ela é que tem culpa. Não tem nada que vir pegar no teu pé. (...)
P: Pensa que sonho com ela porque gosto?[40]

De fato, é o fantasma da mulher nele que o atormenta e que atormenta a maioria dos homens. O próprio “Portuga” admite: o sonho não é bom, é involuntário. Sabemos como o desejo homossexual é angustiante para a maioria dos homens e como eles reagem a este desejo com extrema violência. Barrela mostra apenas uma versão do conflito entre o desejo de feminilidade do homem – que vai muito além da homossexualidade – e a defesa contra ele.
“Bereco”, chefe da prisão, é também a representação da proibição da homossexualidade ele é explícito:

“Não quero veadagem aqui, não. Tenho nojo de puto, já vou avisando. Vê lá, hein, Tirica. Se virar a mão aqui, te mato de pancada.”[41]

“Bereco” chega a ameaçar castrar se alguém o desobedecer.
“Bereco”, inicialmente, protege “Garoto” e não deixa que os outro presos o violentem. Curiosamente, entretanto, logo em seguida, “Bereco” vai pisar nos calcanhares do “Garoto”. A lei que proíbe é também a lei que incita. Num certo sentido, isto também é uma reflexão jurídica: a lei é sádica. É como se Plínio Marcos estivesse nos dizendo: não acreditem que a lei esteja imune ao nosso inconsciente, ao que há de mais sombrio em nós, aos nossos desejos recalcados. Se por um lado, ela reprime nossos desejos, por outro, ela os excita e faz com que os realizemos das formas mais perversas e imprevisíveis – por exemplo, fazendo com que aprisionemos homens para que eles realizem estas fantasias ligadas à feminilidade e à violência.
Para concluir esta interpretação psicanalítica apontemos para um detalhe na peça que é também importante: quando do atentado violento ao pudor “Tirica” não consegue realizar o ato sexual. Ele também era atormentado pelo fantasma da feminilidade. “Portuga” conta aos colegas de cela o que ouviu de “Morcego”, um detento de outra cela: “Morcego” havia violentado “Tirica” quando ele ainda era uma criança, num reformatório. Depois de ser objeto de zombaria de todos – pelo passado e pelo fracasso sexual – “Tirica” pega a colher que estava afiando e crava-a diversas vezes em “Portuga”.
Eis o que ensina a psicanálise: muitas vezes é o fantasma da feminilidade, sua recusa e sua provocação, o que está na origem da violência entre os homens. A pergunta que a psicanálise tem para o direito é, então, a seguinte: não estaria a legislação que garante a existência das prisões a serviço de fantasias inconscientes que giram em torno do sadismo e da feminilidade?

7. Minimalismo penal.

A resposta do direito à psicanálise é a seguinte: para se extirpar as mazelas da prisionização ou institucionalização só através da abolição da pena de prisão.
Louk Hulsman[42], jurista holandês, aponta que dificilmente o sistema penal poderia alcançar seus objetivos teóricos, pois

“como todas as grandes burocracias, sua tendência principal não se dirige para objetivos externos, assim para objetivos internos, tais como atenuar suas dificuldades, crescer, encontrar um equilíbrio, velar pelo bem-estar de seus membros – numa palavra, assegurar sua própria sobrevivência. O processo de burocratização e profissionalização, que transpassa o sistema penal, faz dele um mecanismo sem alma.”

Entretanto, o que colocar no lugar da prisão. Se não tiramos razão à psicanálise, também não nos locupletamos totalmente ao defender a extirpação prisional sem nada colocar no lugar. Antes, então, do abolicionismo, a solução mais imediata seria o minimalismo penal, com descriminalização e despenalização (composições, transações, exigir representações, suspensão do processo, etc.). Como conclui Shecaira[43],

“não há condições políticas e culturais para a realização em curto e médio prazo de um programa abolicionista em nossas sociedades, mas não se pode deixar de lado a crítica, enquanto instrumento e meio, para que se tenha uma ampla política de descriminalização, acompanhada da experimentação, com intervenções alternativas à Justiça Criminal (diversion), para que a concretização de reformas possa diminuir a distância até a meta final.”

No caso mesmo do filme em discussão, hoje, não mais seria possível a prisão do garoto pela prática de lesão corporal simples, observada a lei 9.099/95 que, em seu artigo 2º., aponta que o processo, nas infrações de menor potencial ofensivo, além da simplicidade, celeridade, economia processual e oralidade, deve buscar a conciliação e a transação. Impede-se, em decorrência do pontuado no art. 69, parágrafo único, da mesma lei ordinária, a prisão em flagrante daquele que assumir o compromisso de comparecer ao Juizado em data a ser designada. Evita-se, assim, a violência institucional marcada pelas cerimônias degradantes[44].
Nesse viés, é imprescindível a mudança de visão do problema criminal. A introdução do labelling approach possibilita que a investigação criminológica se desloque, como aponta Baratta[45],

“das causas do comportamento criminal em direção às condições a partir das quais, numa dada sociedade, as etiquetas da criminalidade e o estatuto do criminoso são atribuídos a comportamentos e a sujeitos, e para o funcionamento da reação social informal e institucional”.

É claro que esse pensamento considera o problema da criminalidade insolúvel dentro dos marcos da atual sociedade. Mas, também é verdade, que o sistema como existe deve ser repensado.
É indissociável a idéia de que o sistema punitivo é seletivo e estigmatizante. Em Barrela não se vê preso o white colar criminal ou os políticos corruptos que usurpam do patrimônio coletivo. São ladrões, assaltantes, usuários de drogas, a grande maioria. Negros ou nordestinos. O sistema parte da falsa percepção da realidade de que os crimes mais graves são os crimes de cunho não-coletivos e/ou não-difusos quando, na verdade, são esses os crimes que atingem mortalmente os mais caros bens-jurídicos.

8. Das Conclusões

O que determina um clássico? Entre os quesitos para eternizar uma obra de arte está a atemporalidade. Barrela ficou censurada por duas décadas, causou polêmica ao ser liberada e chega atual ao século XXI do Brasil das desigualdades. Barrela evidencia as mazelas do sistema carcerário, as relações de oprimido e opressor, pequenas autoridades e grandes frustrações. Nada mais atual.
Quase cinco décadas depois, Barrela ainda pode incomodar. Não é uma alegoria datada nem uma mera reprodução do real: é uma peça de grande profundidade psicológica e social, atemporal porque escapa ao maniqueísmo.
A obra não envelhecerá tão cedo, pois, ao denunciar a hipocrisia das “ideologias re” (Zaffaroni), atinge o sistema penal em sua estrutura ao avaliar que não há o que ser ressocializado se, antes, não for socializado. Resgatar é buscar uma coisa que já se teve e se perdeu...
Dentro dos presídios, em condições subumanas e na promiscuidade, ocorre toda sorte de infecções e violências. A violência sexual, por razões diversas, é bastante presente e sempre tem um sem-número de vítimas. Muitos presos que estão infectados pelo HIV são vítimas de violência sexual, gerando, conseqüentemente, novos infectados.
De fato, como bem pontua Pádova,

“acabaram-se as ilusões sobre o discurso que ainda hoje legitima o sistema penal, uma vez que, no âmbito da execução da pena, soa totalmente falso se falar em reeducação, ressocialização, reinserção, repersonalização, ou outra coisa pertencente ao grande conjunto de fins propostos que jamais foram alcançados. (...) A imediata redução do sistema penal e a criação de mecanismos garantidores de uma máxima contenção do poder punitivo do Estado, representando, no dizer de Maria Lúcia Karam, um rompimento com a fantasia perversa que sustenta a opção penal, são, assim, um necessário passo em um caminho mais longo, mas nem por isso inatingível, de uma futura superação da própria reação punitiva.”[46]

Razão a Nilo Batista quando aponta, como o pior bandido, o próprio Estado porque suas instituições são formas de seqüestrar os cidadãos gerando inúmeros micro-poderes. Nessas instituições, desconstroem-se cidadãos e criam-se sujeitos marginalizados.
Zaffaroni adverte que

“a prisão ou jaula é uma instituição que se comporta como uma verdadeira máquina deteriorante: gera uma patologia cuja característica mais saliente é a regressão, o que não é difícil de explicar. O preso, o prisioneiro é levado a condições de vida que nada têm que ver com as de um adulto; é privado de tudo o que usualmente o adulto conhece. Por outra parte, sua auto-estima é lesionada de todas as formas imagináveis: perda de privacidade e de seu próprio espaço, submetimento a comportamentos degradantes...”[47]

Apesar, disso tudo,

“é possível que, no futuro, a pena privativa de liberdade tenha a morte decretada, declarando-se definitivamente seu sepultamento na História.”[48]

9. Bibliografia

ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Violência e cidadania. Violência em debate / Márcia Kupstas (org.) – São Paulo: Moderna, 1997 – Coleção Polêmica.
BARATTA, Alessandro. Sobre a criminologia crítica e sua função na política criminal. Boletim do Ministério da Justiça, n. 13.
Bataille, Georges. La littérature et le mal. Paris: Gallimard, 1957.
BATISTA, Nilo. Temas de Direito Penal, Liber Juris.
BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. SP: Saraiva, 2ª. Ed., 2001.
BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. Trad.: José Antônio Cardinalli. São Paulo: CONAN, 1995.
CHRISTIE, Nils. A Indústria do Controle do Crime. Trad. Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
www.mj.gov.br.
DIAS, Astor Guimarães. A questão sexual das prisões. São Paulo: Saraiva, 1955.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Ed. Graal, 5.ª edição, 1985.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo, 1992.
GOMES, Luiz Flávio. Prisões: falência ou sucesso total, in www.direitocriminal.com.br, 29.11.2000.
HULSMAN, Louk, BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução por Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro, Luam, 1993.
JUNIOR, Antônio de Pádova Marchi. Abolicionismo Criminal, Dominus CD-Rom, BH: Dominus Legis.
LEAL, César Barros. Prisão: Crepúsculo de uma era. 2ª. Ed., BH: Del Rey.
PIMENTEL, Manoel Pedro. O crime e a pena na atualidade. São Paulo: RT, 1983.
Revista Veja, 22.05.1991.
Sartre, Jean-Paul. Baudelaire. Paris: Gallimard, 1949.
SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2004.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas. Buenos Aires: Ediar, 1989.
ZANOTTO, Ilka Marinho. Descida aos infernos. In. Marcos, Plínio. Melhor Teatro. São Paulo: Global, 2003, pp. 7-20.
[1] ZANOTTO, Ilka Marinho. Descida aos infernos. In. Marcos, Plínio. Melhor Teatro. São Paulo: Global, 2003, p. 8.
[2] Op. cit., p. 13.
[3] ZANOTTO, Ilka Marinho. Descida aos infernos. In. Marcos, Plínio. Melhor Teatro. São Paulo: Global, 2003, p. 12.
[4] BATISTA, Nilo. Temas de Direito Penal, Liber Juris, p. 171.
[5] Nesse caso, aponta-se a similaridade do caso com a música de Chico Buarque, Construção:
“(...) E tropeçou no céu como se fosse um bêbado
E flutuou no ar como se fosse um pássaro
E se acabou no chão feito um pacote flácido
Agonizou no meio do passeio público
Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.”
[6] ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Violência e cidadania. Violência em debate / Márcia Kupstas (org.) – São Paulo: Moderna, 1997 – Coleção Polêmica, p. 21 e ss..
[7] Bataille, 1957, p.10.
[8] op. cit., p. 14.
[9] op. cit., p. 17-8.

[10] op. cit., p. 134.
[11] op. cit., p. 142.
[12] ibidem.
[13] B, 27.
[14] Bataille, 1957, p. 31.
[15] op. cit., p. 57.
[16] cf. op. cit., p. 57-8.
[17] op. cit., p. 91.
[18] Ibidem.
[19] op. cit., p. 91-2, grifos nossos.
[20] Op. cit., p. 14.
[21] FOUCAULT, Michel. Ed. Graal, 5.ª edição, 1985, p. 140.
[22] Dados de junho de 2004, www.mj.gov.br.
[23] Cf. Vigiar e Punir, de Foucault e Histórias das Inquisições, de Francisco Bethencourt.
[24] Revista Veja, 22.05.1991.
[25] CARNELUTTI, Francesco. As misérias do Processo Penal. Trad.: José Antônio Cardinalli. São Paulo: CONAN, 1995.
[26] DIAS, Astor Guimarães. A questão sexual das prisões. São Paulo: Saraiva, 1955, p. 16.
[27] BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da Pena de Prisão. SP: Saraiva, 2ª. Ed., 2001, p. 158, 159.
[28] GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Trad. Dante Moreira Leite. São Paulo, 1992.
[29] PIMENTEL, Manoel Pedro. O crime e a pena na atualizade. São Paulo: RT, 1983, p. 158.
[30] GOFFMAN, Erving. Op. cit..
[31] GOMES, Luiz Flávio. Prisões: falência ou sucesso total, in www.direitocriminal.com.br, 29.11.2000.
[32] CHRISTIE, Nils. A Indústria do Controle do Crime. Trad. Luis Leiria. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
[33] Op. cit., p. 131-2.
[34] Foucault, 2000 [1979], p. 132.
[35] op. cit., p. 137-8.
[36] B, 26-7.
[37] Blanchot, 1987, p. 163.
[38] Ibidem.
[39] Op.. cit., p. 164.
[40] B, 32-3.
[41] B, 45.
[42] HULSMAN, Louk, BERNAT DE CELIS, Jacqueline. Penas perdidas: o sistema penal em questão. Tradução por Maria Lúcia Karam. Rio de Janeiro, Luam, 1993, p. 58.
[43] Op. cit., p. 360.
[44] SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. São Paulo: RT, 2004, p. 319.
[45] BARATTA, Alessandro. Sobre a criminologia crítica e sua função na política criminal. Boletim do Ministério da Justiça, n. 13, p. 147.
[46] JUNIOR, Antônio de Pádova Marchi. Abolicionismo Criminal, Dominus CD-Rom, BH: Dominus Legis.
[47] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Em busca de las penas perdidas. Buenos Aires: Ediar, 1989, p. 59, tradução livre.
[48] LEAL, César Barros. Prisão: Crepúsculo de uma era. 2ª. Ed., BH: Del Rey, p. 127.

Nenhum comentário: