sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Imputação Objetiva e Welzel

Warley Belo

Mestre em Ciências Penais / UFMG - Advogado

“... estamos sempre outra vez no começo.”

(Claus Roxin, Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal, p. 88.)



1. Introdução

A teoria da imputação objetiva é praticamente desconhecida no Brasil. Seu estudo tem como precursores, em estudos específicos, entre nós, André Luis Callegari , Damásio de Jesus , Fernando Galvão e Guilherme Madeira Dezem . Todos após 1998. Juarez Tavares foi o primeiro a falar no Brasil sobre o tema em 1985 . Mas, o que é a teoria da imputação objetiva? Como se correlaciona com o finalismo?

A teoria remonta a 1927 / 1930 quando, respectivamente, Karl Larenz e Richard Honig iniciaram seus estudos. A tendência filosófica era o neokantismo que tentava superar o positivismo.

O civilista Larenz, em sua tese de doutorado, visava contribuir na solução das causas imprevisíveis e seu curso. Seu marco teórico foi Hegel na proposição de ser o homem livre, enquanto racional. Manifesta sua liberdade através da sua vontade e essa é exteriorizada através de ações. O Direito se liga a finalidades valorativas, sendo uma ciência cultural, e não exata ou natural, como pretendia a Escola Positiva.

Honig, partiu da polêmica entre a teoria da equivalência (causa é toda condição do resultado) e a teoria da adequação (causa é condição adequada do resultado). Relevou a imputação, como nexo normativo, em detrimento da causalidade, questão ontológica. São conceitos co-existentes sendo que as causas são conceitualmente mais amplas. Não se confundem com o imputável que é atribuir a um sujeito a prática de um determinado ilícito. A imputação objetiva não anula ou substitui ou dispensa a relação de causalidade. Segue que o Direito Penal deve partir da concepção de que só pode regular o que decorre da vontade humana (Hegel), compreendida objetivamente. Advém o resultado previsto, subtendido como produzível ou evitável. Causar é distinto de imputar.

A tendência hegeliana, inspirada na Werphilosofie, apesar de endossada por Mayer, Hegler, Sauer e Mezger não logrou êxito. O finalismo se impôs.



3. Política Criminal, Funcionalismo e Imputação Objetiva

A partir de 1966, Claus Roxin (Escola de Munique) dá, ao neokantismo, especial valor trazendo a teoria da imputação objetiva de volta ao círculo acadêmico ao negar o finalismo como doutrina enxergando um Direito Penal menos tecnocrata.

O Direito Penal, ao revés de se ligar às finalidades valorativas do neokantismo, deve lançar bases na política criminal da moderna teoria dos fins da pena . Sua finalidade é analisar a necessidade da pena em cada caso concreto específico. A tarefa da lei penal não se esgota mais na defesa social clássica ou positivista, vai além ao fornecer diretrizes de comportamento, sendo um instrumento de regulação social (Sozialgestaltung) . Veja a contribuição de Roxin: os neokantistas afirmaram que o Direito Penal deve se ligar a valores finais. Que valores? Depende de cada indivíduo... Já para o jurista alemão, esses valores finais são definidos pela política criminal. Essa doutrina funcionalista tem, ainda, dois pilares: a teoria da imputação objetiva e a “culpabilidade” enquanto responsabilidade.

Parte-se do pressuposto que a relação de ação-resultado gera um fato, não obstante ficto lingüisticamente, relevante para o Direito Penal. Ações que causam fatos irrelevantes jurídico-penalmente não precisam ser analisadas. De nada interessa saber a normalidade de agir. A imputação objetiva é instrumento para determinar o fato que interessa ao Direito Penal punir. Ela quer dizer qual é o fato que necessita ser punido em dado paradigma social. Toda ação gera um fato arriscado. Se passarmos a fronteira da aceitabilidade da ação é porque houve um aumento de risco já existente ou efetivamente criou-se um risco. Se a lei não fixa de maneira determinada esse risco, cabe ao juiz decidir o que seria um risco socialmente tolerável pautado em princípios de política criminal.

A função da imputação objetiva é procurar o responsável ao transformar a ação em risco. Observa-se o fato, naquele momento histórico, se há reprovação, há fundamento. Assim, o presidente de uma siderúrgica, que vende minério de ferro, não é imputado homicida porque o ferro vendido serviu ao fabrico da arma. Avalia-se valorativamente o fato em um determinado momento histórico, ou seja, a venda do minério é atividade regular e legal. Nesse ponto, a imputação objetiva se distancia do tecnicismo jurídico causalista.

A teoria é instrumento dogmático que traça liame entre a ação humana e sua conseqüência. Permite analisar e subsumir fatos. É, também, método de interpretação.

A causalidade tem um amplo significado. Pode ser irrelevante, social, biológica, política etc. A imputação objetiva visa limitar esse conceito de causa na esfera do Direito Penal, eis que sabe que cada ação nova é uma ação de risco, mesmo as mais singelas, como vender minério de ferro. É claro que a venda de minério de ferro é causa do homicídio: sem minério não há arma, não há morte. Mas, após a verificação desse nexo causal (art. 13, CP, teoria da conditio sine qua non), haverá um segundo momento onde se aplicará a teoria da imputação objetiva. Analisar-se-á o fato típico visando aplicar a lei penal, responsabilizando o autor do fato se violou os valores vigentes, o que justificará a intervenção do Direito.

Para se determinar a responsabilidade pessoal, pela teoria da imputação objetiva, usam-se critérios objetivos limitadores da causalidade. São critérios negativos de atribuição, pois indicam ser a conduta não-típica, restringindo a incidência da proibição ou determinação típica sobre o sujeito, conforme os fins de proteção da norma e o alcance do tipo injusto.

Pergunta-se: a venda do ferro pelo presidente da siderúrgica é causa do homicídio? Sim. Ele deve ser imputado penalmente? Não, porque não violou valores sociais vigentes. Só se imputa as conseqüências objetivamente previsíveis se o risco não era permitido.

E quais os limites ao “risco permitido”? Depende do paradigma social. Dirigir um automóvel regularmente traz um risco, mas permitido. O Direito não pode viver no mundo platônico. Viver impõe riscos. Se uma ação é socialmente adequada não poderá ser típica, pois o Direito Penal existe para o homem viver melhor em sociedade e deve refletir isso ao penalizar condutas merecedoras e relevar outras que são aceitas pelo ordenamento jurídico.

Há de observar-se a criação de um risco, em primeiro plano, se há a realização de um fato, segundo plano. E, em terceiro plano, se há o alcance do tipo.

Logo, existe, coberto pela norma, um risco permitido, socialmente suportado, em relação ao qual há conduta atípica.



6. Adequação social: contribuição à imputação objetiva

A teoria da imputação objetiva preocupa-se com a idéia de justiça da atribuição da causalidade. Trata-se de uma doutrina que afeta à questão da tipicidade e não da ilicitude. Nesse aspecto, não se pode negar que se afina com a teoria da adequação social (quer dizer, aceito pela sociedade). Essa teoria de Welzel é casuística ao discutir o exemplo do sobrinho que envia o tio ao bosque, quando ameaça uma tormenta, com a esperança de que um raio o mate. No caso, é forçoso reconhecer que não há prática de ação típica porque o grau de perigo (risco) criado pela ação é diminuto e, por isso, socialmente adequado... A adequação social, em sua formulação original, era de extrema importância, perfeitamente comparável com a imputação objetiva, inclusive nas conseqüências.

Welzel estudou e conhecia a teoria da imputação , inclusive cita Larenz . A questão é que, em Welzel, o princípio da adequação social era um detalhe, ao contrário de hoje, onde há uma hipertrofia no estudo objetivo. Ademais, Welzel não se preocupou em construir uma teoria da adequação social. Antes, pelo contrário, desenvolveu o tema em vários trabalhos e com posicionamentos destoantes. Observa-se que a preocupação de Welzel era pontual, em esclarecer casos concretos.

Talvez aqui a crítica mais contundente. A adequação social é imprecisa. Welzel a criou importante. Terminou, entrementes, como método de interpretação subsidiário. Na última edição de seu manual, concluiu que o “caso do sobrinho” não se resolveria excluindo a tipicidade objetiva. Afirmou que não concorria o dolo, pois o autor não possui o elemento volitivo de matar, nem tem nada a ver com a causalidade, devendo ser observado, na questão, o critério geral da adequação social como mecanismo de interpretação finalista admitido no âmbito do tipo...

Não há dúvida, todavia, que a adequação social é um dos princípios do finalismo quando Welzel advertiu a necessidade de se ter uma interpretação social no marco do injusto. E, aqui, a teoria da imputação objetiva vai de encontro com esse princípio, quiçá é o ponto de partida para seu desenvolvimento. Kaufmann chega mesmo a afirmar que a adequação social não é um mecanismo corretor dos tipos por meio de interpretação, mas reflexo comparável à imputação objetiva. Luís Greco afirma que “a fundamentação que dá Welzel à sua teoria da adequação social guarda bastante proximidade – mas não identidade – com a que se costuma dar à idéia de risco permitido”. A crítica é que Welzel isola o bem jurídico da realidade social, em exagerado tecnicismo.

A questão saiu da esfera objetiva e foi para a subjetiva. Para Roxin, a essência é o objetivo, o que ocorre no mundo exterior, se é importante, se é relevante para o Direito. Se o for, só então, parte-se em busca do subjetivo, daí a não-conciliação.



7. Conclusões

Imputar é atribuir juridicamente a causa de um fato a alguém. A imputação objetiva muda o tipo objetivo ao acrescer dois elementos: criação de um risco juridicamente desaprovado e realização do risco. Esses elementos se unem aos já existentes (ação, causalidade e resultado).

O momento histórico que surge a imputação objetiva é anterior à concepção de adequação social de Welzel, não obstante a contribuição recíproca de desenvolvimento. A recusa, pois da imputação objetiva, hoje, pelos finalistas, trata-se mais de uma questão terminológica do que de conteúdo.

A imputação objetiva vem se aprimorando ao longo desses 80 anos e apresenta-se mais precisa do que a adequação social. Aliás, desde a sua origem. Já a adequação social foi modificada - casuisticamente -, pelo próprio Welzel, numerosas vezes.

Entretanto, é induvidoso que a primeira formulação de Welzel se aproxima da linha de desenvolvimento da imputação objetiva. Também é verdade que, após, gradativamente, vai diminuindo a importância desse estudo no finalismo que passa de excludente de tipicidade a causa de justificação consuetudinária e, no fim, a princípio de interpretação.

Larenz, Honig e Welzel contribuíram, cada qual a seu modo, direta ou indiretamente, para a formação e concretização da atual imputação objetiva. Negar que a inadequação social, do primeiro momento, não se assemelha com o conceito de risco juridicamente desaprovado é querer subir uma escada por saltos.



8. Bibliografia

Callegari, André Luís. A imputação objetiva no Direito Penal. RT 764:343.

Camargo, Antonio Luís Chaves. Imputação Objetiva e D. Penal Brasileiro, C. Paul., 2001.

Dezem, Guilherme Madeira. Teoria da imputação objetiva: bases para uma nova relação de causalidade?. Boletim do Instituto Manoel Pedro Pimentel. São Paulo, dez. 1998, 6:9.

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