O conceito
de culpabilidade
Warley Belo
(Belo, Warley. Tratado dos Princípios Penais, volume II. Florianópolis: Bookes, 2012, pág. 18)
A definição[1]
dogmática de culpabilidade (do
alemão, Schuld, do italiano, colpevolezza) é, historicamente
dificultada por sua sensível e complexa composição[2] alcançando,
não raras vezes, paragens extrajurídicas.
Por isso, o conceito de culpabilidade encontra caminho em definição negativa, isto é, a legislação prevê quais são as causas
de exclusão da culpabilidade. Até
mesmo Hassemer[3]
chegou a afirmar que o conceito de culpabilidade é um dos mais difíceis e obscuros do sistema penal.
Menoridade,
doença mental, erro inevitável sobre a ilicitude do fato são exemplos de
excludentes a limitarem ou mesmo extirparem a capacidade de responsabilidade. Sem essa capacidade de querer e
compreender não é possível valorar um
juízo de censura porque essa
avaliação do comportamento do agente pelo aplicador da lei fica desarrazoada.
Deste
modo, o conceito inicial, apesar de não se ter na doutrina uma concepção
unívoca, é o de se designar, a culpabilidade, como a valoração negativa ou reprovação
sobre o injusto[4].
Entretanto, tal conceito, como qualquer outro sobre a culpabilidade, é insuficiente[5] e não responde
muito, pois valoração, por si mesmo,
já induz um leque muito amplo de possibilidades, mormente em uma sociedade pluralista como a nossa[6].
A dificuldade do tema é tamanha que até para lançar as bases mínimas da
definição não existe consenso algum no tema.
De
qualquer modo, para construirmos o conceito de culpabilidade temos que partir
de algum pressuposto. A doutrina lançou esse pressuposto sobre a valoração. Esta valoração é, antes de tudo, uma reprovação
de alguma ação injusta (o objeto de valoração) porque seria exigível (juízo de
censura) um comportamento diverso do autor. Essa reprovação pressupõe capacitação física e psicológica do agente,
além da inexistência de determinadas circunstâncias,
a permitir-lhe motivar-se de acordo com a norma
penal. Daí tem que o injusto é o
objeto sobre o qual recai a valoração,
já a culpabilidade é, conceitualmente, esta própria valoração[7].
[1] Nos textos antigos,
utilizava-se a expressão imputatio.
[2] Francisco de Assi
Toledo (Princípios Básicos de Direito
penal, São Paulo: Saraiva, 1990, pág. 216, § 16, item 224) introduziu
assim: “A palavra "culpa",
em sentido lato, de que deriva "culpabilidade", ambas empregadas, por
vezes, como sinônimas, para designar um dos elementos estruturais do conceito
de crime, é de uso muito corrente. Até mesmo as crianças a empregam, em seu
vocabulário incipiente, para apontar o responsável por uma falta, por uma
travessura. Utilizamo-la a todo instante, na linguagem comum, para imputação a
alguém de um fato condenável. Seria incorreto dizer-se, por exemplo: Pedro tem
culpa pelo progresso da empresa que dirige; o mesmo não aconteceria, porém se
disséssemos: Pedro tem culpa pela falência da empresa que dirige. O termo culpa
adquire, pois, na linguagem usual, um sentido de atribuição censurável, a
alguém, de um fato ou acontecimento. Veremos que o seu significado jurídico não
é muito diferente. Todavia, se olharmos de frente a culpabilidade
jurídico-penal, será fácil perceber que não estamos diante de algo tão simples
como parece.”
[3] “O conceito de
culpabilidade é uma exceção entre os pressupostos da punibilidade. Ele pertence
a um dos instrumentos mais difíceis e obscuros do sistema jurídico-penal.”
(HASSEMER, Winfried. Introdução aos
fundamentos do Direito penal. Porto Alegre: Safe, 2005, p. 292).
[4] Ver SANTOS, Juarez
Cirino dos. A moderna teoria do fato
punível. Rio de Janeiro: Revan, 2002, p. 173 e ss.
[5] Foi uma das principais
críticas que fez Sebastián Soler (Culpabilidad
real y culpabilidad presunta. In
Anuário de Derecho penal y ciencias penales, t. XV, F. III, Sepbre.-Didbre,
MCMLXII, Madrid: INEJ Duque de Medinaceli, pág. 481, item 4) sobre a concepção
normativista: “Se a reprovação está fundada na existência de algo, a culpa está
aí antes de que a reprovação seja feita e, no fim, reprovabilidade não nos diz
em que se funda. O reprovado é um efeito de algo meramente aludido, mas não
aclarado.” (Tradução livre).
[6] Como anota Roxin
(ROXIN, Claus. Derecho penal, t. I,
Madrid: Civitas, 1997, p. 798): “o conceito normativo de culpabilidade só
afirma que uma conduta culpável há de ser reprovável. Porém ele mesmo é de
natureza completamente formal e não responde à questão relativa aos
pressupostos materiais que caracterizam a reprovabilidade.” No mesmo sentido
Marcos Destefenni (O injusto penal,
Porto Alegre: Safe, 2004, p. 52, item 4.9): “O Direito penal, como a própria
sociedade, é dinâmico. Os valores mudam todo dia e o Direito penal não pode se
distanciar desse dinamismo social.”
[7] Precisamente aqui cabe
toda a crítica da Criminologia com base na teoria das subculturas criminais
(Albert Cohen e Herbert Marcuse) que nega o próprio princípio de culpabilidade
porque entende essas valorações relativas. “... a teoria das subculturas
criminais nega que o delito possa ser considerado como expressão de uma atitude
contrária aos valores e às normas sociais gerais, e afirma que existem valores
e normas específicas dos diversos grupos sociais (subcultura). (...) Não
existe, pois um sistema de valores,
ou o sistema de valores.” (BARATTA,
Alessandro. Criminologia crítica e
crítica do Direito penal. 2ª. Ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 199, p.
74, grifamos). Todavia, trabalhamos em uma ideologia de sistema da valores
dominantes da maioria, quer dizer, na ideologia
da culpabilidade. Caso contrário não teria sentido nos debruçarmos sobre o
assunto e nem buscar legitimá-lo constitucionalmente.
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