sexta-feira, 30 de maio de 2014

Publicado artigo do Prof. Warley Belo no jornal Estado de Minas





Mídia, Direitos Humanos e Vítimas do Porvir
Warley Belo
Advogado criminalista
Diretor do Instituto dos Advogados de Minas Gerais
Passamos por um momento em que pessoas acusadas de crimes são agrilhoadas em postes, espancadas e mortas por populares. Há o respaldo de boa parcela dos atores envolvidos, mormente âncoras do jornalismo nacional que, num debate amorfo, colocam a culpa também nos “Direitos Humanos”.
A Democracia garante o direito de um jornalista aderir ao linchamento de um adolescente negro, favelado e criminoso. Pode até não ser ético e científico, mas, em certa medida, é legal. O problema é que o discurso do “tá com dó, leva prá casa” não ultrapassa as barreiras mínimas de uma cognição primária criminológica e gera pânico social. A consequência agrava-se sobremaneira quando Magistrados encampam este non sense e transformam a toga em fantasia de palhaço, como o fez Roland Freisler que cuspia e insultava os réus para demonstrar sua adesão ao regime nazista. Já os “bandidos”, animados por notícias alvissareiras de impunidade generalizada pelo Estado, se encorajam a praticar mais delitos. As vítimas agressoras, por sua ora e vez, ganham ares de heroísmo, apesar de agirem contra a Lei.
A Lei que temos é apoiada em fatos remotos e conquistas dolorosas ao longo de milênios da História do Direito. Primou-se por limites e metas ao Estado frente ao cidadão, mas, hoje, paradoxalmente, se encontra na contingência de reverter a preocupação para que a Sociedade relembre do velho contrato social.
O Direito não é uma ciência exata e muito menos uma questão de querer, num exercício de vontade. É mais sofisticado do que isso. É complexo para nós juristas, imagine para quem não tenha o conhecimento acadêmico ou, antes, não tenha cultura ou capacidade intelectiva ou, pior, cognitiva de compreensão dos fatos sociais. Mas, o que querem aqueles que criticam generalizadamente os “Direitos Humanos”?
Via de regra, mais punição e processos sem direitos e garantias constitucionais. Imagina-se que, quanto maior a pena, menor o número de criminosos, como se o traficante, com medo do Código Penal, deixasse de lado seu fuzil e procurasse emprego para ganhar um salário. Entretanto, a pena, para ele, é irrelevante, assim como o é para a grande maioria dos criminosos profissionais ou habituais e os criminosos de ímpeto.
O pano de fundo é ainda mais trágico do que essa conclusão de estudante de Direito.
As pesquisas de Hannah Arendt sobre o "indivíduo Eichmann" levaram-na a concluir que o mesmo não possuía personalidade nazista ou doentia. Simplesmente acreditava fazer seu dever de organizar a identificação e o transporte de judeus para os diferentes campos de concentração. Arendt concluiu que Adolf Eichmann era incapaz de compreender sua contribuição para o holocausto. Ele, simplesmente, não tinha a capacidade de abstrair a dimensão de seus atos que redundaram em um genocídio.
Alguns formadores paranóides de opinião pública (Datena, Sheherazade, Boris, Resende etc.) parecem Eichmanns. Difundem um discurso autoritário como se estudiosos do tema fossem e não percebem que incentivam a violência e disseminam um clima de terror (real ou imaginário) na sociedade civil.
Essa imprensa interfere na ideia do controle popular sobre o modo de administrar a Justiça, em seus valores mais caros como a prisão preventiva que hoje, infelizmente, está degenerada. São raros os Juízes que ousam divergir do discurso midiático. Destrói-se por completo qualquer iniciativa de se exercer o tremendo papel de se julgar com respeito às garantias constitucionais como se o problema, no final das contas, fosse a Constituição da República.
Ainda temos, em decorrência do discurso do terror, uma cisão da sociedade que passa a acreditar que existam pessoas “boas” e pessoas “más”. Uma dicotomia lombrosiana, cujo remédio passa pela extirpação da parte podre do corpo social. Se fosse hoje, talvez Jesus tivesse intransponíveis obstáculos para salvar Madalena. As coisas não iam assim tão más na Palestina há dois milênios... Agora, sim, no Brasil, estão péssimas.
O propósito de todos é diminuir a impunidade, diminuir a violência social. Mas, para isso, batem e matam. Quinze, vinte, trinta contra um. Covardia patente, mas elogiada porque o assaltante foi covarde também e o Estado silente. Contudo, nenhuma covardia justifica a outra. E, sim, o Estado é omisso, seus serviços são de péssima qualidade, julgamentos morosos, erros, mas é o Estado que conseguimos construir. Precisamos melhorá-lo e não substituí-lo por outra coisa, porque outra coisa significa a barbárie.
Num aspecto mais amplo podemos dizer que estamos caminhando a passos largos para uma deslegitimação do Estado. Por culpa desse mesmo Estado incompetente, diga-se. Mas também por causa da sociedade que segue amorfa e violenta em seu proceder. Desistir do caminho político é retroceder optando pela solução dos conflitos pela lei do mais forte. Nenhuma sociedade democrática se poderá erigir cultivando esta lei. Ao contrário, precisamos pregar a civilidade.
Hannah Arendt apontava que “a essência dos Direitos Humanos é o direito a ter direitos”. É claro que a vítima quer a vingança imediata e que seu algoz não tenha direito algum, já que o dela foi extirpado. Entretanto, para além do respeito aos milenares princípios do Direito, o que temos é a barbárie generalizada e, acreditem, quanto pior, pior. Fora dos “Direitos Humanos” não há confronto entre sociedade e bandidos, mas entre vítimas do hoje e vítimas do porvir.

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