Teoria e Limites
do Direito Penal Transnacional[i]
Prof. Me. Warley
Belo
Advogado
Criminalista em MG
1)
A globalização
a)
Prever o futuro
Dentro de certos
limites é desejável, possível e até necessário prever o futuro. A previsão faz
parte de nossos estudos e conhecimento. Todos nós a fazemos com base no
conhecimento do passado. Devemos arriscar a fazer previsões, apesar de grande
parte do futuro ser absolutamente inacessível. Buscamos assim soluções prévias
para os problemas que se avizinham.
b)
A globalização
econômica
Uma dessas
possíveis previsões é a de que em 2050 estaremos mais “globalizados” do que
hoje. Sendo, a globalização, um processo histórico essencialmente expansivo,
principalmente a partir da década de 1990, é perfeitamente viável entendermos
que esse processo dificilmente encontrará uma retração.
Essa expansão,
entretanto, encontra e encontrará também muitos desafios. Principalmente porque
existe uma diversidade cultural, histórica, política, religiosa, geográfica e
jurídica acentuada que impede uma unificação integral e absoluta dos valores
sociais, econômicos etc.
É claro que a
ciência econômica é a grande locomotiva desse processo expansionista, apesar de
todas as áreas do conhecimento também se encontrarem – em menor grau – em
processo similar. Mas a Economia é o ramo que mais se destaca.
Hoje é possível
produzir e consumir independentemente das fronteiras nacionais. Basta observar
que ninguém mais sabe onde se produziu a camisa que vestirmos, o carro que
usamos, a caneta que escrevemos. Comprar um Ford não significa mais que o mesmo
foi produzido nos EUA, assim como um FIAT na Itália ou um Citroën na França. Os
componentes destes veículos são produzidos em inúmeros países, às vezes a
montagem é em um terceiro país diferente e sua revenda é para um quarto país
que não participou desta produção.
A internet é outra
prova da globalização. Operações financeiras, transações, contatos em qualquer
parte do mundo em tempo real.O surgimento dos day traders faz de qualquer pessoa um potencial investidor de
qualquer bolsa mundial.
Todo esse
processo técnico de globalização exige uma padronização. Seja de valores, de
linguagem, de sistemas de telecomunicações e, evidente, do sistema jurídico. E
esse será o maior problema para os juristas nas próximas décadas.
Até que ponto
essa homogeneização é possível? Haverá reações?
Talvez não. No
campo dos transportes não vemos reações por termos os aeroportos padronizados.
A mesma língua, mesmos sinais, mesma estrutura, mesmas chamadas. Dificilmente
alguém saberia diferenciar uma fotografia de um saguão de um aeroporto de
Portugal, da Espanha ou da Alemanha.
Outra
constatação é que essa padronização é irreversível, independente da vontade dos
Estados que se encontram ameaçados de serem os atores principais desse fenômeno
global pelas grandes corporações financeiras e industriais. O papel do direito,
então, se faz cada vez mais presente porque urge a necessidade de acompanhar
essas significativas mudanças. Ao Direito não cabe lutar contra essas
modificações (nem nunca o caberia), mas adequar-se para minorar os eventuais
danos ao indivíduo, sociedade, Estados, meio ambiente etc.
Entretanto, sem
lei, esse processo poderia desencadear um sistema extremamente perverso,
desequilibrado, injusto. Talvez não, mas a lei ainda é uma garantia mínima de
que o fraco terá voz frente ao forte. Disso não se pode abrir mão. É o ponto
básico que se espera de uma sociedade minimamente organizada.
E são as leis
nacionais o ponto de partida. Mesmo com a economia em avançado grau de
globalização, a internet, os transportes etc. tudo precisa estar sob o manto da
lei, do direito. Sob pena do espaço estatal ser ocupado por uma força
internacional incontrolável, que, certamente, não se preocupará com os
miseráveis, com a fome, com as injustiças sociais, com o meio ambiente. Talvez
seria o caos. O risco é muito grande para deixarmos de exigir a subordinação às
leis dessa força globalizante.
Há assim a
necessidade dos Estados se organizarem e impedirem essa expansão impondo
limites ao poder econômico. Mas como ter esse controle global? Essa é a questão
a ser respondida.
Na Europa,
tenta-se controlar a economia transnacional com a formação de um consórcio de
Estados, como o é a União Europeia. No cone-sul, temos o Mercosul e assim por
diante. Não deixa de ser um modelo de reação ao poder globalizante econômico.
c)
A globalização
jurídica
Esse processo
levará as culturas a se adaptarem umas às outras numa escala planetária com a
difusão global da cultura popular de massa. Já temos essa forte indicação
através dos filmes, música, futebol, celebridades, moedas circulantes, tudo é
mais ou menos o mesmo, vinculados que estão.
E o direito
penal?
2)
Limites do
direito penal
a)
Quais serão os
principais problemas do direito penal no futuro?
Haverá uma
construção teórica de grande alcance.
O direito penal
se depara, hoje, com outra realidade. Os crimes acompanham a rápida evolução
econômica e técnica. O terrorismo, o cyber
crime, os crimes ambientais, a biotecnologia pirata, os crimes ambientais
são só alguns expoentes primeiros desta vertiginosa mudança de paradigmas
criminais a exigirem uma mudança normativa.
b)
Mudanças na
criminalidade
A atual
“sociedade global de risco” faz o crime mudar em dois aspectos primeiros: a
possibilidade do crime se tornar cada vez mais transnacional e, com isso, o
enfraquecimento do direito penal clássico, que passa de um direito de limites
estatais para um direito de intervenção máxima e antecipada.
Mas essa causa
não pode trazer como consequência este efeito deletério: a deslegitimação do
direito penal. Essa deslegitimação que passa essencialmente pela ruptura de seu
valor iluminista de ser um limite, uma proteção do indivíduo frente ao Estado.
A criminalidade
transnacional nasce da globalização por três motivos: técnicos, econômicos e
políticos.
Os motivos
técnicos dizem respeito à evolução de sistemas de computadores, frequentemente
violados através da internet que permite não só a prática de delitos (cyber crimes), mas também a comunicação,
a organização de entidades criminosas em vários lugares do planeta. A internet
também é muito importante no fluxo de dinheiro, arquivamento de segredos de
negócios, empresas, condução da produção de fábricas, distribuição de energia
elétrica, informações da polícia e militares etc.
Também nesta
seara técnica, a incrementação dos transportes faz aumentar o número de
pessoas, serviços e mercadorias entre os países diminuindo assim o controle nas
fronteiras.
Novos desenvolvimentos
técnicos como a facilitação de pesquisas com a energia nuclear, química,
biotecnologia potencialmente perigosas para o meio ambiente. Dentre essas se
pode desenvolver armas de destruição em massa, abuso de produtos dual-use (armas químicas), criação de
vírus e bactérias, como já ocorreu com os ataques da seita japonesa Aum e o envio de cartas com Antrax nos EUA.
Os motivos
econômicos levam ao cometimento de crimes ligados à lavagem de dinheiro porque
o mercado financeiro é cada vez mais rápido, mudando grandes quantias de
dinheiro virtual por todo o planeta numa difícil averiguação estatal de sua
origem lícita ou não. Neste aspecto, praticamente os Estados estão sem
controle.
A enorme demanda
nos portos com o aumento dos containers
também dificulta a fiscalização porque a economia exige menor tempo e os
Estados se sentem pressionados a liberarem cada vez mais rápido as mercadorias
sem uma fiscalização adequada. Tirando é claro, a incrementação dos mercados
internacionais ilegais com o tráfico de drogas, armas, pessoas, órgãos humanos,
pirataria de produtos etc. Com o surgimento dos grandes grupos econômicos e
fundos nacionais e multinacionais há o risco de submissão política dos Estados
através da corrupção, além das falsidades contábeis, crimes contra o meio
ambiente e a economia que poderiam afetar a todo o mundo.
Os motivos
políticos construíram as novas fronteiras Estatais. Houve uma expansão dos
limites territoriais. A Comunidade Europeia é exemplo. Assim, há um livre
trânsito de um cidadão português pela Europa ou de qualquer europeu a Portugal
sem maiores dificuldades alfandegárias, como era antes. Com essa maior
permeabilidade das fronteiras, é claro que se aumentam as possibilidades de
crimes transnacionais. Até mesmo a burla das legislações, como estava ocorrendo
com a liberalização da maconha na Holanda, o que levou este país a proibir a
venda da planta aos turistas nos coffeeshops,
a partir deste ano de 2012, exceto para os belgas e alemães, além, claro, dos
holandeses. Os motivos políticos também estão por trás do terrorismo, cuja
motivação transcende as ameaças do direito penal.
Tudo isso traz
como consequência uma complexidade muito grande quando se procura a resposta no
direito penal.
c)
Os limites
territoriais do direito penal
Dificilmente o
direito penal de qualquer nação será aplicado a nível global. O que pode
ocorrer é a incrementação dos procedimentos que reconhecem a validade das decisões
em territórios estrangeiros. Essa cooperação entre os Estados é algo que tende
a ser aprimorado de forma que uma ordem de prisão de um juiz português seja
automaticamente validada por um tribunal alemão sem a necessidade de demorados
procedimentos.
É claro que isso
está longe de se formar um direito penal transnacional (“teoria da integração
internacional do direito penal”). Há inúmeros projetos na Europa para esse
modelo transnacional, mas a verdade é que ainda subsiste o outro sistema, o
outro modelo de abordagem penal transnacional: a da cooperação, onde se validam
as decisões de um país pelo outro. O desenvolvimento de um direito penal transnacional
europeu, por exemplo, só é encontrado esporadicamente como no combate à
formação de cartéis e na proteção dos interesses financeiros da Comunidade
Europeia.
É claro que o
modelo adotado de cooperação também encontra limites, como a legitimação supranacional,
o que coloca em risco as garantias processuais nacionais (voltadas ao direito
individual); o reconhecimento recíproco de decisões judiciais apoiada em
confiança mútua entre os Estados; as diferenças culturais entre os países que
pode fazer em um país ser crime no que no outro não o é.
3)
Propostas
As propostas
para o combate às novas formas do crime têm apoio em duas vertentes: uma que
privilegia a “desfronteirização” do direito penal, seja através da teoria do
direito penal transnacional, seja através dos sistemas de cooperação, já
discutidos. A segunda proposta, na qual nos perfilamos, pugna pelo
desenvolvimento de medidas alternativas extrapenais.
Essas medidas se
referem à prevenção criminal através do controle social informal e controle jurídico
extrapenal em um amplo espectro de possibilidades.
Assim, o direito
médico deve trazer punições não-penais às pesquisas antiéticas; o direito
administrativo deve trazer formas de combater a corrupção; buscar formas de
minimizar as causas criminológicas do terrorismo e crime organizado;
incrementar as indenizações de direito civil; mediações entre o criminoso e a
vítima; a co-regulação entre particulares e Estados nas atuações pela internet;
ampliação dos códigos de condutas e códigos de ética.
Quer dizer, a
solução das novas modalidades criminosas não passa pelo direito penal, mas,
antes, encontram forte resposta em medidas preventivas extrapenais.
Assim teremos a
garantia da continuidade da estatização dos crimes pelo Estado com todas as
garantias processuais e individuais, com a legitimação punitiva, sem se falar
em censura e com uma possibilidade aumentada de punição extrapenal, pois a
resposta do direito penal exige efetivamente o respeito aos princípios
democráticos, coisa que passa ao largo das punições administrativas, como é o
caso da punição por suspeita de doping
pelas federações esportivas. Tudo isso para garantirmos que a parte mais fraca
(no caso o indivíduo) continue a ser protegido pelo Estado.
Não existe
sistema perfeito. O que se coloca é uma escolha que não tem nada de simplista e,
por isso, não pode ser bifurcada entre a busca da segurança ou a proteção da
liberdade. O mau uso da liberdade, entretanto, não serve de argumento para a
sua supressão. O risco que se corre protegendo a liberdade é, ainda,
infinitamente melhor do que o arrebatamento dos Direitos pelo Estado.
Bibliografia:
Hobsbawm, Eric
J. O novo século: entrevista a Antonio Polito. SP: Cia das Letras, 2009.
Sieber, Ulrich.
Limites do direito penal. Revista Direito GV no. 7, Jan-Jun 2008, p. 269-330,
São Paulo: s/d.
Zaffaroni,
Eugenio Raul. Apuntes sobre el
pensamiento penal en el tiempo. Buenos Aires: Hammurabi, 2007, p. 192.
[i] Discurso proferido em Lisboa
(Portugal) no Encontro Internacional de Juristas em 13 de janeiro de 2012.
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